O admirável mundo de João de Camargo

Carlos Carvalho Cavalheiro:

‘O admirável mundo de João de Camargo’

Carlos Carvalho Cavalheiro
Carlos C. Cavalheiro
Igreja de Nosso Senhor Jesus do Bonfim ou Igreja de João de Camargo.
Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro

João de Camargo foi um ex-escravizado que no início do século XX construiu uma capela na estrada da Água Vermelha, município de Sorocaba, no Estado de São Paulo (Brasil) e deu início a um culto que aparentemente mesclava tradições africanas com catolicismo popular.

Diz o memorialista Antônio Francisco Gaspar que “em princípios de 1906 era empregado na olaria de Elias Monteiro, na ‘Água Vermelha’, um preto ainda moço por nome João de Camargo” (Gaspar, 1925, p. 23). Nessa ocasião, teria João de Camargo recebido da “espiritualidade” uma missão que seria a construção da igreja “longe do bulício da cidade, distante das orgias e das iniquidades […] para o fim de prodigalizar benefícios àqueles que deles necessitarem” (Gaspar, 1925, p. 26).

João de Camargo, então, construiu a sua capela e começou a atender aos necessitados, dando-lhes conforto com seus conselhos, mas, também, promovendo curas milagrosas e usando de seus dons para a promoção do bem. Como afirmou o escritor e folclorista Bene Cleto, o taumaturgo João de Camargo “até sua morte, em 1942, não cessou um só dia em fazer o bem a seus semelhantes, de sanar suas dores – fossem elas do corpo ou do espírito” (Cleto, 2020, p. 43).

Porém, além de promover curas e atendimento aos necessitados, João de Camargo foi uma liderança comunitária. No entorno de sua Igreja surgiu, organizado por ele mesmo, um bairro com estrutura de casas de aluguel, de Hotéis, armazéns e outros serviços. O terreno no qual esse bairro começou a se formar era propriedade doada a João de Camargo por seu primo Pedro de Camargo. Nessa localidade, as manifestações culturais de origem africana ou afro-brasileiras eram permitidas, ao contrário do que ocorria na região central de Sorocaba, onde tais manifestações eram reprimidas pela polícia e pela vigilância dos grupos de poder e tomadores de decisão (Cavalheiro, 2020).

Bastante sintomático foi o esforço de João de Camargo em constituir uma Banda musical e construir um prédio para abrigar uma escola. Assim, promoveu a educação e a oportunidade de trabalho digno para pobres e negros. Em uma época muito próxima ao fim da escravidão, a exclusão social dos afrodescendentes era visível e esperada. O próprio João de Camargo, ex-escravizado, analfabeto e quase que sem qualificação profissional, teve que se sujeitar a trabalhos grosseiros, pesados e mal remunerados.

Obviamente que João de Camargo foi perseguido. Em 1913, chegou a ser preso e processado por curandeirismo (mesmo que o objeto principal da denúncia do promotor público fosse o ajuntamento de pessoas em torno da igreja). Assistido pelo advogado Juvenal Parada, que promoveu uma qualificada defesa, João de Camargo foi absolvido. Mas, por longos anos sofreu a discriminação e o preconceito social.

Ocorre que a burguesia de Sorocaba tinha um projeto de cidade sintetizado no epíteto de Manchester Paulista: uma associação com a cidade industrial inglesa, símbolo de progresso capitalista. A esse projeto concorria o território negro e caipira criado por João de Camargo (Cavalheiro, 2020).

Em 1929, um relatório da cidade de Sorocaba ao Inspetor Chefe apresenta João de Camargo como um “caso typico de curandeirismo, nos moldes de um ‘Antônio Conselheiro’”… (Cavalheiro, 2020, p. 74). Ora, Antônio Conselheiro foi o líder messiânico que, juntamente com os seus seguidores, defendeu a localidade chamada de Canudos dos ataques das tropas federais brasileiras republicanas, cujo entendimento era de que aquela comunidade era um antro de fanáticos e desordeiros.

João de Camargo faleceu em 28 de setembro de 1942 e com o passar dos anos sua imagem foi sendo modificada, especialmente nos textos jornalísticos. Hoje ele é interpretado como um benfeitor, um líder religioso e comunitário, um “santo”.

E a sua igreja é um local onde o ecumenismo e o ecletismo religioso de fato ocorre.

Tradições religiosas que se mesclam

À primeira vista, parece um caos. Depois, a ordem vai se estabelecendo e cria a harmonia do ambiente. A multiplicidade de imagens de tradições tão diferentes (como kardecistas, candomblecistas, umbandistas, católicas, esotéricas, orientalistas…) se miscigenam, e como numa mistura de diversos líquidos, se decantam e encantam até atingir a perfeita amálgama.

 Na igreja de João de Camargo (oficialmente Igreja de Nosso Senhor Jesus do Bonfim), em cada nicho e em cada espaço há imagens de orixás, de entidades da umbanda (como Maria Padilha, Zé Pelintra, Caboclos e Pretos-Velhos), orixás do candomblé, santos católicos, santos populares (como Padre Cícero, Antoninho Marmo da Rocha, Menina Julieta…), mestres juremeiros, deuses hindus, e até mesmo imagens de Buda.

Para completar o sentido eclético do lugar, nas paredes é possível encontrar fotografias e desenhos de autoridades religiosas e políticas como Getúlio Vargas, Papa João Paulo II, Dr. Ferreira Braga (um político local do passado) e até Allan Kardec (codificador do Espiritismo).

Aparentemente, essa mescla de tradições religiosas – em consonância com personalidades históricas e lideranças políticas – não é uma exclusividade da Igreja de João de Camargo. Possivelmente, seja até mesmo um traço cultural de origem africana que não promove a separação entre o sagrado e o mundo dos seres humanos. E nem mesmo se preocupa com uma questão que Peter Berger levantou: a do mercado religioso.

Para esse sociólogo, o fim das religiões oficiais (impostas pelos governos, sobretudo pelas monarquias absolutistas), propiciou a liberdade de escolha. Assim, as religiões acabam por disputar fiéis dentro de uma lógica de mercado. Daí a expressão “mercado religioso” (Beger, 2009).

No ano de 1958, o escritor Aldous Huxley visitou o Brasil. Nessa visita, na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, ele foi levado a um terreiro de macumba, nome genérico dado a algumas das tradições religiosas afro-brasileiras. O pesquisador Renato Ortiz encontrou uma nota no jornal paulistano “O Estado de S. Paulo” que descreveu essa visita com um certo horror e vergonha, pois, de acordo com o redator, tais manifestações eram testemunhas de nosso “atraso”.

É profundamente humilhante para todos nós, brasileiros, que o escritor Aldous Huxley tenha podido assistir, em pleno coração do Rio de Janeiro, a uma cerimônia de macumba. Não apenas porque alguns pretensos intelectuais encaminhassem o famoso autor de Admirável Mundo Novo, para o morro do Salgueiro. Mas, pela simples e única razão de ser ainda possível, em mil novecentos e cinquenta e oito, quando caminhamos em plena era atômica não se sabe se para o cataclismo, a realização de torpezas tais na própria capital da República”. Assim, de acordo com Ortiz, a nota jornalística salienta o preconceito em relação às tradições afro-brasileiras na metade do século XX.

Mas o que interessa a este artigo é o trecho em que o repórter anota uma observação que se coaduna com o que esteticamente ocorre dentro a igreja de João de Camargo:

“[…] sobre um altar, estavam juntos imagens de santos católicos, orixás, fetiches africanos e ameríndios, fotografias de políticos, estampas de Tiradentes, figuras de Buda e de Zumbi dos Palmares, além de cerâmicas de bichos, conjunto este que impressionou o escritor inglês. As danças e cantos que seguiram, interrompidos a meio pelo ‘Pai de santo’ para o ‘abraço duplo ao visitante’, prosseguiram depois dedicados a este” (Ortiz, 1999, p. 200).

Esse é um indício de que muitos cultos afro-brasileiros compuseram seus espaços com essa estética que mistura elementos de várias dimensões da vida humana, desde o sagrado, passando pelo político e pelo mítico / heroico.

No entanto, com o passar dos anos, essa estética foi sendo modificada e, atualmente, não é mais comumente vista nos terreiros das religiões afro-brasileiras. Por isso, a preservação da Igreja de João de Camargo é importante, porquanto é um testemunho vivo de uma prática – ética e estética – que deixou de existir. É, possivelmente, um exemplar único. Um patrimônio para todos nós.

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Referências:

Berger, Peter L. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 2009.
Cavalheiro, Carlos Carvalho. João de Camargo, o Homem da Água Vermelha. Maringá (PR): Editora A. R. Publisher, 2020.
Cleto, Bene. Causos do Leôncio e outros causos. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, 2020.
Gaspar, Antônio Francisco. O Mystério da Água Vermelha. Sorocaba: Do Autor, 1925.
Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense, 1999.

Carlos Carvalho Cavalheiro
carlosccavalheiro@gmail.com

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No palco feminista

Carlos Carvalho Cavalheiro: Resenha ‘No palco feminista’

Carlos Carvalho Cavalheiro
Carlos Carvalho Cavalheiro
Adriana Rocha
Adriana Rocha Leite

No Palco feminista.

Este é o título do livro recém-publicado pela escritora Adriana Rocha Leite.

Advogada de profissão, especialista em mediação e comunicação não-violenta, Adriana – que já tem em seu ‘cartel’ mais de dez títulos publicados – enveredou pela estrada que leva a um lugar de reflexão do papel da mulher na sociedade e dos desafios diante de uma cultura massivamente patriarcal e machista. Nesse caminho, colheu as mais interessantes palavras com as quais vestiu as histórias contadas nesse livro.

Em ‘No palco feminista’, Adriana narra a trajetória de três personagens femininas, que, aparentemente, refletem a mesma mulher em processo de construção de sua identidade – essa busca de saber quem somos no lugar em que estamos – da infância, passando pela juventude e pela maturidade.

Poeticamente, as personagens de Adriana Rocha Leite possuem em seu nome o mesmo sufixo ‘ina’: Carina, Santina e Justina. Menina, feminina, mas, também, designativo feminino para muitas palavras: maestrina, inquilina, divina, taurina, matutina, bailarina…

Carina é a menina que procura entender o mundo que a rodeia e as regras sociais estabelecidas para a mulher. Não é necessariamente uma pessoa passiva, muito pelo contrário, mas que busca nas brechas as rotas de saída para a sua sobrevivência. Assim, vai entendendo o funcionamento da máquina que move a sociedade e, ao fim, por meio da aquisição do conhecimento, se transforma. Talvez, seja possível imaginar que o nome Carina se refira a caridade em sua etimologia: caritas, amor incondicional, algo caro, que possui valor. A transformação da consciência de Carina é, de fato, uma conquista de grande valor numa sociedade que ainda insiste em separar os seres humanos – por gênero, cor, etnia, religião, pensamento… – para produção da desigualdade.

Santina é a jovem que decide seguir as normas sociais e se tornar coadjuvante na vida de casada. O nome remete, parece, a santa e isso nos leva a diversos referenciais como a de mártir que abre mão de sua vida por algo que aparentemente é um bem maior. No entanto, a sua consciência se desperta no dia do casamento e ela percebe que esse não é a melhor opção. Quando somos jovens, tanto homens quanto mulheres, em geral ainda não desenvolvemos a maturidade suficiente para as nossas melhores escolhas. Mas a narrativa de Adriana Rocha vai um pouco mais a fundo. Ela desvenda o mundo em que a existência da mulher, via de regra, só é permitida quando associada a um homem. “Por trás de um grande homem há uma grande mulher”, diz o adágio. Por que atrás do homem? Por que não pode estar ao seu lado? “E eu os declaro marido e mulher”. Por que o homem é sempre homem, mesmo se não estiver casado, mas a mulher só se torna tal quando se casa? Que força tem essa união com o homem que legitima o reconhecimento da pessoa feminina como mulher?

Justina, por outro lado, é a mulher madura que já se viu em todas as outras situações vivenciadas pelas outras personagens e, também, por situações outras como a de abuso na infância. Porém, guerreira, ela superou todas e, agora, ensina as mulheres a não se sujeitarem mais aos desmandos do machismo. Alcançou a justiça (acho que é daí a inspiração do seu nome) e está num pedestal como a mulher que luta por seus direitos. Refaço a conclusão: ela não está no pedestal (talvez, Santina estivesse). Ela está no palco. Mas, agora, ela é a protagonista!

Ao final do livro, Adriana nos traz a trajetória da atriz Dina Lisboa, que rompeu com os padrões conservadores de sua época.

O livro ‘No palco feminista’, de Adriana Rocha Leite é leitura obrigatória para toda e qualquer pessoa. Para as mulheres, há de servir como inspiração. Para os homens, certamente, como lição a ser aprendida.

Carlos Carvalho Cavalheiro

19.12.2023

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Um país sem cultura é um corpo sem alma

Carlos Carvalho Cavalheiro: Entrevista

“Um país sem cultura é um corpo sem alma.” (Walter Franco)

Walter e Diogo Franco, Adilene Ferreira Carvalho Cavalheiro, Fernanda Ikedo e Carlos Carvalho Cavalheiro no camarim da Fundec em 2011. Walter Franco está segurando o exemplar do jornal Sepé-Tiaraju com a sua entrevista.
Walter e Diogo Franco, Adilene Ferreira Carvalho Cavalheiro, Fernanda Ikedo e Carlos Carvalho Cavalheiro no camarim da Fundec em 2011. Walter Franco está segurando o exemplar do jornal Sepé-Tiaraju com a sua entrevista.

O ano era 1994. Walter Franco, ícone da música brasileira, viria a Sorocaba, cidade do interior paulista, para realizar uma apresentação musical num bar. Era o dia 13 de maio e eu acabara de completar 22 anos de idade.

Apreciador da obra de Walter Franco, eu não me contentei apenas em assistir ao show. Eu o entrevistei – quase que de madrugada – após a apresentação. Simpático, o artista recebeu a mim e amigos para a entrevista que foi publicada no jornal cultural Sepé-Tiaraju.

No dia 29 de junho de 2011, dezessete anos depois, Walter Franco retornou à cidade para o show “Raça Humana”, com a participação de seu filho Diogo Franco. Na oportunidade, consegui entregar o exemplar do jornal de 1994, com a entrevista que fiz com ele. Walter Franco, então, pediu para que eu desse um autógrafo!

Claro que eu também pedi o meu. Walter Rosciano Franco nasceu em São Paulo em 6 de janeiro de 1945 (Dia de Reis). Faleceu em 24 de outubro de 2019, aos 74 anos de idade, após sofrer um AVC. Foi um dos grandes nomes da música popular no Brasil. Eis a íntegra da entrevista de 1994:

“Ele subiu ao palco com seu violão. Sentou-se num banquinho. Conversou com o público, apresentou sua banda e orquestra com corais e maestro imaginários. Cantou. E como não poderia deixar de ser, encantou. Pela primeira vez em vinte e poucos anos de carreira artística, Walter Franco se apresentou em Sorocaba no dia 13 de maio pp. no Bar Koisa Nossa. Após o show, ele concedeu a entrevista que vocês irão conferir agora. Agradecimentos especiais ao Cícero, ao pessoal do Koisa Nossa e da Ge-Hum pela colaboração, sem a qual esta entrevista não poderia ser realizada”.

Carlos Carvalho Cavalheiro – Walter, você estava desaparecido nos últimos tempos. Por onde você andava?

Walter Franco – É circunstancial essa minha parada… no disco. Na música, não. Eu tenho feito uma carreira mais sutil, digamos assim. Eu tenho me apresentado ciclicamente, nos espaços em São Paulo, algumas capitais que me atraem muito, e interior também. Tenho procurado não me afastar totalmente.

E acontece comigo um mistério grande: mesmo que eu desapareça por algum tempo, quando eu volto, o público aumenta. Há uma resposta grande para mim. Isso me deu tranquilidade porque eu nunca, na minha carreira toda, sempre me neguei a fazer um disco comum, nunca joguei esse jogo da mídia.

E acredito que, atualmente, seja uma consequência natural disso. As pessoas me chamam, eu estou mais disponível. Fechei para balanço. Continuei trabalhando com música, me aperfeiçoando, buscando compreender esse processo de autoconhecimento, mas não culpo ninguém por isso, não.

Eu sou responsável pelas coisas boas ou não-boas que me acontecem. Mas, não me afasto, não. Eu simplesmente tenho estado presente de uma forma mais sutil. Não tanto pela grande mídia, mas tenho estado presente esse tempo todo.

CCC – Você musicou letras de autoria de seu pai, Cid Franco. Fale um pouco sobre ele e sua influência em seu trabalho.

WF – Foi meu grande amigo, meu mestre na arte de discernir a vida, principalmente a partir dos princípios éticos, morais, enfim, coisas que hoje em dia estão meio postas de lado. Mas foi meu grande amigo e, circunstancialmente, por coincidência, nesta encarnação – nesta “encadernação” – foi, também, meu pai.

Foi um político, o primeiro vereador socialista eleito no Estado de São Paulo, mas, como político, um grande poeta. Uma pessoa que vivenciava, na verdade, os seus achados poéticos. E uma pessoa que deixou, para mim, para meus filhos, enfim, era uma pessoa pública, acredito que um dos maiores exemplos que um ser humano possa deixar, que é do desapego.

Uma pessoa que dedicou a sua vida a estudar Mahatma Gandhi, a vida de Cristo, a pesquisar as linguagens alternativas, já naquela época, desde discos voadores até a dedicação à literatura infanto-juvenil, à poesia, à literatura, prosa, o jornalismo, o radicalismo, enfim… Mas uma pessoa voltada para o crescimento do ser. Uma pessoa que buscava se aperfeiçoar.

Um político que, na verdade, passou para a outra vida em função do sofrimento porque foi cassado pelo Golpe de 64, por razões ideológicas, por ser um homem de esquerda, um socialista democrático, mas que deixou para nós, para mim, para os meus filhos, para minha família, para as pessoas todas que vocês viram aqui presentes,[1] o exemplo do amor fraterno.

Uma pessoa que nos ensinou a não sentir ódio ideológico, a combater o ódio ideológico, a conviver, a se relacionar até mesmo com os contrários ideologicamente. Eu acho isso o maior exemplo que o ser humano nessa vida pode aprender, a se aperfeiçoar na arte de conviver com os opostos, e se reduzir a zero, como diria Mahatma Gandhi, se colocar no último degrau dos seus semelhantes.

E aqui não vai nenhum sentido messiânico, místico- religioso, não. O princípio de fraternidade, de amizade, de humildade, enfim, sem sentido pejorativo nenhum, como diria Mahatma Gandhi: “Não haverá nenhuma salvação para eles”. Eu tive o privilégio de conviver com as artes, com a poesia, com a literatura, com a música desde garoto na minha própria casa. Talvez, por isso, eu tenha saído meio do jeito que sou.

CCC – Nos seus dois primeiros discos (Ou não e Revolver) você desenvolveu um trabalho mais de vanguarda, experimentalista, se é que assim podemos qualificar. Já a partir do terceiro LP (Long Play), Respire Fundo, houve uma mudança de estilo bem perceptível. Como está hoje o seu trabalho? Esse é o prenúncio de uma nova fase?

WF – Acredito que sim. A gente é a soma daquilo que fomos e do que fizemos. Eu sou a soma disso tudo. Busco me aperfeiçoar. Não há segredo nenhum nisso. Não há nem o personagem artista. Eu sou uma pessoa que está buscando se aperfeiçoar nesse caminho.

CCC – Neste show você se apresenta apenas com violão. Por quê?

WF – Isso tem a ver com o momento. Eu tenho várias alternativas. Eu trabalho com banda, tenho uma superbanda com seis músicos… uma banda concreta (risos).[2] São músicos de primeira. Eu tenho a satisfação de ter sempre tocado com grandes músicos, de João Donato a Wagner Tiso, aos meninos dos Mutantes, enfim, a minha trajetória, se você olhar os meus discos, a ficha técnica do “Respire Fundo” tem mais de 150 músicos…

CCC – Até mesmo o Lobão…

WF – Até o Lobão, até o Lulu Santos, enfim, eu tenho essa satisfação. Mas, no momento, histórico que estamos vivendo, o artista tem que ter várias alternativas para trabalhar.

Assim, como eu viajo com banda para espaços maiores, com produções maiores, eu viajo também com trabalho experimental, com engenheiros de som, trabalho que venho desenvolvendo há muito tempo, e viajo, também, só com violão solo; voz e violão, dessa maneira que vocês viram porque eu acho que o artista é um trabalhador, ele tem que estar presente. A mim me interessa estar presente fisicamente com as pessoas, com vocês e, profissionalmente, é importante isso porque é daí que a gente vive e sobrevive.

CCC – Você influenciou uma geração de roqueiros nos anos 80: Arnaldo Antunes (ex-Titãs), Camisa de Vênus (que regravou “Canalha”), Olho Seco (que regravou ‘Feito gente”)… Como você vê essa influência numa geração posterior, uma década depois de seu surgimento no cenário brasileiro?

WF – Eu acho que é isso que a gente quer. Quando a gente faz alguma coisa, a gente imagina que chegue a algum lugar. E, de fato, o Arnaldo[3] deu algumas entrevistas falando do resgate dessa linha evolutiva do “Revolver”, do “Araçá Azul”.[4] É meu parceiro também. Tenho uma canção inédita com ele.

O “Camisa de Vênus” me deixou feliz, e tantos outros, o próprio João Gordo do Ratos de Porão deu uma declaração falando do trabalho da gente como precursor dessa coisa punk e tal. Eu sempre atuei em vária faixas. A minha música vem desde o silêncio até o grito primal. Eu sempre trabalho dessa maneira. Talvez por isso eu tenha atingido tantas regiões, digamos assim, da musica.

CCC – É difícil ser um artista autêntico no Brasil? Artista que não se vende aos ditames da mídia e do mercado?

WF – O estar distante da mídia é circunstancial. Eu não parto desse princípio. É óbvio que há fases, a moda conduz a música popular para esse ou para aquele caminho. Mas como artista eu sempre estive na grande mídia. Eu sempre pertenci a grandes gravadoras. Eu nunca fiz um trabalho independente.

Eu sempre tive o apoio das grandes gravadoras para fazer meu trabalho. Se não gravei durante esse tempo todo é circunstancial, tanto quanto Paulinho da Viola que ficou sete ou oito anos sem gravar, e tantos outros. Mas eu acredito que o artista , na verdade, ele tenha mais poder. Não poder a partir da volúpia, a volúpia de poder, mas um poder oriundo de sua própria natureza.

Enquanto um político sobe ao palanque para fazer um discurso em época de eleição, atrás de votos, e essa coisa toda; enquanto um militar impõe o poder a partir de seu próprio status; o artista sobe ao palco e canta um refrão e estimula toda uma multidão, toda uma plateia.

Então, é preciso que os artistas em geral também partam para isso. Não se deixem usar simplesmente em época de eleição para esse ou aquele candidato, enfim, essa coisa toda. Porque o país sem cultura, sem querer ser redundante e cair num lugar comum, é um corpo sem alma.

Tivemos a experiência a pouco de um presidente que foi cassado,[5] que a primeira coisa que fez foi bloquear o estímulo à cultura. Por quê? Porque um povo culturalmente bem informado é um povo atento. Essa é a função dos artistas, de manter, de uma forma ou de outra, esse estímulo.

CCC – Proposta de um novo disco? Você volta a gravar?

WF – Espero que sim. Estou com um trabalho novo, estou compondo, fazendo as coisas. Vai depender do ritmo das coisas. Estou relançando agora dois LP’s em CD pela Warner, Continental-Warner e isso, com certeza, está dando um pique grande para a continuidade do meu trabalho posteriormente.

CCC – Como você define o seu trabalho hoje?

WF – Eu nunca defini o meu trabalho. Ele sempre foi definido pelas pessoas. Eu prefiro permanecer assim.

CCC – E, para encerrar, você gostaria de deixar alguma mensagem?

WF – Eu quero: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.

Carlos Carvalho Cavalheiro

[1] Walter Franco tinha familiares residentes em Sorocaba e que assistiram ao seu show naquele dia.
[2] No show, Walter Franco simulou a existência do acompanhamento de uma banda imaginária.
[3] Arnaldo Antunes
[4] Disco experimental de Caetano Veloso.
[5] Fernando Collor de Mello

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Movimento Cultivista Café com Poemas abre chamada para Coletânea

O Movimento Cultivista Café com Poemas, surgido em 2013 na cidade de Belo Horizonte, está promovendo um chamado de poetas que queiram participar da publicação de uma coletânea

O Movimento Cultivista Café com Poemas, surgido em 2013 na cidade de Belo Horizonte, está promovendo um chamado de poetas que queiram participar da publicação de uma coletânea.

A proposta faz parte dos objetivos do Movimento que tem o propósito de promover a literatura nacional entre escritores e leitores.

Essa coletânea, de alta qualidade, fortalece a credibilidade que vem sendo conquistada desde 2013 e busca promover autores que desejam uma oportunidade para divulgar sua arte. O Brasil é um celeiro de poetas, mas nem todos têm condições econômicas para publicar um livro.

As coletâneas têm sido uma resposta positiva para os poetas – especialmente os iniciantes – que conseguem dessa maneira publicar seus trabalhos ao mesmo tempo em que vão consolidando seu nome e sua autoestima.

Podem participar dessa coletânea todos os poetas residentes ou naturais do Brasil, de qualquer idade, sendo que autor menor de idade deve ser representado por seu representante legal que deverá fornecer autorização escrita no ato da inscrição.

Essa coletânea de poesias, com temas variados será realizada pela Editora e Livraria Novos Sabores Publicações. A organização será de Leandro Flores e Priscila Mancussi, com a colaboração dos coordenadores do Movimento Cultivista pelo Brasil. Priscila Mancussi é poeta de Sorocaba e participante da FLAUS (Feira do Livro e Autores Sorocabanos).

Os poetas interessados em participar da Coletânea devem realizar a inscrição virtual por meio do link:  https://forms.gle/X5fE2mcrFJGpR33B9

O prazo de inscrição se encerra no dia 31 de julho.

O autor selecionado se compromete a contribuir com o valor de R$50,00 (cinquenta reais) por página com direito a 1 (um) exemplar ou R$100 (cem reais) por página com direito a 3 (três) exemplares.

Outras informações de contas e agências poderão ser disponibilizadas. Favor entrar em contato por e-mail: mov.cafecompoemas.sorocaba@gmail.com ou por meio dos telefones: (71) 991535442 ou (15) 988094331.

MAIS INFORMAÇÕES

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Antologia reúne escritores de Angola, Brasil e Portugal

No dia 23 de julho, além do lançamento do livro, ocorrerá o I Encontro dos Escritores da Língua Portuguesa, e apresentação cultural dos 3 países

A 1.ª Antologia da FEDERAÇÃO BRASILEIRA DOS ACADÊMICOS DAS CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES – FEBACLA, dos Escritores de Língua Portuguesa, que irá agregar cerca de 30 escritores lusófonos (Angola, Brasil e Portugal), define um importante marco na história da literatura de língua portuguesa no cenário internacional, por reunir, além da arte poética intrínseca em si mesma, diferentes povos, culturas, histórias, falas e vivências.

A presente Antologia é um verdadeiro cancioneiro de belas flores poéticas que se desafia a marcar a sua posição na história da literatura mundial como um elemento importante na perpetuação dos vários modos de falas e dos respectivos povos. Constitui-se como uma ferramenta de empoderamento e posicionamento no vasto universo das artes.

Pela sua dimensão internacional é um instrumento eficaz que elevará as diferentes formas de comunicar com a língua para além dos limites fronteiriços geográficos atualmente impostos pelos continentes.

A Antologia é organizada pela brasileira Rita Melo e pelo angolano Kapa Afonso.

Dentre os escritores convidados para figurar na Antologia está Dom Alexandre da Silva Ruricovich Carvalho que tem se destacado à frente da presidência da Febacla e como um dos maiores incentivadores da arte e da cultura no Brasil. Por intermédio de sua atuação, Dom Alexandre tem concedido inúmeras honrarias a escritores, cientistas, artistas e intelectuais.

Ainda representando a Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente e o Centro Samarthiano de Altos Estudos Filosóficos, Dom Alexandre Ruricovich Carvalho tem honrado muitos produtores de cultura com medalhas, comendas e títulos honoríficos.

O evento de lançamento da Antologia será transmitido via internet para os países participantes.

Lançamento no Brasil 23 de julho, no FESTIVAL DE INVERNO DO SESC – Teatro SESC, ás 19 h
Lisboa (12\outubro) e em Vila Nova de Mil Fontes (14\outubro).

No dia 23 de julho, além do lançamento do livro, teremos o I Encontro dos Escritores da Língua Portuguesa, e apresentação cultural dos 3 países.

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No caminho das Tropas, o sonho de Liberdade

“No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente”. (Carlos Cavalheiro)

Carlos Cavalheiro

No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente. Acredita-se que as longas viagens realizadas por lugares inóspitos e desabitados (e que assim permaneceram por muito tempo), forjaram o espírito do tropeiro com a tendência à vida livre e solta.

Sendo o fenômeno do tropeirismo coincidente, em significativa parcela, com a escravidão negra, é de se pensar se houve alguma relação entre o tropeirismo e o sonho de liberdade dos escravizados. Em outras palavras, se o tropeirismo tornou-se alternativa para o rigor do cativeiro.

O historiador Aluísio de Almeida afirma que “Manuel Cardoso (1961) provou que a escravidão no Rio Grande do Sul foi mais benigna, porque os escravos eram boiadeiros. Podemos chegar a mesma conclusão em Sorocaba onde os escravos tropeiros eram bem tratados. Os tropeiros” (ALMEIDA, 1969, p. 2). Florisbela Carneiro Zimmermann defende a ideia de que o trabalho em comum entre patrões e peões na lida tropeira aproximou a ambos. Sendo assim, o “dono das tropas soube melhor compreender seus subordinados” (ZIMMERMANN et al, 1991, p. 19).

Desse modo, é possível que escravizados e libertos tenham preferido a lida nas tropas a outros trabalhos. No entanto, em quais fontes podemos encontrar a presença do escravizado ou do liberto (africano ou seu descendente) dentro do tropeirismo?

Algumas gravuras de Debret como Tropeiros e Pouso de tropeiros confirmam a presença de africanos e seus descendentes nas tropas (FLORES, 2004, p. 460). Porém, outra fonte valiosa para o estudo da presença de africanos e descendentes, especialmente enquanto escravizados, pode ser encontrada nas publicações de fugas espalhadas pelos diversos jornais de praticamente todo o Brasil.

Neste artigo, nos deteremos nas décadas de 1820 a 1850, época em que o tropeirismo está se consolidando, ao mesmo tempo em que a escravidão começa a ser questionada enquanto forma viável de exploração do trabalho, culminando, nessa época, com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz que proibiu o tráfico negreiro intercontinental, ou seja, da África para o Brasil.

Além disso, foi nessa época, também, que o país se torna politicamente independente e, depois de algumas crises, se estabiliza com a ascensão do segundo monarca. Portanto, este recorte, apesar da arbitrariedade inerente a ação do pesquisador – pois todo recorte é, de certa forma, arbitrário – não deixa, por outro lado, de se justificar.

Aqui, também, não se distinguirá, a princípio, a tropa xucra da arreada. Não é o fato de que se desconheçam as diferenças entre uma e outra realidade, mas, por outro lado, percebe-se, pelas fontes compulsadas, que o tropeiro escravizado, na maioria das vezes, poderia se empregar em qualquer uma das duas modalidades de tropa.

O padre Francisco de Assis Ribeiro, capelão do 7º Batalhão em Santa Efigênia, São Paulo (capital), por exemplo, oferecia para compra um escravo de 40 anos de idade e que possuía as seguintes qualidades: “bom cosinheiro, lava e engoma bem roupa, bom arreador de tropa, mestre de vallo e carreiro, bom pagem” (O FAROL PAULISTANO, 28 set 1830, p. 4). Esse escravizado estaria apto a trabalhar, em tese, tanto com tropa xucra quanto arreada, até mesmo pelo fato de ser considerado bom cozinheiro.

Já outro escravizado, do Rio de Janeiro, era vendido como “bom campeiro, adomador de mulas e cavalos, he próprio para bolieiro” (JORNAL DO COMMERCIO, 8 jan 1830, p. 2).

Na década de 1850 fugiu de Campinas, possivelmente com destino a Sorocaba, um escravizado de nome Antônio, o qual, de acordo com a publicação dos jornais, “carrea, doma, e inculca-se camarada de tropa” (CAVALHEIRO, 2006, p. 56). Curiosamente, alguns destinos desses escravizados em fuga e que buscavam trabalho nas tropas, eram recorrentes.

Sorocaba era um desses destinos e isso se explica pelo fato da existência de uma concentração de tropas nessa cidade por conta da Feira de Muares que ocorria anualmente e do Registro de Animais e cobrança de impostos a partir de 1750 (ALMEIDA, 2012, p. 59).

Benedicto, por exemplo, escravo de Francisco Ferreira Prestes, que fugira em 1870, provavelmente se dirigira para Sorocaba e “desconfia-se que queira justar-se como camarada em alguma tropa que siga para Minas” (O SOROCABANO, 05 jun 1870, p. 01).

Rio de Janeiro, então capital do país, também era uma terra buscada pelos fugitivos que desejavam vender sua força de trabalho para as comitivas tropeiras. De Goiás, por exemplo, fugiu a Domingos José Dantas de Amorim o escravo Florêncio, que, segundo acreditava-se, “consta que anda como camarada de Tropa no caminho do Rio de Janeiro com o nome de Joãosinho Cuiabano” (O UNIVERSAL, 19 mar 1830, p. 4). De Silveira, Distrito de Lorena, “na estrada geral que segue para a Corte do Rio de Janeiro”, fugiu o escravizado Severino, de nação quilimã, “com o officio d’arreador de tropa” (O FAROL PAULISTANO, 16 abr 1831, p. 4).

Um fato curioso e inusitado. Há um anúncio de fuga que afirma ser o escravo um “índio”, em época na qual a escravização de indígenas no Brasil estava proibida. Mais curioso ainda é o relato desse anúncio que afirma que o fugitivo “falla Inglez, Português e Hespanhol” e que teria se “aneixado a alguma tropa que vai para Minas” (JORNAL DO COMMERCIO, 22 jan 1830, p. 3). O fato teria ocorrido na Ponta do Caju, no Rio de Janeiro.

De São Paulo fugiu Aleixo, que “teve principio de alfaiate e foi algum tempo tocador de tropas de animaes”, tendo se dirigido para os lados do Rio de Janeiro (O NOVO FAROL PAULISTANO, 30 abr 1833, p. 4).

Sorocaba, Rio de Janeiro e Minas Gerais eram destinos procurados por escravizados fugitivos que pretendiam trabalhar com tropas. Mas, por outro lado, os escravizados dessas localidades procuravam fugir para longe das vistas de quem os pudesse reconhecer. De Sorocaba fugiu Marcolino, com destino, possível, para Itapetininga ou Freguesia do Pillar. Apesar de lidar “soffrivelmente com animaes”, Marcolino “já esteve em Mogy-Mirim cuidando em tropas de bestas invernadas” (A PROVINCIA DE S. PAULO, 31 maio 1876, p. 3).

Da Villa de Valença, Província do Rio de Janeiro, fugiu e foi preso na Freguesia da Sé, em São Paulo, o escravizado Joaquim, o qual trabalhava para um senhor que era proprietário de engenho de café e de tropa (O PAULISTA OFFICIAL, 15 jan 1836, p. 4).

Muitos anúncios de fugas dão conta de que os escravizados já possuíam experiência em trabalho com tropas. Além dos acima já citados, há outros como é o caso de Adão, da Villa de Rezende, no Rio de Janeiro, o qual é “inclinado a lidar com tropa, ou carro” (JORNAL DO COMMERCIO, 12 jul 1830, p. 4). Ou Antônio, de nação Congo, morador da Villa de Pomba em Minas Gerais e que era “negro de roça, e também sabe lidar com tropa” (O UNIVERSAL, 30 out 1835, p. 4).

Também é o caso de outro Antônio, da nação Moçambique, residente em Catta Branca, Minas Gerais, o qual fugiu e era tido como “acostumado a andar com tropas” (O UNIVERSAL, 25 maio 1836, p. 4).

No Rio de Janeiro anunciou-se a venda de um escravo que “era bom cozinheiro de tudo” e que “também sabe tratar de cavallos” (JORNAL DO COMMERCIO, 20 set 1830, p. 3). Martinho, escravo morador em Jundiaí, interior de São Paulo, foi visto, depois de ter fugido, em Bragança. Considerava-se que fosse bom cozinheiro e que “mette-se a lidar com animaes” (A PHENIX, 24 fev 1841, p. 4). De Mogy-Mirim foi anotada a fuga de um escravizado que “lida com tropa” (A PHENIX, 24 abr 1839, p. 4). João, de nação Congo, vivia em Mercês da Pomba, Minas Gerais, e “vive de tropa” (O UNIVERSAL, 29 out 1838, p. 4). Outro fugiu de Silveira, na Província de São Paulo, e tinha “habilidade para tropa carregada” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 7 jul 1834, p. 4).

Ignácio era “muito intelligente para lidar com tropa arreada”, conforme o anúncio de sua fuga (O NOVO FAROL PAULISTANO, 19 nov 1836, p. 4). E o escravo do Bispo Diocesano, chamado Lourenço, foi “encontrado em uma tropa a caminho de Santos” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 21 jan 1837, p. 4).

Registrou-se também o caso de um escravo que “fugio da borda do campo indo para Sanctos com a tropa do seu senhor” (O FAROL PAULISTANO, 23 fev 1830, p. 4). Eleutério, de Campinas, sabia “andar com tropas, e talvez mesmo queira ser arrieiro” (O PIRATININGA, 4 set 1849, p. 4). Miguel, de Caçapava, “entende do ofício de tropeiro, é muito inclinado a lidar com animaes, e por isso pode ser que se intitule por forro e se ajuste em alguma parte para andar com tropa ou lidar com animaes” (AURORA PAULISTA, 31 jul 1852, p. 4).

Não bastassem as gravuras de Debret e os anúncios de jornais aqui coletados, há ainda a afirmação do historiador Aluísio de Almeida:

Vê-se que também entre os componentes de tropeiros havia escravos. Estes, apesar de pretos, adquiriam as qualidades mestras do gaúcho tropeiro: domadores, peões perfeitos, negociantes ou barganhistas, nisto muito e muito homens do sul paulistas (ALMEIDA, 1981, p. 13).

Todos esses casos citados são suficientes para corroborar a afirmação de que escravizados e libertos trabalharam como tropeiros. Ademais, o engajamento em uma tropa poderia significar, para o escravo fugido, a possibilidade de manter-se em liberdade, dada a característica nômade da profissão e a intensa mobilidade, o que, seguramente, dificultava a identificação e localização.

Por outro lado, apesar das inúmeras fontes apontando para a presença de escravizados e libertos nas tropas – tanto xucras quanto arreadas – pouco ainda se tratou do assunto na historiografia. A memória que perdura é a da presença de “brancos”, livres e portadores de uma cultura que mesclava a paulista com a do sul, então em formação, especialmente no comércio de muares xucros no trajeto de Viamão a Sorocaba. Qual terá sido a contribuição de africanos e seus descendentes na formação cultural do sul paulista e dos estados do sul do país em terras de passagem das tropas?

Afinal, o trânsito das tropas unificou o Brasil não somente do ponto de vista territorial, mas, sobretudo, cultural, pois “os tropeiros de tropas xucras e arreadas cumpriram um papel da mais alta importância na unificação cultural do país, como veículos difusores de notícias e de ideias” (BONADIO, 1984, p. 47).

Perceber a presença desses escravizados e libertos nas tropas de animais ajuda a entender a formação da cultura dessas localidades percorridas pelos tropeiros, mas, ainda, permite ampliar a visão sobre as estratégias de sobrevivência encontradas por africanos e seus descendentes nas trincas do sistema escravista. Possivelmente, para quem estava em situação de escravização, o ajuste em alguma tropa deve ter possibilitado a manutenção do sonho da liberdade.

Referências

ALMEIDA, Aluísio de. A feira de 1852. A feira e os jornais da época. In Cruzeiro do Sul, 04 jan 1981, p. 13.

______. Crueldade e mansidão dos senhores escravos. In Cruzeiro do Sul, 04 fev 1969,

p. 2.

______. História de Sorocaba. Itu: Ottoni, 2012.

BONADIO, Geraldo. O tropeirismo e a formação do Brasil. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, Fundação Ubaldino do Amaral, 1984.

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006.

FLORES, Moacyr. Etnias dos Tropeiros. In. SANTOS, Lucila Maria Sgarbi., BARROSO, Vera Lúcia (ORGs.). Bom Jesus na rota do tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre: EST, 2004.

ZIMMERMANN, Florisbela Carneiro., ZIMMERMANN NETO, Adolfo. Biribas – A contribuição do tropeiro à formação histórico-cultural do Planalto Médio sul-rio-grandense. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 1991.

E jornais citados ao longo do texto.

Carlos Carvalho Cavalheiro
19.03.2023

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Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Religiões afro-caipiras de São Paulo – Do século XVIII ao início do século XX'

Carlos Cavalheiro

Religiões afro-caipiras de São Paulo – Do século XVIII ao início do século XX



RESUMO

O presente artigo pretende analisar algumas informações sobre as chamadas “feitiçarias” ligadas às tradições africanas e afro-brasileiras/afro-diaspóricas, restritas ao interior do Estado de São Paulo, do século XVIII até o início do século XX, quando tais práticas religiosas vão sendo superadas por formas mais estruturadas e organizadas de religiosidade como a Umbanda e o Candomblé. Pretende-se, ainda, produzir uma memória de tais eventos de maneira a estabelecer um referencial histórico sobre as transformações das religiões (e da religiosidade) africana e afro-brasileira no Estado de São Paulo. A análise de diversos casos revelou a predominância da cultura religiosa dos grupos bantos no interior paulista.

Palavras-Chaves: Macumba paulista; Religiões Afro-caipiras; Umbanda; tradições bantos; Batuque

 Introdução

Novembro de 2012. Dentro da Igreja construída pelo negro João de Camargo, no início do século XX, em comemoração ao dia de Zumbi e da Consciência Negra, ocorreu um ato ecumênico com a presença de um padre católico, um pastor protestante e lideranças do candomblé e da umbanda. O evento, mesmo no século XXI, pareceu inusitado, mas ocorreu com mútuo respeito entre os religiosos. 

Um século antes, o construtor daquele templo era processado e julgado por curandeirismo e charlatanismo. João de Camargo constituiu um culto específico, uma mescla de tradições africanas, católicas e espíritas. O ajuntamento de pessoas ao redor de sua capela motivou a ação das forças sociais e políticas da cidade que não viam com bons olhos o que acreditavam ser um culto calcado na ignorância e no fanatismo. Temia a elite da cidade, que se reproduzissem em Sorocaba, cidade do interior paulista, o mesmo que ocorrera com Antônio Conselheiro em Canudos ou com os monges místicos da Guerra do Contestado. Pior ainda, pois a liderança desse novo culto apresentava o seu templo como a “Igreja Negra e Misteriosa” da Água Vermelha (CAVALHEIRO, 2020). 

João de Camargo, porém, não foi o primeiro e nem o último dos “sacerdotes” de cultos religiosos de matriz africana a atemorizar as elites brancas de São Paulo. Pode-se mesmo dizer que houve uma infinidade de cultos dessa natureza que permearam a história paulista, permitindo-nos dizer que, em conjunto, tratava-se de religiões afro-caipiras. 

A proposta do nome advém da formação dessas tradições que mesclam aquilo que foi gestado em algum tempo na África, mas sob uma releitura no Brasil, especialmente, no espaço geográfico em que hoje se encontra o Estado de São Paulo. Por caipira, então, entende-se a cultura que se formou a partir da experiência de contato entre indígenas e luso-brasileiros em plena decantação nas terras piratininganas. 

O sociólogo Roger Bastide preferiu chamar a esses cultos de “macumba paulista”. O nome é simpático e traduz uma totalidade que abarca as diferentes experiências religiosas realizadas pelos africanos e seus descendentes no território paulista. Ocorre que, a despeito dessa funcionalidade, o termo “macumba” parece não ter sido utilizado em São Paulo antes do século XX. 

Aparentemente, salvo engano, o termo “macumba” foi mais utilizado no Rio de Janeiro. Em São Paulo era comum dizer-se de feitiço, calundu, mandinga, caiumba, calunga, cabula, cambinda (cabinda), zangús ou zungús. Ainda assim, esses termos não são exatamente específicos e podem ter conotações diferentes, mesmo em contextos parecidos. 

Caiumba, por exemplo, pode-se referir ao feitiço realizado durante uma celebração, como pode, também, se relacionar apenas a dança do batuque. Antônio Filogênio de Paula Júnior salienta que “Batuque de Umbigada é o termo que foi utilizado pelos pesquisadores para denominar a dança-rito da Caiumba. A palavra Caiumba é o termo utilizado pelos mais antigos membros desta tradição e revela algo mais significativo para os seus praticantes, pois indica a celebração de um encontro ancestral” (PAULA JÚNIOR, 2022, p. 69). 

O termo Calunga corresponde ao mesmo tempo às sepulturas e túmulos, como também a cruzes que indicam os locais derradeiros de pessoas, e, ainda, um culto realizado às escondidas no cemitério (CAMPOS, FRIOLI, 1999). 

Roger Bastide, apesar de cunhar o nome de “macumba paulista”, chega a problematizar o seu uso: 

As casas em que se reuniam os negros para celebrar os cultos denominavam-se aqui, nessa época, batuques. É um nome que permaneceu em todo o Sul para designar as cerimônias fetichistas, em particular, em Porto Alegre. Se o termo macumba substituiu em São Paulo o de batuque, o único empregado antigamente foi sob a influência do Rio e também em consequência da deturpação, que teremos de analisar, da verdadeira religião (batuque) em magia negra (macumba). Ora, temos várias posturas de Câmaras Municipais proibindo essas reuniões rituais, como por exemplo uma de Campinas, datada de 1876 (BASTIDE, 1983, p. 195 – 196). 

O vulgo entende, até os dias atuais, que macumba seja a prática de magias para o mal. Esse conceito é totalmente permeado de uma cosmovisão cristã que diferencia o que é bom daquilo que é mau. Porém, nas culturas africanas, sobretudo as de origem bantu, esse conceito não se ajusta. 

A princípio, o termo macumba designava o instrumento musical usado nos antigos terreiros afro-brasileiros, feito de um tubo de taquara ou ipê com cortes transversais, e tocado por duas varetas. Depois passou a identificar os cultos africanos praticados pelos escravos no Rio de Janeiro e, finalmente, foi associado à umbanda. Para os leigos, macumba é toda prática de feitiçaria dedicada ao mal, o que, aos olhos da umbanda, está a cargo da quimbanda e de outras modalidades de culto (CORTEZ, [1986], p. 4). 

No entanto, o vulgo não somente que associa a macumba às práticas de feitiçaria para o mal, como, também, utiliza-se do termo para “designar a totalidade dos cultos afro-brasileiros (candomblé tradicional, candomblé abrasileirado, umbanda popular, umbanda esotérica, quimbanda e demais variações), num sentido pejorativo, como sinônimo de ‘feitiçaria primitiva’” (DUBUGRAS et al, s/d, p. 34). 

Sobre esse artigo do Código de Posturas de Campinas, citado por Bastide (1983), o texto legal diz o seguinte: “Art. 93. – São prohibidas as casas conhecidas vulgarmente pelos nomes de – zangús e batuques. Os donos ou chefes de taes casas serão punidos com a pena de oito dias de prisão e 30$000 de multa, e o dobro nas reincidências”.[1] A Câmara Municipal de Santos publicou semelhante legislação em 1870: “Art. 44. – São prohibidas as casas de batuque, vulgarmente chamadas zungús, e bem assim os ajuntamentos dos escravos nas ruas e praças da Cidade: os donos das casas e os escravos serão punidos com dois dias de prisão”.[2]

É difícil captar os pormenores desses cultos. Primeiramente porque seus cultores não deixaram registrado por escrito os mistérios e segredos de sua religião. O que sabemos são, na mais das vezes, informações filtradas por olhares que, em geral, olhavam para tais manifestações com desprezo, desconfiança e presunção. Os que participavam do culto não tinham interesse em registrar por escrito as liturgias e crenças de sua religião, quer por ser originária de uma cultura ágrafa, quer para evitar a produção de provas contra si mesmo, uma vez que tais manifestações religiosas eram reprimidas como visto acima. 

Por conseguinte, a posse de tais conhecimentos trazia para as lideranças desses cultos – ou para quem tivesse acesso às informações “secretas” – o status de poder sobre as demais pessoas. 

Há outro fator a ser considerado também para a dificuldade em se identificar precisamente esses cultos que Bastide chamou de Macumba Paulista. Devido a uma imposição da própria estrutura criada pela escravização, diversas etnias – e com elas as mais variadas crenças – tenderam a se amalgamar dando forma a rituais diversos. Abguar Bastos (1991, p. 7) alega sobre a Macumba que: “adota orixás de várias origens” e que “Difícil se torna evitar a miscelânea de deidades que se apresentam ou são louvadas nos cultos, porquanto os povos aqui se misturavam como os mina, os haussá, os jejê, os nagô, os cambinda e os fulá”. 

Porém, sabendo-se de tudo isso, é, ainda, possível recuperar algumas informações sobre essas religiões afro-caipiras de São Paulo, de modo a compará-las entre si e com o paradigma que hoje temos dos rituais afro-brasileiros, e produzir assim uma memória sobre esses diversos cultos que proliferaram em terras paulistas. 

O medo da feitiçaria 

O imaginário do luso-brasileiro, desde a época da colonização, estava permeado pela crença supersticiosa no sobrenatural e na intervenção mágica no mundo. Subsidiário das perseguições da Inquisição Católica, esse imaginário se constituiu no português antes mesmo de aportar nesta terra de Pindorama. 

Aliás, as Visitações do Tribunal do Santo Ofício farejavam nos trópicos a degeneração dos princípios cristãos que, acreditavam as autoridades católicas, se afrouxavam tanto pelo intenso calor do sol como pelo contato com culturas fetichistas dos indígenas e dos africanos. 

Na segunda metade do século XVIII, a Visitação prendeu em Sorocaba um escravizado que portava um patuá. A documentação sobre essa prisão foi pesquisada por Luiz Mott que informou: 

O acusado era conhecido tão-somente pelo nome de João, Mulato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, dentro se encontrou um pedaço de sanguíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacinho de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada – que, segundo declarou o réu, foralhe ofertada por um sacristão – “e muitas outras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas” (MOTT, 2000, p. 120). 

A crença na intervenção mágica, portanto, estava presente em São Paulo, pelo menos, desde o século XVIII. Considere-se que esse escravizado era pertencente a um senhor da cidade de Itu, vizinha de Sorocaba. O trânsito de escravizados – e mesmo libertos – entre cidades é um fato curioso. Mais à frente discorrer-se-á sobre alguns casos em que os chefes de cultos transitavam por cidades diversas. 

O feitiço era temido e combatido em São Paulo por todo o século XIX, praticamente. Quando se diz aqui em combate, especificamente está se falando em ações direcionadas e organizadas para tais fins e com o uso dos poderes institucionais. Assim, praticamente todas as cidades paulistas emitiram posturas reprimindo as feitiçarias. 

Na maior parte das posturas pesquisadas para este trabalho, o negro – escravizado ou liberto – não aparece explicitamente, dando a impressão de que a feitiçaria não era uma prática associada imediatamente aos africanos e seus descendentes, mas sim a qualquer pessoa. É de bom alvitre retomar o que foi dito acima sobre o imaginário português acerca da feitiçaria. Livros como o de São Cipriano, por exemplo, eram consultados e guardados por muitos colonos. João do Rio, no início do século XX, afirmou que “a base, o fundo de toda a sua ciência [dos feiticeiros] é o Livro de São Cipriano” (RIO, 2015, p. 54). 

Assim, as posturas municipais (códigos de leis das Câmaras Municipais) tentavam coibir a prática da feitiçaria, impondo punições como prisões, multas entre outras. 

Em 1865, o Código de Posturas de Sorocaba trazia o seguinte artigo: “Art. 119. – Todo aquelle que se intitular advinhador ou curador de feitiços illudindo o povo incauto, quer para isso receba estipendio, quer não, será multado em oito mil réis, e oito dias de prisão”. Já a Câmara de Guaratinguetá promulgou a seguinte postura no mesmo ano: “Art. 113. – Os indivíduos que se fingirem inspirados por algum ente sobrenatural, e prognosticarem acontecimentos que possam causar sérias aprehensões no animo dos credulos, incorrerão na multa de 20 a 30$000 com prisão de 6 a 8 dias”. Por sua vez, Jundiaí, na mesma época, emitiu esta: “Art. 54. – Todo aquelle que se intitular advinhador ou curador de feitiços illudindo o povo incauto, quer para isso receba estipendio, quer não será multado em vinte mil réis”. 

Os textos variam pouco, mas, ao mesmo tempo, não são idênticos a ponto se se pensar que tenham sido produzidos como cópias. Há uma variação da penalização, bem como da descrição do que se entendia por “feitiçaria”. Em Sorocaba o adivinhador e curador de feitiços era o alvo principal dos vereadores, enquanto em Guaratinguetá, possivelmente por experiência de ocorridos naquela localidade, ampliava-se o conceito para abarcar aqueles que se fingiam inspirados por algum ente sobrenatural. Por outro lado, amenizava a situação ao informar que a repressão se daria sobre quem prognosticasse acontecimentos que pudessem causar “sérias” apreensões nos crédulos. 

A postura de Jundiaí é bem parecida, em seu texto, com a de Sorocaba. No entanto, não estipulava prisão ao feiticeiro, como ocorria na outra cidade. 

Essas posturas foram reeditadas em outras décadas e em outras localidades. Pindamonhangaba traz uma descrição interessante sobre como os vereadores viam o que consideravam como exercício de feitiçaria: Art. 180. – Todo aquelle que se intitular adivinhador ou curandeiro de feitiçarias, e effectivamente empregar orações, gestos ou qualquer embuste para curar, ou que se fingir inspirado ou prognosticador de cousas sobrenaturaes. Pena de 20$000 a 30$000 de multa. 

Neste caso, verifica-se que o emprego de orações e gestos compõe o quadro que determina quem possa ser considerado como feiticeiro. O emprego de orações, gestos, promessas de curas, inspiração sobrenatural, adivinhações, consultas a entidades, tudo isso acaba resvalando sobre as práticas ritualísticas afro-brasileiras. 

Nesse sentido, a cidade de Itu emitiu, décadas antes das posturas acima, uma em que associava a prática da feitiçaria aos escravizados. Diz Francisco Nardy Filho que em 11 de abril de 1855 a Câmara Municipal promulgou uma postura contra os feiticeiros, a qual dizia: “o escravo que for encontrado comerciando ou tendo em seu poder qualquer objeto vulgarmente chamado – Feitiçaria – quer mineral, quer vegetal, quer animal, será punido com 8 dias de prisão e pela reincidência 30” (NARDY FILHO, 2000, p. 185). 

Os edis de Itu não se esqueceram de prever o uso da feitiçaria pelas pessoas livres. Na sequência do texto legal, “as pessoas livres compreendidas no art. acima pela 1ª vez será [sic] punido com 15 dias de prisão e 30$000 de multa e pela reincidência em 30 dias de prisão e 60$000 de multa” (IDEM). 

Apesar de citar as pessoas livres, é bastante curioso que os escravizados apareçam por primeiro nessa postura. Aparentemente, havia em Itu uma associação direta da prática de feitiçaria aos africanos e seus descendentes.

Essa mentalidade explicaria a prisão, décadas depois, de um negro naquela cidade, sob a acusação de feitiçaria. O jornal O Estado de São Paulo, replicando uma nota publicada no jornal A Imprensa, conta que “foi preso alli [em Itu] um preto africano, mezinheiro e feiticeiro, tendo sido descoberto por haver medicado uma senhora estrangeira, que o procurara por instâncias de sua criada” (A PROVÍNCIA DE S. PAULO, 10 set 1878, p. 2). 

Este era outro problema enfrentado pelos curandeiros e “feiticeiros”: a concorrência com a medicina. Desde 1808 havia faculdades de Medicina no Brasil, na Bahia e no Rio de Janeiro, criadas pelo Príncipe Regente Dom João logo após a sua chegada ao país, fugindo de Portugal ameaçado pela invasão de Napoleão Bonaparte. Em 1839 foi criada a Faculdade de Medicina de Ouro Preto. Assim, na década de 1850, havia médicos formados no Brasil. Esses médicos disputavam com os curandeiros e feiticeiros a atenção dos precisavam de alguma cura. 

Seja por qual motivo for, o importante é atentar-se para o fato de que a feitiçaria era amplamente reprimida, especialmente no século XIX, sendo perseguida pelas autoridades. Apesar de não se restringir aos africanos e seus descendentes, a prática da feitiçaria tangenciava os rituais e práticas religiosas africanas e afro-brasileiras. 

Dessa maneira, os praticantes das artes mágicas e dos rituais de origem africana eram alvos da vigilância e da repressão institucional. Essa repressão tenderá a se fortalecer a partir da vigência da República, que trará consigo a visão de modernidade europeizante, incapaz de tolerar as práticas de religiosidades que ferissem a hegemonia e o monopólio do cristianismo católico. 

Não se pode, também, perder de vista o poder amalgamador desses cultos, emprestando um caráter de identidade a pessoas que haviam perdido seus referenciais de grupo por imposição das condições da escravização. E esse ponto é crucial para entender o temor de uma revolta de escravizados, o haitianismo em solo brasileiro. Como ocorreu com o caso dos malês na Bahia, a religião poderia ser usada como elemento organizador do grupo. 

Essa percepção pode ser vista na correspondência do Ministro do Império ao Governador da Província de São Paulo em 1832, três anos antes da Revolta dos Malês na Bahia, solicitando providências para que os escravizados mouros fossem removidos das terras paulistas: 

A S. Magd.e Se fez prez.te que nessa Cappitania andavão alguns Mouros, q’ forão Levados a ella Como Negros e Mullatos, e por que não convém, que semelhante Gente pellos Seus maos Costumes Se conservem na dita Cappitania; he o mesmo Sr. Servido, q’ todos Sejão remetidos a este Reino declarandoçe os nomes dos Senhores delles p.a se lhes restituir aos seus correspondentes o preço por que forem vendidos. Deos gd.e a V. S.a Lx. a Occ.al vinte e nove de Março de mil Sete centos e trinta e dous.—Sr. Governador, e Cap.m Gn.al da Capitania de São Paulo. Diogo de Mendonça Corte Real. 

Mesmo depois da eclosão da Revolta dos Malês, as autoridades de São Paulo estavam preocupadas com a possibilidade de ocorrência similar na Capitania. Diz o historiador Aluísio de Almeida que o presidente da Província de São Paulo, o sorocabano Rafael Tobias de Aguiar, oficiou ao Juiz de Paz de Sorocaba, em assunto reservado, no dia 11 de abril de 1835, dando conta de que “havendo notícia que da Bahia se enviaram emissários para a Corte do Rio de Janeiro, e dela para algumas Províncias com o fim de promoverem a insurreição geral da escravatura”, pelo que solicitava das autoridades que se conservassem “na maior vigilância possível para obstarem a qualquer diligência…” que pudesse ocorrer naquele sentido (ALMEIDA, 1950, p. 12). 

Alguns casos de rituais afro-caipiras em São Paulo 

Talvez um dos casos de maior repercussão sobre a ocorrência de um ritual de culto afro-caipira seja o ocorrido em 1841 com escravizados da Fazenda Passa-Três, de propriedade de Gertrudes Eufrosina Aires de Aguiar, mãe de Rafael Tobias de Aguiar. Segundo Campos e Frioli (1999, p. 41) “achando-se o referido administrador desta Vila pelos dias Santos do Natal, fora avisado por um escravo da casa que alguns outros escravos estavam reunidos para observarem certas raízes com aguardente em presença de uma imagem do Senhor Crucificado, a fim de conhecerem e descobrirem qualidades de venenos”. 

Essa ocorrência foi também citada por Roger Bastide (1983) ao lado de outras, como a de Manoel João, curandeiro vindo de São Paulo para residir na Vila de Santo Amaro, em 1839, e a de Policarpo, na mesma localidade, sendo este expulso em 1841 pela prática de curandeirismo e feitiçaria (BASTIDE, 1983, p. 195). Bastide acrescenta alguns detalhes ao caso de Sorocaba: uso de raiz de mandioca misturada a aguardente; e a origem dos escravizados que eram moçambicanos. 

Alguns detalhes apresentados ajudam a compor uma ideia sobre como eram esses cultos. O uso de aguardente misturada com raiz de mandioca induz ao uso ritualístico do álcool, possivelmente para atingir um estado alterado da consciência. A presença de uma imagem de Cristo pode ser entendida como parte de um processo de enculturação e de escamoteação da devoção às entidades ancestrais ou a seres divinizados como inquices e orixás. 

O Dr. Bulcão 

Alguns anos mais tarde, em 1854, ganhou fama um escravizado de Porto Feliz, interior de São Paulo, conhecido como Dr. Bulcão. Conhecedor de ervas e de outras mezinhas, Dr. Bulcão deve ter realizado diversas curas extraordinárias, pois houve proposta do governo da Província em remunerá-lo em troca das informações que possuía. 

Os jornais paulistanos protestaram contra esse projeto. Escravo de Cândido José da Motta, Bulcão era o que os historiadores chamam de “escravo de ganho”, ou seja, aquele que em acordo com o seu senhor trabalhava em semi-liberdade, sendo obrigado a entregar ao final de algum tempo um valor previamente combinado. Assim, por exemplo, havia quituteiras que moravam de aluguel em alguma casa e vendiam seus quitutes, entregando aos seus senhores parte do que arrecadavam com esse comércio. Também, escravizados que realizavam serviços de limpeza, de consertos de ruas (para as Câmaras Municipais), vendedores ambulantes, prestadores de serviços… 

No caso de Bulcão, esse escravo realizava curas diversas: desde envenenamento – incluindo por picadas de aracnídeos ou mordida de cobras – até feitiços e possessões demoníacas. Por seu sucesso, propôs-se que ensinasse a uma junta de médicos os seus segredos, ficando, para isso, a Câmara Municipal obrigada a pagar-lhe a quantia de dois contos de réis, um dinheiro considerável à época. Com esse dinheiro era possível, em 1854, comprar até dois escravos. Uma página da internet oferece uma conversão hipotética de conto de réis para a atual moeda brasileira do real: cerca de R$ 246.000,00 (duzentos e quarenta e seis mil réis). 

Em contrapartida a essa proposta, um missivista enviou uma carta a imprensa, reclamando da atitude “complacente” do governo provincial: 

Acha-se o cofre provincial próximo á levar uma sangria de 2:000$000, para a compra do segredo de um feiticeiro que por estes lugares é conhecido pelo nome de Dr. Bulcão!! Com licença de seu Sr., este Dr. negro (dizem) faz applicações. Sendo só obrigado em cada final de semana á apresentar-se em casa com o jornal, á razão de dois mil reis diários; com escândalo das leis, e negligência das autoridades. Consentiu-se que um miserável escravo, sem o menor conhecimento scientífico, vá curando, com esses ridículos ingredientes, e por meio de palavras misteriosas a gente enfeitiçada, e indemoninhada, e dizem que envenenada. Dizem que este escravo vai ser examinado pelos médicos habilitados!! Um homem que possue um pergaminho, que se honre de possuí-lo, rebaixar-se a ponto de ir aprender de um escravo, sem princípios scientíficos, o modo porque se cura feitiço! Que farça ridícula, e que importância não tem o tal Bulcão!… (CORREIO PAULISTANO, 17 ago 1854, p. 4). 

O missivista alegou ainda que o delegado de polícia daquela vila era conivente com as práticas do Dr. Bulcão porque ele mesmo, o delegado, “crê em feitiços, em malefícios etc” (IDEM). Em defesa do escravizado Dr. Bulcão, apresentou-se o médico inglês Ricardo Gumbleton Daunt, que residiu em Itu e, posteriormente, em Campinas, onde faleceu em 1893. Gumbleton Daunt alegou que não poderia “imaginar um maior benefício á província, do que a vulgarisação dos meios para combater os aliás infalliveis effeitos dos lethiferos venenos do sapo, da cobra e de tantas substancias vegetaes que os envenenadores tem á sua disposição. O espírito em que o correspondente argumenta trahe uma ignorância da maneira em que os mais importantes conhecimentos therapeuticos forão adquiridos á sciencia política. Mui poucos dos nossos agentes medicinaes são devidos á um raciocínio á priori por homens da arte; em geral os agentes therapeuticos forão empiricamente conhecidos do povo e esse os transferio aos médicos” (CORREIO PAULISTANO, 5 set 1854, p. 3 – 4). 

Apesar da defesa do Dr. Ricardo Gumbleton, o fato é que Dr. Bulcão continuou sendo acusado de feitiçaria, de curandeirismo, de ignorância e até de sedição de escravizados: 

Consta que o tal intitulado Dr. Bulcão tem incutido nos escravos ideais de liberdade em algumas reuniões que tem promovido nos subúrbios da Villa, dizendo-lhes que quando voltar do Rio, para onde tam de ir chamado por S. M. para ensinar os médicos, há de trazer ordem de liberdade para todos (CORREIO PAULISTANO, 26 set 1854, p. 3). 

Pelo que se depreende do que se conseguiu levantar sobre essa história, o Dr. Bulcão possuía conhecimento de ervas e de antídotos para venenos – o que, na época, era um enorme trunfo, de acordo com o Dr. Gumbleton Daunt – e que era tido como praticante de feitiços e contrafeitiços. Por infelicidade, pouco se sabe sobre como se davam tais curas realizadas pelo Dr. Bulcão. Há uma breve menção, feita pelo Dr. Ricardo, na qual dizia o seguinte: “Não duvido que esse negro possa alguma vez empregar uma boa dose de aparato fantástico na applicação de seus remédios…” (CORREIO PAULISTANO, 5 set 1854, p. 3). Porém, logo em seguida, o médico ressalva: “o dito negro é bem comportado, leal, e parece muito mais livre de práticas supersticiosas do que os mais de seus collegas, de quem tenho notícia” (IDEM). 

Pai Gavião e a Maçonaria Negra 

O caso do Pai Gavião, da cidade de São Roque, foi minuciosamente relatado pela reportagem do jornal Correio Paulistano. Contemporâneo do Dr. Bulcão, o caso do Pai Gavião contém elementos interessantes que vão desde a formação de sociedades secretas de negros a organização de uma sedição. Se bem que não se possa comprar plenamente o que diz o jornal – um discurso indireto e permeado de preconceitos e ignorâncias acerca da religiosidade ali contida – pode-se, ao menos, pinçar alguma informação que ajude a compor uma ideia sobre o que foi o culto praticado por Pai Gavião. 

Diz o jornal Correio Paulistano que o nome de Pai Gavião é na realidade José Cabinda e que ele era grão-mestre de uma ordem dividida em três lojas: Filhas das Hervas, Maçonaria Negra e Campo Encantado. Numa dessas lojas havia uma rainha chamada Mambeque. Como na Maçonaria convencional, essa ordem possuía diversos graus e, de acordo com a reportagem, os irmãos que chegavam ao grau de encantado recebiam um nome dado pelo Mestre (CORREIO PAULISTANO, 27 jul 1854, p. 2). 

Esses “encantados”, aparentemente, representavam entidades ou espíritos de ancestrais. A reportagem informa que “os nomes dos encantados são entre outros os seguintes: – Grande Apaga-fogo, Rompe-ferro, Gaviãosinho, Chupa-flor, Quinuano, Sette pombas, Quatro cantos, etc.” (IDEM). 

Interessante é o fato de que alguns nomes, como Rompe-ferro, serem “reaproveitados” (ou terem reaparecido) na Umbanda atual. Há uma entidade de Umbanda que se denomina Caboclo Rompe-ferro, da linha de Ogum. Sete Pombas poderia ser uma referência a Pombagira Sete saias? 

Esses nomes estão registrados num jornal que circulou em 1854, mais de cinquenta anos antes da organização da Umbanda pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, em 15 de novembro de 1908.

Sobre uma das cerimônias ritualísticas dessa ordem, o repórter do jornal assim a descreve, com alguns detalhes bastante curiosos: 

Para celebrar-se as sessões, ou para a admissão de novos adeptos, os irmãos formam um grande círculo.

Alguns dos assistentes tocam um tosco instrumento feito de cabaças com cabo de páo (chocalhos) que na gíria da ordem se – chama – Guayá-Cayumba.

Ao som do – Guayá-Cayumba, o grão-mestre dançando e cantando uma linguagem inintelligivel se dirige para o centro e ali colloca com todo o respeito uma luz, uma garrafa de aguardente, uma tigella diversas raízes, uma figura de páo, a meio corpo, sem braços e informe, que tem o nome de – Careta – e outra de cera com ventre tão obeso como o do cavalo de Troya, pois lhe sahe do pescoço e vai até os pés. O umbigo é formado por um pedaço de vidro. Collocam também ali uma raiz grande, a que dão o nome de – Guiné encantado – um corno de boi (de que já falamos) que tem o nome de – Vungo – um patuá envolto em casca de lagarto, dois Santo Antonio de nó de pinho, sendo um sem cabeça, e finalmente uma penellinha vidrada, betumada de cera, coberta por um vidro, que é conhecida pelo nome de Gallo (IDEM).

Quem conhece o instrumento chamado de guaiá, utilizado até hoje nos batuques de umbigada da região do Médio Tietê, sabe da semelhança desse instrumento com o xerê de Xangô (CAVALHEIRO, 2015). Também já foi dito aqui que caiumba é o nome originário do batuque. Não deve ser coincidência, apenas, que o guaiá-caiumba estivesse presente nesse ritual da ordem criada por José Cabinda, também chamado de Coroado e conhecido pelo nome religioso de Pai Gavião.

A matéria publicada no jornal dá sequência à descrição da cerimônia de iniciação de um neófito da ordem. Como em outras sociedades secretas, essa iniciação é repleta de ritos e de simbolismos.

O Pai Gavião entorna a garrafa sobre a tigela, e ordena que o novo irmão se aproxime.

Interrompe-se o chocoalho do Guayá-Cayumba para a augusta cerimônia.

O novo irmão se ajoelha ante o grão-mestre, e despe a camisa.

O grande chefe aponta a faca sobre o peito do noviço, e o faz prestar um juramento solemne de fidelidade, e segredo inviolável, sob pena de morte, e ainda mesmo que seja estrangulado ou queimado.

Depois abre-lhe uma cruz sobre o peito direito com a ponta da facca. Corre algumas gotas de sangue da epiderme rasgada. Passa-se alternadamente um patuá e uma raiz de Guiné encantada sobre a cissura da cruz, e depois esfrega-se uns pós brancos (IDEM).

Essa cena, descrita acima, lembra muitas outras semelhantes, descritas em documentos diversos como relatos jornalísticos e romances da literatura. O escritor Júlio Ribeiro, em seu famoso livro “A Carne”, descreveu uma cena de iniciação em culto de origem africana que guarda muitas semelhanças com o que se apresenta em relação a ordem do Pai Gavião. Eis o texto de Júlio Ribeiro:

Que era muito bom, explicou Joaquim Cambinda na sua meia língua, pertencer um preto à irmandade de São Miguel das Almas, mas que também era perigoso; que quem não tinha peito não tomava mandinga; que o branco queria, por força, saber o segredo dos irmãos de São Miguel, e que para isso surrava o preto, mas que o preto que revelava o segredo de São Miguel morria sem saber de quê. Fez o neófito beijar os pés de São Miguel, fê-lo beijar os cornos de Satanás a ele sotoposto, fê-lo beijar as partes genitais do manipanço; ditou-lhe os juramentos solenes, cominou-lhe penas terríveis no caso de infração. Recebeu dele dinheiro, trinta mil-réis, seis notas de cinco mil-réis, que estavam no bolso da calça, muito enleadas em um lenço de chita muito sujo. Passou à parte doutrinária, entrou a iniciá-lo na arte terrível dos feitiços e dos contras, a dar-lhe meios de matar, de curar. Ensinou-lhe que a semente do mamoninho bravo (datura stramonium), socada, macerada em aguardente, cega, enlouquece, mata dentro de poucas horas; que osso de defunto, cuja carne caiu podre, raspado e posto em uma comida qualquer, produz amarelão incurável […] (RIBEIRO, 1999, p. 64).

A cerimônia observada na ordem de Pai Gavião abarcava ainda o uso de incenso, de bebidas e de transe extático no qual o mestre consultava (e recebia respostas) de imagens e figuras. O famoso curandeiro João de Camargo, de Sorocaba, de quem se falará logo mais, também, diziam, conversava com as imagens dispostas dentro de sua igreja. Em edição posterior, o jornal publicou uma retificação sobre o processo de iniciação. De acordo com essa ressalva, a cruz feita no peito do iniciado não era riscada com a ponta, mas sim com o fio da lâmina da faca “batendo-se com um pedaço de páu 3 pancadas na costas da lâmina. Do mesmo modo se faz mais duas cruzes, uma no braço e outra no pé direito” (CORREIO PAULISTANO, 1 ago 1854, p. 1).

Outra descrição dada sobre esse culto é o de que Pai Gavião conversava com entidades por meio do vungo (corno) composto “de vidro, raízes e outras substâncias…” (CORREIO PAULISTANO, 1 ago 1854, p. 2). Era utilizado como oráculo e, segundo relatado, não poderia ser profanado por mãos “contaminadas” de infiéis e de “alguém que tivesse tido relações com mulheres” (IDEM). O intercurso sexual é entendido pelo vulgo – e, também, por praticantes de magia – como imunizante das defesas “espirituais”. A palavra vungo, aparentemente, é de origem banto.

Os seguidores de Pai Gavião acreditam que ele poderia transformar-se em pau, pedra, ave ou no que quisesse. Essa crença é bastante popular no Brasil e, em diversas localidades, sobretudo no Nordeste, é chamada de envultamento. Esse termo possui diversas acepções. Cândido de Oliveira, em seu Dicionário Mor da Língua Portuguesa, diz que o envultamento refere-se ao “feitiço pelo qual se representa uma pessoa num boneco a fim de que todo sofrimento causado nele seja transferido, magicamente, à própria pessoa” (OLIVEIRA, 1967, p. 895). Seria uma prática semelhante ao dos bonecos de vodu. Mas o mesmo lexicógrafo apresenta outra definição: “Técnica de magia pela qual as pessoas se transformam em bruxas ou lobisomem” (IDEM).

Porém, o envultamento refere-se também à crença de que algumas pessoas, a partir do uso de orações ou outros encantamentos, têm o poder de se “envultar”, ou seja, de se tornar invisível aos olhos dos demais, parecendo as esses como um toco de árvore, um pé de bananeira, uma pedra ou qualquer outra coisa assim. No livro de São Cipriano há menção aos feitiços para se tornar invisível aos demais.

Pai Gavião foi preso, juntamente com seus asseclas, acusado de feitiçaria, mas, também de tentativa de insurreição. O temor de uma revolta de escravizados repercutiu em outras cidades, como Porto Feliz, na qual o tenente Pimenta, responsável pela ordem pública, com “suas patrulhas, de dia e com especialidade nos sanctificados cruzão as ruas, e basta verem em qualquer casa de negócio reunidos três ou quatro pretos, cercão as portas, prendem-os e os levão para a cadêa” (CORREIO PAULISTANO, 6 out 1854, p. 3).

O Mestre Felisberto Cambinda

Em Sorocaba, na década de 1870, descobriu-se a existência de um culto secreto cujo mestre era um liberto chamado Felisberto Cambinda. Não parece ser apenas coincidência que o nome Cambinda ou Cabinda, designativo de origem, esteja presente em tantos casos associados à feitiçaria.

João do Rio relata que os cabindas tinham culto próprio disseminado pelo Rio de Janeiro. A despeito da descrição preconceituosa – os cabindas são tratados como “ordinários”, “burros”, “ignorantes” – o relato de João do Rio traz como informações curiosas o fato de que nesses cultos o nome dos orixás e dos santos era mudado: “Orixalá é Ganga-zumba; Obaluaci, Cangira-mungongo; Exu, Cubango; Orixá-oco, Pombagira; Oxum, a Mãe-d’água, Sinhá Renga; Xapanã; Cargamella. E não é só aos santos dos orixás que os cabindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S. Benedito é Lingongo; S. Antônio, Verequete; N. Sª das Dores, Sinhá Samba” (RIO, 2015, p. 35).

Esses nomes são referências que podem ajudar no rastreamento de cultos antigos e que foram suplantados pelas formas mais organizadas de religião como a Umbanda. “A primitiva macumba”, diz José Henrique Motta de Oliveira, “longe de sérum culto organizado, era um agregado de elementos da cabula, do candomblé, das tradições indígenas e do catolicismo popular, sem o suporte de uma doutrina capaz de integrar os diversos pedaços que lhe davam forma” (OLIVEIRA, 2008, p. 77).

Reencontrar esses “pedaços” é, talvez, uma das formas de tentar recompor a trajetória histórica percorrida por esses cultos e rituais. É, de outra feita, a maneira como podemos identificar a influência das diferentes tradições que ajudaram a amalgamar essas partes que compunham os rituais afro-brasileiros de antanho.

O caso de Felisberto Cambinda é bastante curioso, até mesmo pelo contexto em que ocorreu. Naquela época, havia sido preso na Corte (Rio de Janeiro) o afamado Juca Rosa, acusado de prática de feitiçaria, bem como de estelionato, defloramento, reuniões secretas, sortilégios entre tantos outros. Deve-se levar em consideração que a escravidão ainda vigorava e os aparelhos de repressão às manifestações e expressões dos negros eram constantes e institucionalizadas. Quase sem exceção, todos os Códigos de Posturas das cidades brasileiras contavam com artigos reprimindo os batuques, os ajuntamentos de negros, as diversas danças e expressões religiosas, a capoeira, os maracatus e congados (CAVALHEIRO, 2006).

Copiando a imprensa das grandes metrópoles na construção textual dos títulos das matérias jornalísticas, o jornal “O Colombo”, de Sorocaba, referiu-se à prisão de Felisberto Cambinda como “diligência importante”, da mesma forma como fora descrito o caso de Juca Rosa. A descrição do fato, embora longa, é importante por conta dos diversos elementos nela contidos.

Deligencia importante – Constando ao activo e intelligente delegado de polícia sr. tenente Joaquim Marques da Silva, que em casa sita á rua do Supiriry, abaixo do becco da Estação, teria lugar, na noute de domingo 22, uma reunião de pretos, sob a direcção do preto Felisberto Cambinda, morador em S. Paulo e que para essa reunião chegára a esta cidade no dia 9 do corrente, cujo fim era um arremêdo do que fez na côrte o celebre preto Juca Rosa, zeloso como é no cumprimento dos deveres do cargo oneroso que occupa dirigiu-se nessa noute a referida casa acompanhado de algumas praças, e do official de justiça, e penetrando nella com as formalidades legaes, encontrou na varanda, sobre um caixão que servia de meza, coberto em parte com um panno branco, ou toalha, o seguinte:

5 imagens, de diversos tamanhos que parecem ser de Santo Antônio, debaixo da maior estavam 13$000, em notas de 10$000, 2$000 e 1$000, aos lados estavam 2 notas de 500 réis, e em cobre 520 réis; em frente a imagem maior duas facas fincadas no caixão, crusadas em fórma de thesoura, entre as facas e as imagens, um pequeno papel contendo nomes de 3 pessoas. Aos lados 1 caramujo, uma raiz, uma lata com pólvora, duas laranjas, com galhos de arruda fincados nellas, 1 embrulho com salamargo, 1 outro com raízes e folhas socados, 1 masso de hervas diversas, uma tijella branca grande, com raízes e folhas esmagadas misturadas em aguardente, uma garrafa contendo aguardente com raízes e folhas diversas, uma dita com aguardente pura, uma dita com leite, uma caneca de louça branca, contendo flores, folhas, tomates, etc., 3 patuás grandes, sendo o maior capeado com couro de lagarto, aberto elles continham, folhas e raízes de cheiro muito activo, e duas continhas além das folhas e de cabellos negros, 2 castiçaes com vellas de cebo illuminavam, as imagens e os objectos descriptos.

Foram presos o dito Felisberto Cambinda, Antônio Cyrino de Oliveira Lopes, e sua mulher Anna Maria do Espírito-Santo, tendo-se escapado algumas pessoas pelo quintal, quando pela porta da rua entrava o delegado.

O delegado deixou-se ficar na casa acompanhado de algumas praças e do official de justiça. Ás 11 e meia horas da noute bateram a porta e voz feminina pergunta pelo Mestre, aberta ella, entram, Florinda, Izabel e Luiza, escravas do sr. João Aguiar de Barros as quaes foram conduzidas à cadêa. Continuando o delegado a permanecer na casa, ás 4 e meia da manhã batendo de novo a porta perguntaram pelo Mestre e entra Marcelina, escrava da exma. sra. d. Guilhermina Grotildes da Cunha Soares, que teve o mesmo destino das outras. Ás 7 horas da manhã, foi que retirou-se o sr. delegado, com o resto das praças.

Foram soltos no dia 23 todos a excepção de Felisberto, e Marcelina, aquelle porque está sendo processado, e esta por não ter sua senhora reclamado a soltura.

É digno de louvor o acto do sr. tenente Marques que mais uma vez deu provas de sua perspicácia em negócios desta ordem.( COLOMBO, 28 out 1876, p. 2).

Do material apreendido pela polícia, alguns são recorrentes nas outras descrições aqui feitas: pólvora, facas, patuás com pele de lagarto, imagens de santos (como Santo Antônio), ervas e raízes, tigelas, velas. Esses produtos e objetos são comumente encontrados nos relatórios policiais de apreensão realizada durante as ações repressivas. A presença de imagens de santos católicos pode indicar uma assimilação de culturas ou sincretismo, comum entre os bantos. Essa mistura de culturas entre os bantos não se restringe ao catolicismo e as tradições africanas. Renato Ortiz afirma, sobre o grupo banto, que “É esta etnia que tende a sincretizar, com maior facilidade, suas crenças com a corrente espírita kardecista, dando assim nascimento ao que se costuma vagamente chamar de baixo espiritismo” (ORTIZ, 1999, p. 36 – 37).

Fato curioso é que Felisberto Cabinda (ou Cambinda) residia na capital, mas era muito conhecido em Sorocaba. Ademais, ao seu culto ritualístico frequentavam escravizados que burlavam as vigilâncias para participarem, durante a madrugada, das sessões. Qual era a extensão de sua influência?

Não se obteve maiores detalhes sobre as práticas religiosas em que o mestre Felisberto Cabinda era liderança. Em busca por jornais da capital paulista, encontram-se, na mesma época, diversas citações desse nome, associadas a prisões por desordem e embriaguez, mas nenhuma em relação a prática de feitiçaria (A PROVÍNCIA DE S. PAULO, 5 e 6 mar 1880, p. 2; 25 mar 1880, p. 2; A CONSTITUINTE, 25 mar 1880, p. 3; CORREIO PAULISTANO, 11 jan 1880, p. 3; 4 e 5 nov 1886, p. 1; JORNAL DA TARDE, 24 mar 1880, p. 1 e 27 nov 1880, p. 2). De um tal Felisberto Cabinda estava sendo cobrado o imposto predial sobre sua residência, na rua da Liberdade, nº 104, em São Paulo, no exercício dos anos 1886 a 1887 (CORREIO PAULISTANO, 21 out 1886, p. 2).

Assim como apareceu de repente, da mesma forma, na década de 1890 em diante, as pistas sobre Felisberto Cabinda desaparecem.

João de Camargo, de Sorocaba

Dentre os mais afamados praticantes de religiosidades afro-brasileiras, possivelmente, desponta o nome de João de Camargo. Sobre ele publicaram-se diversos livros, dissertações e teses, reportagens de jornais e revistas. Esse personagem histórico foi interpretado no cinema por Lázaro Ramos no filme “Cafundó”, dirigido por Paulo Betti.

Nasceu João de Camargo em uma fazenda no bairro dos Cocais, em Sarapuí, região de Sorocaba, no dia 16 de maio de 1858. Após a Abolição, ou pouco antes, teria se mudado para Sorocaba. Casou-se com Escolástica do Espírito Santo, mas o matrimônio durou pouco tempo.

Dizem – e o próprio João de Camargo confirmava – que trabalhava em trabalhos braçais, sendo um trabalhador dedicado, mas que ao final do expediente, embriagava-se todos os dias. Certa feita, ao sair do bar, completamente embriagado, teria se dirigido até a sua casa. Porém, no caminho, resolveu acender uma vela em uma capelinha em devoção a alma de um menino que naquele local.

João de Camargo disse, posteriormente, que teve uma visão do espírito desse menino, chamado de Alfredinho, que juntamente com Nossa Senhora e o espírito de Monsenhor João Soares ditaram a ele novas regras de vida, a qual dedicaria a partir daquele momento à caridade e a cura.

Por volta de 1906, constrói uma capela na beira da estrada do córrego da Água Vermelha (atual Avenida Barão de Tatuí, em Sorocaba), templo esse logo ampliado devido o número elevado de fiéis que o procuravam.

Em 1913 é preso e processado por curandeirismo e perturbação da ordem social. Para sua defesa atuou o advogado Juvenal Parada que não somente conseguiu absolvê-lo das acusações, como, ainda, orientou-o a registrar a capela como uma Associação Espírita, de maneira a não ter mais problemas com a polícia e a Justiça. No começo da década de 1920, João de Camargo seguiu a orientação de seu advogado e, a despeito do preconceito da elite branca da cidade, não teve maiores problemas com a Justiça (CAVALHEIRO, 2020).

Antônio Francisco Gaspar descreve João de Camargo como um curador que “em estado de extase ou transe, tem a graça de poder responder a consultas e indicar remédios aos padecentes, subjugado por esse agente invisível que d’elle se serve como de um apparelho ou instrumento para curar enfermos” (GASPAR, 2020, p. 66).

Originalmente, o testemunho de Gaspar foi registrado em 1925, data relativamente próxima do inicio do culto criado por João de Camargo, ou seja, cerca de 19 anos. Gaspar também descreve o cotidiano dos trabalhos realizados na igreja construída por João de Camargo:

O DIA DE CONSULTAS. A capella da “Água Vermelha” regorgita de povo. São seis horas da manhã. […] Por entre o vozeio intensivo da multidão que chega e espera abrir-se a porta principal da igreja, ouve-se, ao lado, o som brando das águas do córrego da “Água Vermelha” […] Alli se encontra a mãe que chora ao ver o filhinho doente, sem esperança de salval-o; acolá, é a jovem que vem pedir melhoras para seu velho pae; além é o infeliz agricultor que, vendo a plantação rechitica, vem pedir a João de Camargo que lhe dê um “arranjo” á lavoura […] No interior da capella, […] João de Camargo ajoelha-se, concentra-se e, segurando a extremidade d’uma fita que pende da mão da imagem do Senhor Bom Jesus do Bomfim, intuitivamente ouve a voz occulta e vae ministrando e indicando o remédio para este ou aquelle consultante (GASPAR, 2020, p. 51 – 53).

CAMPOS e FRIOLI (1999, p. 30) encontraram foi da influência angolana da macumba e do culto da calunga que desabrochou o culto de João de Camargo. Encontraram esses autores, também, elementos de diversas tradições como o catolicismo popular e até mesmo do espiritismo.

Como ocorreu com os outros casos de curandeiros e feiticeiros, João de Camargo sofreu perseguições das instituições. O ajuntamento de pessoas ao redor de sua igreja preocupou as autoridades que não desejavam ver surgir algum movimento religioso de “fanáticos”. Ademais, ao redor de sua igreja, João de Camargo constituiu uma territorialidade negra que rivalizava com o ideal burguês e branco do progresso industrial de Sorocaba (CAVALHEIRO, 2020).

Considerações finais

Seria por demais de extenuante indicar outras referências de cultos de matriz africana ou afro-brasileira que tenham se desenvolvido no interior de São Paulo. Os casos aqui citados servem, ao menos, para que possamos formar uma síntese e, ainda, apontar para a formação de uma memória dos rituais afro-caipiras de São Paulo nos séculos XIX e XX.

A maior parte dos casos apontados aqui são tidos como cultos de origem banto. Por banto, conforme dito antes, entende-se um grupo linguístico dos quais participam os congos, angolas, moçambiques, macuas, cabindas, benguelas, monjolos, entre outros. Os nomes dos participantes, as palavras designativas de objetos ou ações cultuais, o nome das divindades, tudo indica a origem banto.

Ao tratar da “macumba paulista”, Roger Bastide salienta que “os negros paulistas eram em grande maioria bantos e que, no Brasil, é entre os bantos que se encontra a maior parte dos fatos ligados aos cultos dos astros, em estado puro…” (BASTIDE, 1983, p. 197). Os grupos bantos baseavam suas crenças no culto aos antepassados (ORTIZ, 1999). Esse culto aos antepassados conheceu diversas formas e tendências, como o culto da cabula, da macumba e da calunga, transformando-se e adaptando-se conforme as circunstâncias, organizando-se posteriormente em uma nova religião. Com isso, conforme atesta Monique Augras, a macumba “passou a integrar uma nova religião que congrega elementos africanos, indígenas, católicos, espíritas e ocultistas, ou seja, a umbanda” (AUGRAS, 2008, p. 30).

Os rituais afro-caipiras de São Paulo serão combatidos a partir do temor da elite branca acerca de duas possibilidades: a do uso do feitiço e a da aglutinação de negros para insurreição.

A primeira está ligada ao imaginário criado desde a Europa acerca dos poderes “demoníacos” que as bruxas e feiticeiros exerciam. O Tribunal do Santo Ofício, numa perspectiva de manter o monopólio sobre o “mercado religioso”,[3] prendeu e combateu os acusados de feitiçaria.

O uso de forças sobrenaturais para diversas finalidades povoou a imaginação popular dos luso-brasileiros, gerando um temor desmedido em relação aos cultos afro-caipiras. Negrão (1996, p. 47) recorda um fato ocorrido 1876, na cidade de Tietê, em que o inspetor de quarteirões não teve coragem de impedir a reunião na casa de Mamã Catharina “porque teve medo de feitiços”.

O ajuntamento de escravizados e libertos foi uma preocupação que permeou toda a instituição da escravidão. Afinal, o chamado “haitianismo” – receio de uma insurreição de escravizados ao modo de como ocorreu na Guerra de Independência do Haiti – tinha a sua razão de ser devido a crueldade e injustiça nas relações escravocratas.

Esse temor se estenderá pelas primeiras décadas do século XX, alimentado pela ocorrência de movimentos messiânicos como o de Canudos e do Contestado, amparados por figuras religiosas que poderiam aglutinar um número considerável de pessoas ao seu redor. João de Camargo, por exemplo, foi comparado a Antônio Conselheiro num relatório oficial de saúde pública (CAVALHEIRO, 2020).

Procurando fugir das perseguições institucionais, alguns desses cultos afro-caipiras acabaram se organizando em irmandades e confrarias católicas, em sociedades “espíritas” e, posteriormente, assumindo o nome da Umbanda (CAVALHEIRO, 2020; OLIVEIRA, 2008; CAMPOS e FRIOLI, 1999; KOGURUMA, 2001; BASTIDE, 1983, NEGRÃO, 1996; AMARAL, 1991; AUGRAS, 2008; ORTIZ, 1999).

O fato de encontrarmos elementos nesses relatos do século XIX e início do século XX com os quais possamos relacionar com o que conhecemos hoje dos cultos e rituais afro-brasileiros demonstra uma resistência cultural que atravessou os tempos:

A velha feitiçaria dos escravos negros, que começou quinhentos anos atrás, noturnamente, às escondidas, nos terreiros das senzalas e nos arredores das fazendas, e que passou às rezas e comemorações nas confrarias católicas, nas igrejas e nos adros, acabando por dançar nos batuques das congadas, dos lundus e dos cateretês, essa feitiçaria foi persistindo nos calundus quase dois séculos, até que ganhou seus templos nas casas das cidades e acabou desabrochando em seus múltiplos arranjos pelos Brasil afora (CAMPOS, FRIOLI, 1999, p. 34).

O estudo dos rituais afro-caipiras do passado, portanto, permite olhar em perspectiva para a trajetória percorrida até os dias de hoje pelas diversas formas e modalidades da religiosidade africana no Brasil, especialmente dos grupos bantos, ocorridas por imposições sociais e econômicas, como apontou Ortiz (1999), culminando no surgimento, posteriormente, da Umbanda.

Referências

AMARAL, Raul Joviano. Os pretos do Rosário de São Paulo. São Paulo: João Scortecci Editora, 1991.

AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose – A identidade mítica em comunidades nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983.

BASTOS, Abguar. Vocabulário dos ritos mágico-brasileiros de origem africana. In: D.O. Leitura, 10 dez 1991.

BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 2009.

CAMPOS, Carlos de., FRIOLI, Adolfo. João de Camargo de Sorocaba – O nascimento de uma religião. São Paulo: Ed. Senac, 1999.

CAMPOS JUNIOR, João de. As religiões afro-brasileiras – Diálogo possível com o cristianismo. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1998.

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Vadios e Imorais. Sorocaba: Crearte, 2010.

______. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006. 

______. João de Camargo, o Homem da Água Vermelha. Maringá (PR): A. R. Publisher, 2020.

______. Tradições negras sorocabanas e memória. Sorocaba: Do autor, 2015.

COUCEIRO, Luiz Alberto. Pai Gavião e a Coroa da Salvação: crença e acusações de feitiçaria no Império do Brasil, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – IFCS/UFRJ, 2004.

CORTEZ, Edmundo Maranhão. Religiões africanas: Umbanda. São Paulo: Editora Três, [1986].

DUBUGRAS, Elsie., GRAZIANO FILHO, Romeo., DOLIS, Rosângela Maria. Cultos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Três, s/d.

GASPAR, Antônio Francisco. O Mystério da Água Vermelha. (ed. Fac-similar). Sorocaba: Gilberto Tenor, 2020.

KOGURUMA, Paulo. Conflitos do Imaginário. São Paulo: Annablume, 2001.

MOTT, Luiz. Paulistas e colonos de São Paulo nas garras da Inquisição. In REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 116-128, março/maio 2000.

NARDY FILHO, Francisco. A cidade de Itu – vol. 3. Itu: Ottoni, 2000.

OLIVEIRA, José Henrique Motta. Das macumbas à umbanda. Limeira (SP): Editora do Conhecimento, 2008.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense, 1999.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. São Paulo: Edusp, 1996.

PAULA JUNIOR, Antonio Filogenio. Saberes no pé do Tambu. Rio de Janeiro: Malê Edições, 2022.

RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo: Martin Claret, 1999.

RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

[1] Resolução nº 71 de 2 abr 1876 – Código de Posturas da Câmara Municipal de Campinas. Acervo ALESP, texto disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao/1876/resolucao-71-02.04.1876.html Acesso em 29 jan 2023. Interessante perceber que essas Casas de Batuques não se confundem com os batuques que são dançados. Na mesma postura, aparece outro artigo reprimindo a dança do batuque: “Art. 199. – Ficão prohibidos dentro da Cidade, ou chacaras proximas á Cidade, batuques, cantorias e dansas de pretos ou escravos que possão incommodar a vizinhança e o publico. O dono da casa ou chacara será multado em 20$000”. [2] Resolução nº 103 de 3 maio 1870 da Câmara Municipal de Santos. Acervo ALESP, texto disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao/1870/resolucao-103-03.05.1870.html Acesso em 29 jan 2023. [3] O termo é emprestado do sociólogo Peter Berger que ensina que com o fim dos monopólios religiosos (separação entre o Estado e a Igreja), as instituições religiosas “não podem mais contar com a submissão de suas populações”. Assim, “a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado” (BERGER, 2009, p. 149). As diferentes tradições religiosas, portanto, com o fim do monopólio, disputam o mercado religioso entre os possíveis fiéis / consumidores.

Carlos Carvalho Cavalheiro

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