Caetano cantando Divino Veloso Ode à Alegria, Alegria Os astros lhe são guia O mundo é perigoso Nos acordes da sinfonia! Caetano Maravilhoso. Cantando o Caetano Cai tanto o sol quanto a chuva No céu de Sampa No Planalto da Rampa Na fina estampa… Caetano cantando Divino Veloso Caetano Maravilhoso.
Carlos Carvalho Cavalheiro
O admirável mundo de João de Camargo
Carlos Carvalho Cavalheiro:
‘O admirável mundo de João de Camargo’
Carlos C. CavalheiroIgreja de Nosso Senhor Jesus do Bonfim ou Igreja de João de Camargo. Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro
João de Camargo foi um ex-escravizado que no início do século XX construiu uma capela na estrada da Água Vermelha, município de Sorocaba, no Estado de São Paulo (Brasil) e deu início a um culto que aparentemente mesclava tradições africanas com catolicismo popular.
Diz o memorialista Antônio Francisco Gaspar que “em princípios de 1906 era empregado na olaria de Elias Monteiro, na ‘Água Vermelha’, um preto ainda moço por nome João de Camargo” (Gaspar, 1925, p. 23). Nessa ocasião, teria João de Camargo recebido da “espiritualidade” uma missão que seria a construção da igreja “longe do bulício da cidade, distante das orgias e das iniquidades […] para o fim de prodigalizar benefícios àqueles que deles necessitarem” (Gaspar, 1925, p. 26).
João de Camargo, então, construiu a sua capela e começou a atender aos necessitados, dando-lhes conforto com seus conselhos, mas, também, promovendo curas milagrosas e usando de seus dons para a promoção do bem. Como afirmou o escritor e folclorista Bene Cleto, o taumaturgo João de Camargo “até sua morte, em 1942, não cessou um só dia em fazer o bem a seus semelhantes, de sanar suas dores – fossem elas do corpo ou do espírito” (Cleto, 2020, p. 43).
Porém, além de promover curas e atendimento aos necessitados, João de Camargo foi uma liderança comunitária. No entorno de sua Igreja surgiu, organizado por ele mesmo, um bairro com estrutura de casas de aluguel, de Hotéis, armazéns e outros serviços. O terreno no qual esse bairro começou a se formar era propriedade doada a João de Camargo por seu primo Pedro de Camargo. Nessa localidade, as manifestações culturais de origem africana ou afro-brasileiras eram permitidas, ao contrário do que ocorria na região central de Sorocaba, onde tais manifestações eram reprimidas pela polícia e pela vigilância dos grupos de poder e tomadores de decisão (Cavalheiro, 2020).
Bastante sintomático foi o esforço de João de Camargo em constituir uma Banda musical e construir um prédio para abrigar uma escola. Assim, promoveu a educação e a oportunidade de trabalho digno para pobres e negros. Em uma época muito próxima ao fim da escravidão, a exclusão social dos afrodescendentes era visível e esperada. O próprio João de Camargo, ex-escravizado, analfabeto e quase que sem qualificação profissional, teve que se sujeitar a trabalhos grosseiros, pesados e mal remunerados.
Obviamente que João de Camargo foi perseguido. Em 1913, chegou a ser preso e processado por curandeirismo (mesmo que o objeto principal da denúncia do promotor público fosse o ajuntamento de pessoas em torno da igreja). Assistido pelo advogado Juvenal Parada, que promoveu uma qualificada defesa, João de Camargo foi absolvido. Mas, por longos anos sofreu a discriminação e o preconceito social.
Ocorre que a burguesia de Sorocaba tinha um projeto de cidade sintetizado no epíteto de Manchester Paulista: uma associação com a cidade industrial inglesa, símbolo de progresso capitalista. A esse projeto concorria o território negro e caipira criado por João de Camargo (Cavalheiro, 2020).
Em 1929, um relatório da cidade de Sorocaba ao Inspetor Chefe apresenta João de Camargo como um “caso typico de curandeirismo, nos moldes de um ‘Antônio Conselheiro’”… (Cavalheiro, 2020, p. 74). Ora, Antônio Conselheiro foi o líder messiânico que, juntamente com os seus seguidores, defendeu a localidade chamada de Canudos dos ataques das tropas federais brasileiras republicanas, cujo entendimento era de que aquela comunidade era um antro de fanáticos e desordeiros.
João de Camargo faleceu em 28 de setembro de 1942 e com o passar dos anos sua imagem foi sendo modificada, especialmente nos textos jornalísticos. Hoje ele é interpretado como um benfeitor, um líder religioso e comunitário, um “santo”.
E a sua igreja é um local onde o ecumenismo e o ecletismo religioso de fato ocorre.
Tradições religiosas que se mesclam
À primeira vista, parece um caos. Depois, a ordem vai se estabelecendo e cria a harmonia do ambiente. A multiplicidade de imagens de tradições tão diferentes (como kardecistas, candomblecistas, umbandistas, católicas, esotéricas, orientalistas…) se miscigenam, e como numa mistura de diversos líquidos, se decantam e encantam até atingir a perfeita amálgama.
Na igreja de João de Camargo (oficialmente Igreja de Nosso Senhor Jesus do Bonfim), em cada nicho e em cada espaço há imagens de orixás, de entidades da umbanda (como Maria Padilha, Zé Pelintra, Caboclos e Pretos-Velhos), orixás do candomblé, santos católicos, santos populares (como Padre Cícero, Antoninho Marmo da Rocha, Menina Julieta…), mestres juremeiros, deuses hindus, e até mesmo imagens de Buda.
Para completar o sentido eclético do lugar, nas paredes é possível encontrar fotografias e desenhos de autoridades religiosas e políticas como Getúlio Vargas, Papa João Paulo II, Dr. Ferreira Braga (um político local do passado) e até Allan Kardec (codificador do Espiritismo).
Aparentemente, essa mescla de tradições religiosas – em consonância com personalidades históricas e lideranças políticas – não é uma exclusividade da Igreja de João de Camargo. Possivelmente, seja até mesmo um traço cultural de origem africana que não promove a separação entre o sagrado e o mundo dos seres humanos. E nem mesmo se preocupa com uma questão que Peter Berger levantou: a do mercado religioso.
Para esse sociólogo, o fim das religiões oficiais (impostas pelos governos, sobretudo pelas monarquias absolutistas), propiciou a liberdade de escolha. Assim, as religiões acabam por disputar fiéis dentro de uma lógica de mercado. Daí a expressão “mercado religioso” (Beger, 2009).
No ano de 1958, o escritor Aldous Huxley visitou o Brasil. Nessa visita, na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, ele foi levado a um terreiro de macumba, nome genérico dado a algumas das tradições religiosas afro-brasileiras. O pesquisador Renato Ortiz encontrou uma nota no jornal paulistano “O Estado de S. Paulo” que descreveu essa visita com um certo horror e vergonha, pois, de acordo com o redator, tais manifestações eram testemunhas de nosso “atraso”.
“É profundamente humilhante para todos nós, brasileiros, que o escritor Aldous Huxley tenha podido assistir, em pleno coração do Rio de Janeiro, a uma cerimônia de macumba. Não apenas porque alguns pretensos intelectuais encaminhassem o famoso autor de Admirável Mundo Novo, para o morro do Salgueiro. Mas, pela simples e única razão de ser ainda possível, em mil novecentos e cinquenta e oito, quando caminhamos em plena era atômica não se sabe se para o cataclismo, a realização de torpezas tais na própria capital da República”. Assim, de acordo com Ortiz, a nota jornalística salienta o preconceito em relação às tradições afro-brasileiras na metade do século XX.
Mas o que interessa a este artigo é o trecho em que o repórter anota uma observação que se coaduna com o que esteticamente ocorre dentro a igreja de João de Camargo:
“[…] sobre um altar, estavam juntos imagens de santos católicos, orixás, fetiches africanos e ameríndios, fotografias de políticos, estampas de Tiradentes, figuras de Buda e de Zumbi dos Palmares, além de cerâmicas de bichos, conjunto este que impressionou o escritor inglês. As danças e cantos que seguiram, interrompidos a meio pelo ‘Pai de santo’ para o ‘abraço duplo ao visitante’, prosseguiram depois dedicados a este” (Ortiz, 1999, p. 200).
Esse é um indício de que muitos cultos afro-brasileiros compuseram seus espaços com essa estética que mistura elementos de várias dimensões da vida humana, desde o sagrado, passando pelo político e pelo mítico / heroico.
No entanto, com o passar dos anos, essa estética foi sendo modificada e, atualmente, não é mais comumente vista nos terreiros das religiões afro-brasileiras. Por isso, a preservação da Igreja de João de Camargo é importante, porquanto é um testemunho vivo de uma prática – ética e estética – que deixou de existir. É, possivelmente, um exemplar único. Um patrimônio para todos nós.
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Referências:
Berger, Peter L. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 2009. Cavalheiro, Carlos Carvalho. João de Camargo, o Homem da Água Vermelha. Maringá (PR): Editora A. R. Publisher, 2020. Cleto, Bene. Causos do Leôncio e outros causos. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, 2020. Gaspar, Antônio Francisco. O Mystério da Água Vermelha. Sorocaba: Do Autor, 1925. Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense, 1999.
Carlos Carvalho Cavalheiro: Resenha ‘No palco feminista’
Carlos Carvalho CavalheiroAdriana Rocha Leite
No Palco feminista.
Este é o título do livro recém-publicado pela escritora Adriana Rocha Leite.
Advogada de profissão, especialista em mediação e comunicação não-violenta, Adriana – que já tem em seu ‘cartel’ mais de dez títulos publicados – enveredou pela estrada que leva a um lugar de reflexão do papel da mulher na sociedade e dos desafios diante de uma cultura massivamente patriarcal e machista. Nesse caminho, colheu as mais interessantes palavras com as quais vestiu as histórias contadas nesse livro.
Em ‘No palco feminista’, Adriana narra a trajetória de três personagens femininas, que, aparentemente, refletem a mesma mulher em processo de construção de sua identidade – essa busca de saber quem somos no lugar em que estamos – da infância, passando pela juventude e pela maturidade.
Poeticamente, as personagens de Adriana Rocha Leite possuem em seu nome o mesmo sufixo ‘ina’: Carina, Santina e Justina. Menina, feminina, mas, também, designativo feminino para muitas palavras: maestrina, inquilina, divina, taurina, matutina, bailarina…
Carina é a menina que procura entender o mundo que a rodeia e as regras sociais estabelecidas para a mulher. Não é necessariamente uma pessoa passiva, muito pelo contrário, mas que busca nas brechas as rotas de saída para a sua sobrevivência. Assim, vai entendendo o funcionamento da máquina que move a sociedade e, ao fim, por meio da aquisição do conhecimento, se transforma. Talvez, seja possível imaginar que o nome Carina se refira a caridade em sua etimologia: caritas, amor incondicional, algo caro, que possui valor. A transformação da consciência de Carina é, de fato, uma conquista de grande valor numa sociedade que ainda insiste em separar os seres humanos – por gênero, cor, etnia, religião, pensamento… – para produção da desigualdade.
Santina é a jovem que decide seguir as normas sociais e se tornar coadjuvante na vida de casada. O nome remete, parece, a santa e isso nos leva a diversos referenciais como a de mártir que abre mão de sua vida por algo que aparentemente é um bem maior. No entanto, a sua consciência se desperta no dia do casamento e ela percebe que esse não é a melhor opção. Quando somos jovens, tanto homens quanto mulheres, em geral ainda não desenvolvemos a maturidade suficiente para as nossas melhores escolhas. Mas a narrativa de Adriana Rocha vai um pouco mais a fundo. Ela desvenda o mundo em que a existência da mulher, via de regra, só é permitida quando associada a um homem. “Por trás de um grande homem há uma grande mulher”, diz o adágio. Por que atrás do homem? Por que não pode estar ao seu lado? “E eu os declaro marido e mulher”. Por que o homem é sempre homem, mesmo se não estiver casado, mas a mulher só se torna tal quando se casa? Que força tem essa união com o homem que legitima o reconhecimento da pessoa feminina como mulher?
Justina, por outro lado, é a mulher madura que já se viu em todas as outras situações vivenciadas pelas outras personagens e, também, por situações outras como a de abuso na infância. Porém, guerreira, ela superou todas e, agora, ensina as mulheres a não se sujeitarem mais aos desmandos do machismo. Alcançou a justiça (acho que é daí a inspiração do seu nome) e está num pedestal como a mulher que luta por seus direitos. Refaço a conclusão: ela não está no pedestal (talvez, Santina estivesse). Ela está no palco. Mas, agora, ela é a protagonista!
Ao final do livro, Adriana nos traz a trajetória da atriz Dina Lisboa, que rompeu com os padrões conservadores de sua época.
O livro ‘No palco feminista’, de Adriana Rocha Leite é leitura obrigatória para toda e qualquer pessoa. Para as mulheres, há de servir como inspiração. Para os homens, certamente, como lição a ser aprendida.
“Um país sem cultura é um corpo sem alma.” (Walter Franco)
Walter e Diogo Franco, Adilene Ferreira Carvalho Cavalheiro, Fernanda Ikedo e Carlos Carvalho Cavalheiro no camarim da Fundec em 2011. Walter Franco está segurando o exemplar do jornal Sepé-Tiaraju com a sua entrevista.
O ano era 1994. Walter Franco, ícone da música brasileira, viria a Sorocaba, cidade do interior paulista, para realizar uma apresentação musical num bar. Era o dia 13 de maio e eu acabara de completar 22 anos de idade.
Apreciador da obra de Walter Franco, eu não me contentei apenas em assistir ao show. Eu o entrevistei – quase que de madrugada – após a apresentação. Simpático, o artista recebeu a mim e amigos para a entrevista que foi publicada no jornal cultural Sepé-Tiaraju.
No dia 29 de junho de 2011, dezessete anos depois, Walter Franco retornou à cidade para o show “Raça Humana”, com a participação de seu filho Diogo Franco. Na oportunidade, consegui entregar o exemplar do jornal de 1994, com a entrevista que fiz com ele. Walter Franco, então, pediu para que eu desse um autógrafo!
Claro que eu também pedi o meu. Walter Rosciano Franco nasceu em São Paulo em 6 de janeiro de 1945 (Dia de Reis). Faleceu em 24 de outubro de 2019, aos 74 anos de idade, após sofrer um AVC. Foi um dos grandes nomes da música popular no Brasil. Eis a íntegra da entrevista de 1994:
“Ele subiu ao palco com seu violão. Sentou-se num banquinho. Conversou com o público, apresentou sua banda e orquestra com corais e maestro imaginários. Cantou. E como não poderia deixar de ser, encantou. Pela primeira vez em vinte e poucos anos de carreira artística, Walter Franco se apresentou em Sorocaba no dia 13 de maio pp. no Bar Koisa Nossa. Após o show, ele concedeu a entrevista que vocês irão conferir agora. Agradecimentos especiais ao Cícero, ao pessoal do Koisa Nossa e da Ge-Hum pela colaboração, sem a qual esta entrevista não poderia ser realizada”.
Carlos Carvalho Cavalheiro – Walter, você estava desaparecido nos últimos tempos. Por onde você andava?
Walter Franco – É circunstancial essa minha parada… no disco. Na música, não. Eu tenho feito uma carreira mais sutil, digamos assim. Eu tenho me apresentado ciclicamente, nos espaços em São Paulo, algumas capitais que me atraem muito, e interior também. Tenho procurado não me afastar totalmente.
E acontece comigo um mistério grande: mesmo que eu desapareça por algum tempo, quando eu volto, o público aumenta. Há uma resposta grande para mim. Isso me deu tranquilidade porque eu nunca, na minha carreira toda, sempre me neguei a fazer um disco comum, nunca joguei esse jogo da mídia.
E acredito que, atualmente, seja uma consequência natural disso. As pessoas me chamam, eu estou mais disponível. Fechei para balanço. Continuei trabalhando com música, me aperfeiçoando, buscando compreender esse processo de autoconhecimento, mas não culpo ninguém por isso, não.
Eu sou responsável pelas coisas boas ou não-boas que me acontecem. Mas, não me afasto, não. Eu simplesmente tenho estado presente de uma forma mais sutil. Não tanto pela grande mídia, mas tenho estado presente esse tempo todo.
CCC – Você musicou letras de autoria de seu pai, Cid Franco. Fale um pouco sobre ele e sua influência em seu trabalho.
WF – Foi meu grande amigo, meu mestre na arte de discernir a vida, principalmente a partir dos princípios éticos, morais, enfim, coisas que hoje em dia estão meio postas de lado. Mas foi meu grande amigo e, circunstancialmente, por coincidência, nesta encarnação – nesta “encadernação” – foi, também, meu pai.
Foi um político, o primeiro vereador socialista eleito no Estado de São Paulo, mas, como político, um grande poeta. Uma pessoa que vivenciava, na verdade, os seus achados poéticos. E uma pessoa que deixou, para mim, para meus filhos, enfim, era uma pessoa pública, acredito que um dos maiores exemplos que um ser humano possa deixar, que é do desapego.
Uma pessoa que dedicou a sua vida a estudar Mahatma Gandhi, a vida de Cristo, a pesquisar as linguagens alternativas, já naquela época, desde discos voadores até a dedicação à literatura infanto-juvenil, à poesia, à literatura, prosa, o jornalismo, o radicalismo, enfim… Mas uma pessoa voltada para o crescimento do ser. Uma pessoa que buscava se aperfeiçoar.
Um político que, na verdade, passou para a outra vida em função do sofrimento porque foi cassado pelo Golpe de 64, por razões ideológicas, por ser um homem de esquerda, um socialista democrático, mas que deixou para nós, para mim, para os meus filhos, para minha família, para as pessoas todas que vocês viram aqui presentes,[1] o exemplo do amor fraterno.
Uma pessoa que nos ensinou a não sentir ódio ideológico, a combater o ódio ideológico, a conviver, a se relacionar até mesmo com os contrários ideologicamente. Eu acho isso o maior exemplo que o ser humano nessa vida pode aprender, a se aperfeiçoar na arte de conviver com os opostos, e se reduzir a zero, como diria Mahatma Gandhi, se colocar no último degrau dos seus semelhantes.
E aqui não vai nenhum sentido messiânico, místico- religioso, não. O princípio de fraternidade, de amizade, de humildade, enfim, sem sentido pejorativo nenhum, como diria Mahatma Gandhi: “Não haverá nenhuma salvação para eles”. Eu tive o privilégio de conviver com as artes, com a poesia, com a literatura, com a música desde garoto na minha própria casa. Talvez, por isso, eu tenha saído meio do jeito que sou.
CCC – Nos seus dois primeiros discos (Ou não e Revolver) você desenvolveu um trabalho mais de vanguarda, experimentalista, se é que assim podemos qualificar. Já a partir do terceiro LP (Long Play), Respire Fundo, houve uma mudança de estilo bem perceptível. Como está hoje o seu trabalho? Esse é o prenúncio de uma nova fase?
WF – Acredito que sim. A gente é a soma daquilo que fomos e do que fizemos. Eu sou a soma disso tudo. Busco me aperfeiçoar. Não há segredo nenhum nisso. Não há nem o personagem artista. Eu sou uma pessoa que está buscando se aperfeiçoar nesse caminho.
CCC – Neste show você se apresenta apenas com violão. Por quê?
WF – Isso tem a ver com o momento. Eu tenho várias alternativas. Eu trabalho com banda, tenho uma superbanda com seis músicos… uma banda concreta (risos).[2] São músicos de primeira. Eu tenho a satisfação de ter sempre tocado com grandes músicos, de João Donato a Wagner Tiso, aos meninos dos Mutantes, enfim, a minha trajetória, se você olhar os meus discos, a ficha técnica do “Respire Fundo” tem mais de 150 músicos…
CCC – Até mesmo o Lobão…
WF – Até o Lobão, até o Lulu Santos, enfim, eu tenho essa satisfação. Mas, no momento, histórico que estamos vivendo, o artista tem que ter várias alternativas para trabalhar.
Assim, como eu viajo com banda para espaços maiores, com produções maiores, eu viajo também com trabalho experimental, com engenheiros de som, trabalho que venho desenvolvendo há muito tempo, e viajo, também, só com violão solo; voz e violão, dessa maneira que vocês viram porque eu acho que o artista é um trabalhador, ele tem que estar presente. A mim me interessa estar presente fisicamente com as pessoas, com vocês e, profissionalmente, é importante isso porque é daí que a gente vive e sobrevive.
CCC – Você influenciou uma geração de roqueiros nos anos 80: Arnaldo Antunes (ex-Titãs), Camisa de Vênus (que regravou “Canalha”), Olho Seco (que regravou ‘Feito gente”)… Como você vê essa influência numa geração posterior, uma década depois de seu surgimento no cenário brasileiro?
WF – Eu acho que é isso que a gente quer. Quando a gente faz alguma coisa, a gente imagina que chegue a algum lugar. E, de fato, o Arnaldo[3] deu algumas entrevistas falando do resgate dessa linha evolutiva do “Revolver”, do “Araçá Azul”.[4] É meu parceiro também. Tenho uma canção inédita com ele.
O “Camisa de Vênus” me deixou feliz, e tantos outros, o próprio João Gordo do Ratos de Porão deu uma declaração falando do trabalho da gente como precursor dessa coisa punk e tal. Eu sempre atuei em vária faixas. A minha música vem desde o silêncio até o grito primal. Eu sempre trabalho dessa maneira. Talvez por isso eu tenha atingido tantas regiões, digamos assim, da musica.
CCC – É difícil ser um artista autêntico no Brasil? Artista que não se vende aos ditames da mídia e do mercado?
WF – O estar distante da mídia é circunstancial. Eu não parto desse princípio. É óbvio que há fases, a moda conduz a música popular para esse ou para aquele caminho. Mas como artista eu sempre estive na grande mídia. Eu sempre pertenci a grandes gravadoras. Eu nunca fiz um trabalho independente.
Eu sempre tive o apoio das grandes gravadoras para fazer meu trabalho. Se não gravei durante esse tempo todo é circunstancial, tanto quanto Paulinho da Viola que ficou sete ou oito anos sem gravar, e tantos outros. Mas eu acredito que o artista , na verdade, ele tenha mais poder. Não poder a partir da volúpia, a volúpia de poder, mas um poder oriundo de sua própria natureza.
Enquanto um político sobe ao palanque para fazer um discurso em época de eleição, atrás de votos, e essa coisa toda; enquanto um militar impõe o poder a partir de seu próprio status; o artista sobe ao palco e canta um refrão e estimula toda uma multidão, toda uma plateia.
Então, é preciso que os artistas em geral também partam para isso. Não se deixem usar simplesmente em época de eleição para esse ou aquele candidato, enfim, essa coisa toda. Porque o país sem cultura, sem querer ser redundante e cair num lugar comum, é um corpo sem alma.
Tivemos a experiência a pouco de um presidente que foi cassado,[5] que a primeira coisa que fez foi bloquear o estímulo à cultura. Por quê? Porque um povo culturalmente bem informado é um povo atento. Essa é a função dos artistas, de manter, de uma forma ou de outra, esse estímulo.
CCC – Proposta de um novo disco? Você volta a gravar?
WF – Espero que sim. Estou com um trabalho novo, estou compondo, fazendo as coisas. Vai depender do ritmo das coisas. Estou relançando agora dois LP’s em CD pela Warner, Continental-Warner e isso, com certeza, está dando um pique grande para a continuidade do meu trabalho posteriormente.
CCC – Como você define o seu trabalho hoje?
WF – Eu nunca defini o meu trabalho. Ele sempre foi definido pelas pessoas. Eu prefiro permanecer assim.
CCC – E, para encerrar, você gostaria de deixar alguma mensagem?
WF – Eu quero: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.
Carlos Carvalho Cavalheiro
[1] Walter Franco tinha familiares residentes em Sorocaba e que assistiram ao seu show naquele dia. [2] No show, Walter Franco simulou a existência do acompanhamento de uma banda imaginária. [3] Arnaldo Antunes [4] Disco experimental de Caetano Veloso. [5] Fernando Collor de Mello
Movimento Cultivista Café com Poemas abre chamada para Coletânea
O Movimento Cultivista Café com Poemas, surgido em 2013 na cidade de Belo Horizonte, está promovendo um chamado de poetas que queiram participar da publicação de uma coletânea
O Movimento Cultivista Café com Poemas, surgido em 2013 na cidade de Belo Horizonte, está promovendo um chamado de poetas que queiram participar da publicação de uma coletânea.
A proposta faz parte dos objetivos do Movimento que tem o propósito de promover a literatura nacional entre escritores e leitores.
Essa coletânea, de alta qualidade, fortalece a credibilidade que vem sendo conquistada desde 2013 e busca promover autores que desejam uma oportunidade para divulgar sua arte. O Brasil é um celeiro de poetas, mas nem todos têm condições econômicas para publicar um livro.
As coletâneas têm sido uma resposta positiva para os poetas – especialmente os iniciantes – que conseguem dessa maneira publicar seus trabalhos ao mesmo tempo em que vão consolidando seu nome e sua autoestima.
Podem participar dessa coletânea todos os poetas residentes ou naturais do Brasil, de qualquer idade, sendo que autor menor de idade deve ser representado por seu representante legal que deverá fornecer autorização escrita no ato da inscrição.
Essa coletânea de poesias, com temas variados será realizada pela Editora e Livraria Novos Sabores Publicações. A organização será de Leandro Flores e Priscila Mancussi, com a colaboração dos coordenadores do Movimento Cultivista pelo Brasil. Priscila Mancussi é poeta de Sorocaba e participante da FLAUS (Feira do Livro e Autores Sorocabanos).
Os poetas interessados em participar da Coletânea devem realizar a inscrição virtual por meio do link: https://forms.gle/X5fE2mcrFJGpR33B9
O prazo de inscrição se encerra no dia 31 de julho.
O autor selecionado se compromete a contribuir com o valor de R$50,00 (cinquenta reais) por página com direito a 1 (um) exemplar ou R$100 (cem reais) por página com direito a 3 (três) exemplares.
Outras informações de contas e agências poderão ser disponibilizadas. Favor entrar em contato por e-mail: mov.cafecompoemas.sorocaba@gmail.com ou por meio dos telefones: (71) 991535442 ou (15) 988094331.
Antologia reúne escritores de Angola, Brasil e Portugal
No dia 23 de julho, além do lançamento do livro, ocorrerá o I Encontro dos Escritores da Língua Portuguesa, e apresentação cultural dos 3 países
A 1.ª Antologia da FEDERAÇÃO BRASILEIRA DOS ACADÊMICOS DAS CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES – FEBACLA, dos Escritores de Língua Portuguesa, que irá agregar cerca de 30 escritores lusófonos (Angola, Brasil e Portugal), define um importante marco na história da literatura de língua portuguesa no cenário internacional, por reunir, além da arte poética intrínseca em si mesma, diferentes povos, culturas, histórias, falas e vivências.
A presente Antologia é um verdadeiro cancioneiro de belas flores poéticas que se desafia a marcar a sua posição na história da literatura mundial como um elemento importante na perpetuação dos vários modos de falas e dos respectivos povos. Constitui-se como uma ferramenta de empoderamento e posicionamento no vasto universo das artes.
Pela sua dimensão internacional é um instrumento eficaz que elevará as diferentes formas de comunicar com a língua para além dos limites fronteiriços geográficos atualmente impostos pelos continentes.
A Antologia é organizada pela brasileira Rita Melo e pelo angolano Kapa Afonso.
Dentre os escritores convidados para figurar na Antologia está Dom Alexandre da Silva Ruricovich Carvalho que tem se destacado à frente da presidência da Febacla e como um dos maiores incentivadores da arte e da cultura no Brasil. Por intermédio de sua atuação, Dom Alexandre tem concedido inúmeras honrarias a escritores, cientistas, artistas e intelectuais.
Ainda representando a Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente e o Centro Samarthiano de Altos Estudos Filosóficos, Dom Alexandre Ruricovich Carvalho tem honrado muitos produtores de cultura com medalhas, comendas e títulos honoríficos.
O evento de lançamento da Antologia será transmitido via internet para os países participantes.
Lançamento no Brasil 23 de julho, no FESTIVAL DE INVERNO DO SESC – Teatro SESC, ás 19 h Lisboa (12\outubro) e em Vila Nova de Mil Fontes (14\outubro).
No dia 23 de julho, além do lançamento do livro, teremos o I Encontro dos Escritores da Língua Portuguesa, e apresentação cultural dos 3 países.
“No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente”. (Carlos Cavalheiro)
Carlos Cavalheiro
No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente. Acredita-se que as longas viagens realizadas por lugares inóspitos e desabitados (e que assim permaneceram por muito tempo), forjaram o espírito do tropeiro com a tendência à vida livre e solta.
Sendo o fenômeno do tropeirismo coincidente, em significativa parcela, com a escravidão negra, é de se pensar se houve alguma relação entre o tropeirismo e o sonho de liberdade dos escravizados. Em outras palavras, se o tropeirismo tornou-se alternativa para o rigor do cativeiro.
O historiador Aluísio de Almeida afirma que “Manuel Cardoso (1961) provou que a escravidão no Rio Grande do Sul foi mais benigna, porque os escravos eram boiadeiros. Podemos chegar a mesma conclusão em Sorocaba onde os escravos tropeiros eram bem tratados. Os tropeiros” (ALMEIDA, 1969, p. 2). Florisbela Carneiro Zimmermann defende a ideia de que o trabalho em comum entre patrões e peões na lida tropeira aproximou a ambos. Sendo assim, o “dono das tropas soube melhor compreender seus subordinados” (ZIMMERMANN et al, 1991, p. 19).
Desse modo, é possível que escravizados e libertos tenham preferido a lida nas tropas a outros trabalhos. No entanto, em quais fontes podemos encontrar a presença do escravizado ou do liberto (africano ou seu descendente) dentro do tropeirismo?
Algumas gravuras de Debret como Tropeiros e Pouso de tropeiros confirmam a presença de africanos e seus descendentes nas tropas (FLORES, 2004, p. 460). Porém, outra fonte valiosa para o estudo da presença de africanos e descendentes, especialmente enquanto escravizados, pode ser encontrada nas publicações de fugas espalhadas pelos diversos jornais de praticamente todo o Brasil.
Neste artigo, nos deteremos nas décadas de 1820 a 1850, época em que o tropeirismo está se consolidando, ao mesmo tempo em que a escravidão começa a ser questionada enquanto forma viável de exploração do trabalho, culminando, nessa época, com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz que proibiu o tráfico negreiro intercontinental, ou seja, da África para o Brasil.
Além disso, foi nessa época, também, que o país se torna politicamente independente e, depois de algumas crises, se estabiliza com a ascensão do segundo monarca. Portanto, este recorte, apesar da arbitrariedade inerente a ação do pesquisador – pois todo recorte é, de certa forma, arbitrário – não deixa, por outro lado, de se justificar.
Aqui, também, não se distinguirá, a princípio, a tropa xucra da arreada. Não é o fato de que se desconheçam as diferenças entre uma e outra realidade, mas, por outro lado, percebe-se, pelas fontes compulsadas, que o tropeiro escravizado, na maioria das vezes, poderia se empregar em qualquer uma das duas modalidades de tropa.
O padre Francisco de Assis Ribeiro, capelão do 7º Batalhão em Santa Efigênia, São Paulo (capital), por exemplo, oferecia para compra um escravo de 40 anos de idade e que possuía as seguintes qualidades: “bom cosinheiro, lava e engoma bem roupa, bom arreador de tropa, mestre de vallo e carreiro, bom pagem” (O FAROL PAULISTANO, 28 set 1830, p. 4). Esse escravizado estaria apto a trabalhar, em tese, tanto com tropa xucra quanto arreada, até mesmo pelo fato de ser considerado bom cozinheiro.
Já outro escravizado, do Rio de Janeiro, era vendido como “bom campeiro, adomador de mulas e cavalos, he próprio para bolieiro” (JORNAL DO COMMERCIO, 8 jan 1830, p. 2).
Na década de 1850 fugiu de Campinas, possivelmente com destino a Sorocaba, um escravizado de nome Antônio, o qual, de acordo com a publicação dos jornais, “carrea, doma, e inculca-se camarada de tropa” (CAVALHEIRO, 2006, p. 56). Curiosamente, alguns destinos desses escravizados em fuga e que buscavam trabalho nas tropas, eram recorrentes.
Sorocaba era um desses destinos e isso se explica pelo fato da existência de uma concentração de tropas nessa cidade por conta da Feira de Muares que ocorria anualmente e do Registro de Animais e cobrança de impostos a partir de 1750 (ALMEIDA, 2012, p. 59).
Benedicto, por exemplo, escravo de Francisco Ferreira Prestes, que fugira em 1870, provavelmente se dirigira para Sorocaba e “desconfia-se que queira justar-se como camarada em alguma tropa que siga para Minas” (O SOROCABANO, 05 jun 1870, p. 01).
Rio de Janeiro, então capital do país, também era uma terra buscada pelos fugitivos que desejavam vender sua força de trabalho para as comitivas tropeiras. De Goiás, por exemplo, fugiu a Domingos José Dantas de Amorim o escravo Florêncio, que, segundo acreditava-se, “consta que anda como camarada de Tropa no caminho do Rio de Janeiro com o nome de Joãosinho Cuiabano” (O UNIVERSAL, 19 mar 1830, p. 4). De Silveira, Distrito de Lorena, “na estrada geral que segue para a Corte do Rio de Janeiro”, fugiu o escravizado Severino, de nação quilimã, “com o officio d’arreador de tropa” (O FAROL PAULISTANO, 16 abr 1831, p. 4).
Um fato curioso e inusitado. Há um anúncio de fuga que afirma ser o escravo um “índio”, em época na qual a escravização de indígenas no Brasil estava proibida. Mais curioso ainda é o relato desse anúncio que afirma que o fugitivo “falla Inglez, Português e Hespanhol” e que teria se “aneixado a alguma tropa que vai para Minas” (JORNAL DO COMMERCIO, 22 jan 1830, p. 3). O fato teria ocorrido na Ponta do Caju, no Rio de Janeiro.
De São Paulo fugiu Aleixo, que “teve principio de alfaiate e foi algum tempo tocador de tropas de animaes”, tendo se dirigido para os lados do Rio de Janeiro (O NOVO FAROL PAULISTANO, 30 abr 1833, p. 4).
Sorocaba, Rio de Janeiro e Minas Gerais eram destinos procurados por escravizados fugitivos que pretendiam trabalhar com tropas. Mas, por outro lado, os escravizados dessas localidades procuravam fugir para longe das vistas de quem os pudesse reconhecer. De Sorocaba fugiu Marcolino, com destino, possível, para Itapetininga ou Freguesia do Pillar. Apesar de lidar “soffrivelmente com animaes”, Marcolino “já esteve em Mogy-Mirim cuidando em tropas de bestas invernadas” (A PROVINCIA DE S. PAULO, 31 maio 1876, p. 3).
Da Villa de Valença, Província do Rio de Janeiro, fugiu e foi preso na Freguesia da Sé, em São Paulo, o escravizado Joaquim, o qual trabalhava para um senhor que era proprietário de engenho de café e de tropa (O PAULISTA OFFICIAL, 15 jan 1836, p. 4).
Muitos anúncios de fugas dão conta de que os escravizados já possuíam experiência em trabalho com tropas. Além dos acima já citados, há outros como é o caso de Adão, da Villa de Rezende, no Rio de Janeiro, o qual é “inclinado a lidar com tropa, ou carro” (JORNAL DO COMMERCIO, 12 jul 1830, p. 4). Ou Antônio, de nação Congo, morador da Villa de Pomba em Minas Gerais e que era “negro de roça, e também sabe lidar com tropa” (O UNIVERSAL, 30 out 1835, p. 4).
Também é o caso de outro Antônio, da nação Moçambique, residente em Catta Branca, Minas Gerais, o qual fugiu e era tido como “acostumado a andar com tropas” (O UNIVERSAL, 25 maio 1836, p. 4).
No Rio de Janeiro anunciou-se a venda de um escravo que “era bom cozinheiro de tudo” e que “também sabe tratar de cavallos” (JORNAL DO COMMERCIO, 20 set 1830, p. 3). Martinho, escravo morador em Jundiaí, interior de São Paulo, foi visto, depois de ter fugido, em Bragança. Considerava-se que fosse bom cozinheiro e que “mette-se a lidar com animaes” (A PHENIX, 24 fev 1841, p. 4). De Mogy-Mirim foi anotada a fuga de um escravizado que “lida com tropa” (A PHENIX, 24 abr 1839, p. 4). João, de nação Congo, vivia em Mercês da Pomba, Minas Gerais, e “vive de tropa” (O UNIVERSAL, 29 out 1838, p. 4). Outro fugiu de Silveira, na Província de São Paulo, e tinha “habilidade para tropa carregada” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 7 jul 1834, p. 4).
Ignácio era “muito intelligente para lidar com tropa arreada”, conforme o anúncio de sua fuga (O NOVO FAROL PAULISTANO, 19 nov 1836, p. 4). E o escravo do Bispo Diocesano, chamado Lourenço, foi “encontrado em uma tropa a caminho de Santos” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 21 jan 1837, p. 4).
Registrou-se também o caso de um escravo que “fugio da borda do campo indo para Sanctos com a tropa do seu senhor” (O FAROL PAULISTANO, 23 fev 1830, p. 4). Eleutério, de Campinas, sabia “andar com tropas, e talvez mesmo queira ser arrieiro” (O PIRATININGA, 4 set 1849, p. 4). Miguel, de Caçapava, “entende do ofício de tropeiro, é muito inclinado a lidar com animaes, e por isso pode ser que se intitule por forro e se ajuste em alguma parte para andar com tropa ou lidar com animaes” (AURORA PAULISTA, 31 jul 1852, p. 4).
Não bastassem as gravuras de Debret e os anúncios de jornais aqui coletados, há ainda a afirmação do historiador Aluísio de Almeida:
Vê-se que também entre os componentes de tropeiros havia escravos. Estes, apesar de pretos, adquiriam as qualidades mestras do gaúcho tropeiro: domadores, peões perfeitos, negociantes ou barganhistas, nisto muito e muito homens do sul paulistas (ALMEIDA, 1981, p. 13).
Todos esses casos citados são suficientes para corroborar a afirmação de que escravizados e libertos trabalharam como tropeiros. Ademais, o engajamento em uma tropa poderia significar, para o escravo fugido, a possibilidade de manter-se em liberdade, dada a característica nômade da profissão e a intensa mobilidade, o que, seguramente, dificultava a identificação e localização.
Por outro lado, apesar das inúmeras fontes apontando para a presença de escravizados e libertos nas tropas – tanto xucras quanto arreadas – pouco ainda se tratou do assunto na historiografia. A memória que perdura é a da presença de “brancos”, livres e portadores de uma cultura que mesclava a paulista com a do sul, então em formação, especialmente no comércio de muares xucros no trajeto de Viamão a Sorocaba. Qual terá sido a contribuição de africanos e seus descendentes na formação cultural do sul paulista e dos estados do sul do país em terras de passagem das tropas?
Afinal, o trânsito das tropas unificou o Brasil não somente do ponto de vista territorial, mas, sobretudo, cultural, pois “os tropeiros de tropas xucras e arreadas cumpriram um papel da mais alta importância na unificação cultural do país, como veículos difusores de notícias e de ideias” (BONADIO, 1984, p. 47).
Perceber a presença desses escravizados e libertos nas tropas de animais ajuda a entender a formação da cultura dessas localidades percorridas pelos tropeiros, mas, ainda, permite ampliar a visão sobre as estratégias de sobrevivência encontradas por africanos e seus descendentes nas trincas do sistema escravista. Possivelmente, para quem estava em situação de escravização, o ajuste em alguma tropa deve ter possibilitado a manutenção do sonho da liberdade.
Referências
ALMEIDA, Aluísio de. A feira de 1852. A feira e os jornais da época. In Cruzeiro do Sul, 04 jan 1981, p. 13.
______. Crueldade e mansidão dos senhores escravos. In Cruzeiro do Sul, 04 fev 1969,
p. 2.
______. História de Sorocaba. Itu: Ottoni, 2012.
BONADIO, Geraldo. O tropeirismo e a formação do Brasil. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, Fundação Ubaldino do Amaral, 1984.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006.
FLORES, Moacyr. Etnias dos Tropeiros. In. SANTOS, Lucila Maria Sgarbi., BARROSO, Vera Lúcia (ORGs.). Bom Jesus na rota do tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre: EST, 2004.
ZIMMERMANN, Florisbela Carneiro., ZIMMERMANN NETO, Adolfo. Biribas – A contribuição do tropeiro à formação histórico-cultural do Planalto Médio sul-rio-grandense. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 1991.