O catchubuim

Orlando Ukuakukula: ‘O catchubuim’

Orlando Ukuakukula

Bairro Vidrul. Segunda-feira. 17 de Junho. 5 horas. O Sol ainda dormia e, por isso, receava mostrar seu rosto à noiva daquele dia. Sem ainda véu branco, o céu enciumava-se com nuvens pretas.

Cedo, cedíssimo. Maria Madalena faz a travessia na cama dos filhos, pulando-os para passar para o outro lado, que daria acesso à porta principal de casa. Na casa da tia Maria, as crianças dormiam na sala, num luando feito a capim seco. Seis filhos. Arrumavam-se no sentido contrário do luando, de forma horizontal, para que coubessem. Um lençol estendido, e outro para se cobrirem e darem passos largos de separação entre o corpo e o frio, embora, no lençol, houvesse orifícios que permitiam um vento que não se deixava desperdiçar em junho, época de frio feio.

Nisso, junta-se a necessidade do sonho aberto do cassule, o mais novo dos irmãos, que realiza o desejo de urinar ali mesmo, enquanto se dorme. Virava-se quantas vezes preciso para deixar a cama molhada e convidar os irmãos a mergulharem na praia que ele mesmo causa debaixo do lençol, e que deságua no luando e à beira da porta da saída, dada a saliência do chão inclinado. Assim, ao frio, aos orifícios do já tão gasto lençol, junta-se a urina da criança, que deixa o recinto mais fresco ainda.

Tem nove anos Caimbo. É para a mais velha que tia Maria grita sempre que se põe a despedir, normalmente, ao ir para a venda, no seu negócio de há oito anos, zungueira. Mas naquele dia, Maria Madalena não se despediu da filha para ir à venda. A semana trouxe-lhe outra tarefa. Bairro sem água. Torneiras, também a rascunho nas casas, todas secas, sequíssimas, davam o luxo de embelezar apenas nas casas que tinham. Foi quando, no último salto do pé que lhe sobrava atrás, pancou-se numa das pernas de um filho, não sabia de quem eram as pernas, pois a escuridão, na falta de energia eléctrica em casa, não lhe tinha ajudado muito. No entanto reconheceu logo pelo pequeno grito de dor da filha, era a Vissola. Maria Madalena, pai e mãe das crianças, rezou mil e um Pai Nosso no momento para que sua vida viesse melhorar e que não mais fosse vista inimiga da ENDE, Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade, que nela tem uma conta incontável de dívida de luz, e, por isso, lhe tinha sido cortada. Seu dinheiro, fruto das zungas, nunca lhe permitia pagar qualquer conta, a não ser o da barriga, cujo contrato foi assinado desde o dia do seu nascimento, mas que nem lhe atende, também, ao todo. “Até quando, meu Deus.” – falava no seu íntimo.

Não podia gritar isso ali, na sala, onde os miúdos, deitados à cama-chão, fazem daquilo o seu último repouso do dia para deixar suas queixas do cansaço. Maria Madalena, finalmente, não podia se reclamar ali, sob pena de ser ouvido pelo Otchali, o menino mais ousado entre os irmãos, pela coragem de estar a questionar sempre à mãe o motivo das suas tristezas. Seguia andando, depois de pular e pancar a perna da filha; no cúmulo das vicissitudes de dentro de casa, Maria se depara ocasional e surpreendentemente com mais um obstáculo às pernas. Dessa vez, sem querer, bicou uma panela e um prato. Talvez fosse isso lógico pelos compartimentos da casa: um quarto e uma sala apenas. Da sala faz-se também a cozinha, ajeitando tudo ali mesmo. Num canto, o pequeno fogão de duas bocas, sobre uma banca alta, feito mesa, onde embaixo podia colocar a garrafa de gás para ocupar menos espaço. No chão, os baldes para água e sobre eles as banheiras de louça. Na parede, estava pregado um painel onde se podiam pendurar as panelas. Aquela panela e a louça bicadas no chão, são justificadas pela forma feroz com que Miala e Caimbo atacaram a refeição do dia anterior, no jantar.

Nada para amanhã! Nenhuma barriga, naquela casa, tirando a da própria mãe que lhe faz coragem, podia deixar para o dia seguinte um tostão de comida, tampouco Caimbo, o cassule, o que faz se tornarem eternos inimigos dos ratos que circulam entre eles. Maria quase que tira um palavrão na pancada com a louça, mas travou de repente, e tudo que fez foi dirigir-se para a filha mais velha:

Crédito da foto: Orlando Ukuakukula
Crédito da foto: Orlando Ukuakukula

– Acorda, Lemba, é hora. – notificou a filha, que já tinham combinado de se levantar muito cedo naquele dia para irem à busca de água no Catchubuim.

A pequena Lemba, de 15 anos de idade, dormia um sono insaciável pelo cansaço constante, já que é a que mais se dedica ajudar a mãe, inclusive nas vendas, algumas vezes. Estava ela no terceiro sono, e não ouviu o sinal da mãe.

– Lemba, Lemba, se mexe – tia Maria reforçou a notificação.
Mas Lemba não acordava. Nem pelo vento que penetrava aos orifícios do lençol, nem pela urina de seu irmão, que formava um lago no chão de casa, nem mesmo pelo grito da sua mãe…

– Ó Lemba, nu tás ouvi? – tia Maria insistia. – Acorda, ó você – Falava, mas já a mexendo a cada palavra, depois de deixar a janela entreaberta, apesar da pouquíssima luz do dia, para clarear um pouco e reconhecer os filhos, ou pela cabeça, ou pelos pés, já que o lençol nunca chegava pra se cobrirem o corpo todo.

Lemba desperta por fadiga e por força da força da mãe, mas com raiva. Não da mãe, aliás, tinha consciência da vida que levavam, e para nada mais serviria acusar a mãe. Ela tinha era raiva dos trabalhos, da vida, e, quicá, de si mesma. Espreguiçava-se e respondeu baixo e com sono para mostrar à mãe que jé lhe ouvira.

– Levanta, vamo. – insistiu sua mãe.

Lemba ficou uns minutos ainda na cama, enquanto tia Maria tirava os baldes e as banheiras para fora, arrumando-os preste a ir.

– Me encontra. Te sperá nué hoje.

Lemba, deitada de cara ao ar, olhava fixamente para o teto de sua pequena casa. Algo lhe tinha ocorrido na cabeça. Lacrimejou, e não se podia perceber se era pelo facto de ter bocejado no momento, ou por algum pensamento que teve naquele instante. Levantou-se. Dirigiu-se ao quarto da mãe onde ficavam as roupas de todos. Trocou-se apenas. Aliás, nem tinha água para, sequer, lavar a boca. Seguiu a mãe.

Crédito da foto: Orlando Ukuakukula
Crédito da foto: Orlando Ukuakukula

O Catchubuim é um local distanciado, aproximadamente, 500 metros da casa de Lemba. É um local com estrutura de lagoa, que deságua as suas águas para lá, à estrada, localizado na rua dos bancos, junto aos frescos, e onde, no mesmo local, se lavavam as roupas e, na companhia, tem também uma pequena pracinha; ao lado, amontoado de lixo. Água, omo e sabão penetrando a lagoa, capim, comida e lixo são referências da situação do Catchubuim. Um nome, do ponto de vista linguístico, onomatopeico, porquanto, reza-se ser uma tentativa de reproduzir o som que resulta de um corpo atirado à água ‘tchubuim’ acrescentando, talvez pela estética, o prefixo ‘ca’, um prefixo nominal diminutivo da linguística bantu ‘ka’, portanto, ‘pequena lagoa’.

As banheiras, pousadas no chão, formam um arco-íris terrestre e dão beleza de alívio àquela vida frustrante. Na ausência de alguma regra, que orienta os homens, as ofensas entre as senhoras se apresentam com vivacidade:

– Tira essa tua merda daí!
– Isso nué merda, tem nome.
-Tira isso. Você nu scuta?!
– Eu cheguei primera.
– Cheguei fionconco, cheguei fionconco. Não me viste aqui quando chegaste?!
– Eu?! Tá amarrado. Se te mandaram, vai falá que não lhe encontraste!

Lemba encontrou sua mãe em bringa com uma senhora. Primeiro, admirou o facto de já terem encontrado cheio, quando eram apenas 5 horas. Depois, tentou entender o motivo da briga, mas sem sucesso.

– Essa água nué de ninguém. – interveio ela, tentando acudir a mãe. -Quem quere cartá, vai cartá – continuou ela.
– Mete então tua banheira aí pra você vê. -vou meté memo.
-Nu discote comigo, ó miúda. Vou te rebentá uma…
– Lhe rebenta pra você ver – reagiu tia Maria, acudindo a filha.
– Me rebenta então! – acrescentou Lemba.

  • Tchê, nu me trazem azare yhá, hum!…
Crédito da foto: Orlando Ukuakukula
Crédito da foto: Orlando Ukuakukula

Todas, de alguma forma, estavam agitadas e em gritaria. Nervavam-se umas com as outras, na necessidade de levarem um pouco de água para casa. Talvez irónico, pois Catchubuim é lagoa com um estilo peculiar, de uma água corrente e que não seca. Todos podem, afinal, carretar água ali. Talvez o tempo de cada um, como é o caso da pequena Lemba, não lhe permitiria demorar, dado o compromisso com outros trabalhos de casa e, depois, com a escola, pois se encontrava na época de exame final, e precisaria estudar para prova. Porém, havia, nesses entretantos, quem ainda podia prestar uma ajuda a outra.

– Me ajuda só na cabeça, mana.
– Eh! Tua banheira pesa yhá…
– Tô te falá, mana.
– Hum. Pega ainda tamé aqui!

Puseram-se a rir as duas na entre-ajuda. A fileira dos que transportavam a água era igualmente bonita. Apesar do peso e cansaço, parecia um grupo, pela forma como a corrente esteve, ainda mais com as variadas cores das banheiras: azul, vermelha, verde eram as que mais se destacavam. Um arco-íris terrestre, de facto. Talvez, a felicidade dure mesmo pouco. Um problema surge à tona:

– Essa água se bebe?
Um silêncio.

– Hã, essa água se bebe? – um jovem, apenas observador, que lá ia, perguntava.

Ninguém respondia até que uma moça, de calções apertados à moda sedutora, marcado o ‘V’ de vingança entre as pernas, reagiu à questão:

– É só pra lavá. –
– Se bebe memo – intrometeu-se outra, que apenas passava com a sua banheira. – nu tá vê é limpa – rematou.
– Tem que meté lá lixivia – disse outra.
– E fervê – mais outra intrometida.
– Se bebe, sim, é só meté lá lixivia – concluiu a última, todas em passagem, indo e vindo com as banheiras.

Crédito da foto: Orlando Ukuakukula
Crédito da foto: Orlando Ukuakukula

O jovem ficou confundido. Todos, na verdade, ficaram. Ninguém respondeu de imediato que se bebia. Se fosse para beber, devia haver um procedimento a seguir. Mas, algures dali mesmo, ouve-se que aquela lagoa é fruto de algum desvio produzido pela fonte das águas canalizadas no bairro, e que, por isso, vem mesmo directamente da própria EPAL, Empresa Pública de Água, água ‘potável’.

Lemba e sua mãe encontraram meio termo para se entender com a outra senhora com quem discutiam. Já estavam, no trajecto, perto de cinco viagens no transporte da água. A quantidade de água, que sai da banheira e vai caindo pelo caminho à medida que se transporta, faz rastos do transportante, e na sequência coincidência onde a água bate, forma uma sopa de lodo, que se vê preparado para receber qualquer um que se coloque às pressas, ou no descontrolo à queda. É assim que outra situação emerge. Uma menina, com uns 12 anos na flor da pele, que vinha com a banheira cheia de água na cabeça, tropeça. Tinha três opcõe e apenas segundos para decidir: uma verdadeira prova. Ou largar a banheira nova e rachar, mas ela sair ilesa, ou ela lesar-se e a banheira continuar novinha, ou entregar-se à sorte. Decidiu. Foi motivo de risos para umas e pena para outras. A miúda teve que pensar rápido, só em segundos. Lembrou-se como sua mãe era, a forma como ralha. Calculou a ira da mãe e pôs-se ao sacrifício. Entregou seu corpo, salvando a banheira nova, e ela, pregada ao chão. A terra lhe deslizou a pele, e já era.

As viagens ao transporte da água eram lentas. Caminhava-se às 10h quando Lemba iniciou o trabalho de casa. Tia Maria já não tinha tempo algum. Arrumou-se para a zunga para garantir o jantar daquele dia. Despediu-se dos meninos e foi.
Chão para varrer, louça para lavar, chão para limpar, casa para arrumar, matabicho por fazer.

Desfazendo-se da sua timidez de início, o Sol exibia sua autentica presença. Eram 12 horas e trinta minutos. Lemba se apressava na sua arrumação para a escola. Não conseguiu estudar. Esteve cansada e quase sem forças. Arrumou-se e foi à escola.

Na sala, diante da prova, Lemba adormeceu. Causou a impressão de que estivesse a fraudar. Acusou-lhe o professor. Lemba não reagiu. Chamaram-lhe no nome, mas nada. Agora, causou susto nos colegas arredor. O professor foi se aconchegando a ela. Chamou-lhe duas vezes pelo nome, tentando levantar-lhe a cabeça.

– Lemba, Lemba!

Acordou assustada em bocejo. Saliva entre os lábios a descer à bochecha, que manchou a folha de prova. Olhos vermelhos e com olheiras, sem forças.

– Lemba, Lemba, Lemba! – despertava-lhe o professor, mas Lemba tão somente não conseguia responder. Pela segunda vez, naquele dia, escorreu-lhe lágrimas nos olhos. Agora, mais complexa a situação, não se sabia descrever se era por ter bocejado naquele instante, ou pela fadiga, ou por ter ocorrido algo na sua cabeça, ou, ainda, pelo momento sôfrego no Catchubuim.


Orlando Ukuakukula
Luanda, 18 de Junho de 2024

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Inutilidade dos trabalhos de fim de curso

Orlando Ukuakukula: Artigo ‘Inutilidade dos trabalhos de fim de curso’

Orlando Ukuakukula

Afirmamos, categoricamente, que este texto é nossa produção pessoal. Nossa reflexão, que a trazemos para partilhar.

Concebemos a educação como sendo o meio através da qual o homem é transformado e, consequentemente, transformador. Aliás, este é o fim último dela: a transformação. Nesta ordem de ideia, já sabendo que a educação transforma o indivíduo, as questões que se levantam são as seguintes: o indivíduo, depois de transformado, transforma o quê? Com o quê ou como?

As respostas, no fundo, ficam evidentes. O indivíduo deve ser, durante a sua formação, um ser pensante; aquele que toma decisões e age por conta própria, aquele que produz, embora, às vezes, sob direcção do seu orientador, o professor, que se considera ter, pelo menos, mais experiência que ele.

Assim, “findo” o processo de formação, neste particular, de nível superior, é-lhe colocado à prova sobre o que pensa e como pensa, avaliado por pessoas idôneas, no que a ciência diz respeito, sobre o problema que o estudante viu e que pretende resolver, no seu TFC, como contributo digno de um cidadão.

É aqui em que a educação deve(ria) se enriquecer, pois, os TFC’s são propostas de solução dos problemas educacionais, e não só, de qualquer outra esfera da sociedade. Logo, percebemos que o indivíduo pode transformar, com o seu pensamento, partilhado nestes trabalhos, a sua comunidade, município, província e, pela dimensão do trabalho, o país no geral. É neste entretanto que a negação da aplicabilidade destes trabalhos resulta, também, na instabilidade da própria educação e, concomitantemente, na continuidade dos problemas sociais, pelo que se carimba, nestes termos, a inutilidade destes trabalhos.

Um TFC, ao nível em que abordamos, é um desafio para o governo, no geral, e para o ministério de tutela, no particular. Desafio na medida em que chama à atenção para se partir à uma avaliação e acção. A ausência desta aplicabilidade desencadeia um retrocesso ou mesmice no país, em geral.

Este retrocesso e mesmice é evidente em Angola, o que nos fez acreditar que exista a falta de interesse a quem de direito, e o que nos levou a confirmar que existe uma certa inutilidade dos TFCs, ou seja, os TFCs não prestam para nada em Angola, senão para enfeitarem as prateleiras das faculdades desta circunscrição e empoeirarem ali. Um país em que na educação não existe uma comitiva de fiscalização para acertos de aplicabilidade dos TFCs para solução de determinados problemas sociais é, deveras, um país doente.

Isso expõe a percentagem de importância que se dá neste sector, bem como expõe a desvalorização do indivíduo-académico. A título de exemplo, reclama-se, e até já ouvido pelo próprio presidente da república, João Manuel Gonçalves Lourenço, sobre a incapacidade de produção textual por parte dos estudantes, e a isso acrescenta-se o caso da leitura.

Embora seja escasso, mas a pergunta é: quantos trabalhos, a nível da licenciatura, mestrado ou doutoramento abordam sobre soluções desses problemas? Que interesse já houve na sua aplicabilidade? Que discussão se teve em relação aos trabalhos com solução dessa natureza? Queremos crer: as soluções estão aí, à vista, mas o interesse está à falta. Repetimos: os TFCs são inúteis, pelo menos no nosso contexto.

Há pouco interesse em discutir sobre isso e, portanto, Angola, neste aspecto, que é pilar principal de qualquer país, se considerarmos que o desenvolvimento de um país depende do contributo dos seus cidadãos, continuará a andar de patas para o ar e cabeça para baixo. E, deste jeito, a ciência nunca será disputada, e os trabalhos do fim do curso continuarão sendo apenas um requisito de obtenção de títulos, já que nunca são valorizados como deviam.

A nível do doutoramento, temos a obra-tese de Panzo, publicado em 2019, referimo-nos ao “Português Língua Segunda em Angola”, uma proposta metodológica do ensino do português neste território, que, fruto da leitura que dela fizemos, tendência, com as estratégias, ali, apresentadas, resolver o problema da escrita e da leitura.

Temos, ainda, a obra de Undolo “A Norma do Português em Angola”, uma obra-tese em que se traz a discussão da variedade do Português em Angola, na perspectiva de passarmos já a olhar com outros olhos a peculiaridade do português neste território, pois, a cegueira a isso, se traduzirá no insucesso escolar, no que a Língua Portuguesa, enquanto disciplina e meio de ensino – como atesta a Constituição da República – diz respeito; “Umbundismos Lexicais no Português de Angola: Proposta de um dicionário de Umbundismos”, de Costa.

A nível da licenciatura, embora sejam recentes, mas já podemos avançar, temos, ainda, trabalhos como “Vocabulário de Especialidade da Medicina Tradicional em Angola”, de Ukuakukula e Bilhete, “Léxico de Especialidade da Política Angolana”, de Ângelo, Balduíno e Muacaputo, “A Ressignificação da História por meio do Conto”, de Marcelo e Mártir, só para citar.

As discussões desses ofícios ou, pelo menos, o interesse de aplicabilidade desses trabalhos (os já antigos) onde ficaram? Que estratégia o estado usa para tornar úteis esses trabalhos? Até ao ponto em que estamos, fruto da ausência de práticas destes trabalhos, podemos dizer que andamos mal, ou melhor, muito mal.

Talvez nos perguntariam: como sabemos que não estão a ser aplicados? Temos uma resposta acima: a prática fala mais que a teoria. Os problemas continuam os mesmos, mesmo com o número de formados existentes. A título de exemplo, na educação, no que os programas de língua portuguesa diz respeito, não há modificação significativa.

Para terminar, as negligências com o fim último da educação fotografam o tipo de país que temos e, invertido o quadro, fotografariam o tipo de país que pretendemos ter. Portanto, mais uma vez, fica exposta a falta de vontade política, a desvalorização dos TFC’s e, consequentemente,  desrespeito pelos académicos.

As utopias continuam a se afirmar, e sonhos se vão sonhando em perpetuação. Mais do que meros trabalhos, teriam outros olhos: os TFC’s são discussões de pessoas comprometidas com o país.

Orlando Ukuakukula

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Orlando Ukuakukula: "Dialogismo de Intervenção Social entre ‘povo no poder’, de Azagaia e ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso"

Orlando Ukuakukula

Dialogismo de Intervenção Social entre ‘povo no poder’, de Azagaia e ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso

Este texto está voltado a uma análise de enunciados que se verificam na música “Povo no Poder”, de Azagaia e na obra literária “Noites de Vigília”, de Boaventura Cardoso, que consideramos enunciados de intervenção social, por isso, constituindo o corpus de estudo do texto. Os textos dos autores em causa dialogam, na medida em que, enquanto músico, do estilo RAP, acrónimo de Ritmo Arte e Poesia, Azagaia canta Áfrika, numa vertente de intervenção social e, Cardoso, enquanto escritor de obras literárias, cita-se “Noites de Vigília”, intervém, com suas produções, nos problemas da sociedade. Aliás, para nada serviria uma obra literária se não se assentasse e acentuasse na sociedade.  O diálogo das duas artes parte do título de cada uma. Cardoso propõe que o povo faça vigília, como forma de reivindicação dos direitos. Senão, vejamos: “é inadmissível que depois de termos dado o corpo ao manifesto, ninguém nos ligue nenhuma” (Cardoso, 2013 p.30). Azagaia, no mesmo compasso, propõe manifestação: “Já não caimos na velha história, saímos pra combater a escolha. Ladrões, fora! Corruptos, fora! Gritem comigo pra essa gente ir embora” (Azagaia). Daí  o título “povo no Poder”. Dois exemplos de dialogismo de intervenção social nos respectivos enunciados dos artistas.

Azagaia, pseudônimo de Edson da Luz (que Deus o tenha), “é” um músico de nacionalidade moçambicana, propriamente da província de Maputo; ao passo que Boaventura Cardoso é um escritor angolano. A ousadia de uni-los neste texto para um estudo dos seus enunciados-discursos, justifica-se pelo facto de considerarmos, em primeiro lugar, dois africanos, que pressupõe um casamento de ideologias e, em segundo lugar, mais forte ainda, por Moçambique apresentar quase as mesmas características de estilo de vida que Angola, ou seja, os dois países, tornados independentes na mesma época (1975) apresentam um sistema de governação alavancados pela Frelimo, naquele, e MPLA, neste, caótico, como é verificável tal afirmação nas intervenções reivindicativas do músico e do escritor.

A simbiose da análise, juntando a literatura e a música, justifica-se em Furtado:

“A relação entre a música e a literatura é tão antiga quanto essas duas formas de expressão artística. Desde a Antiguidade o texto literário adapta-se à música, bem como a música adapta-se ao texto literário, mais precisamente, à poesia. A poesia mélica (musical, harmoniosa) ou lírica era acompanhada por instrumentos musicais diversos (lira, cítara e flauta) e cantada por uma só pessoa (lírica monódica) ou por um coro (lírica coral)” (Furtado, 2010 p. 7).

Na sua música, Azagaia poetiza os seguintes versos:

Sobe o preço do transporte/ sobe o preço do pão

Deixam o povo sem norte/ deixam o povo sem chão

Esse governo não se emenda mesmo, não

Ao passo que, na sua narrativa, através do narrador, Cardoso diz:

Quinito olhava vagarosamente para as mercadorias expostas. Lata de leite em pó, de conservas, de refrigerantes e cervejas, garrafas de vinho, de uísque, detergentes de várias marcas, comparava os preços e concluia rapidamente que o dinheiro que tinha era um nada que não dava para nonadinha (Cardoso, 2013 p. 7).

O diálogo, nos dois textos, é denunciado na insuficiência financeira do povo, até para adquirir bens alimentares, ou seja, o custo de vida das duas realidades é posto em evidência.

“A língua tem propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. Portanto, o dialogismo não se resgtringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestados em diferentes dimensões” (Backhtin).

Azagaia depois de, durante a música, se expressar sobre a nessecidade de grupos para a manifestação, e propor o povo tomar o poder, alarga a ideia e continua:

Aviso-vos, senhores, que terão pela próxima

O Norte, o centro, o Sul, Moçambique

Isso dialoga com a outra passagem da narrativa de Cardoso:

Temos que fazer qualquer coisa em defesa de nós mesmos e das nossas famílias. Se não formos nós a lutar pelos nossos interesses quem há de lutar (…)? (p. 18)

Agora, o diálogo consiste na ideia de uma manifestação em massa, uma forma de intervenção social, para exigir do(s) governo(s) aquilo que é do direito do povo.

Continua Azagaia:

Povo, exijam os vossos direitos

Não se deixem maltratar nos chapas.

Chapeiros, vocês são povo também

O povo paga impostos para ter direito a transporte

Chega de tanto luxo, tanto dinheiro gastos à viagens, hoteis, mercedes, palácios

Avança Cardoso:

Os ricos estão cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais miseráveis (ibidem).

Enfim, a luta continua e, portanto, das várias formas de manifestação:

“A literatura e a música são das manifestações artísticas mais expressivas para a assertividade cultural de qualquer povo. A música em toda a parte está presente e, talvez com argumentos antropológicos mais agudizados nos arquipélagos torna-se uma vivência, diria, omnidisciplinar e, por conseguinte, fonte inevitável de consulta disciplinar. (Furtado, p. 4).

E, citando Hamilton (1999) “uma obra  literária de qualquer sociedade e de qualquer época ou apoia ou contesta o regime vigente”.

Orlando Ukuakukula

 

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: "O questionamento dos ganhos da independência de Angola na narrativa ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso"

Orlando Ukuakukula

O questionamento dos ganhos da independência de Angola na narrativa ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso

Noites de Vigília é, felizmente, a obra que, até nesta data, mais me cria prazer de sobre ela abordar. Sinto-me condenado a fazê-lo. Tem sido prova, por me despertar em relação às várias situações do país, do adágio segundo o qual “quem lê um livro não é a mesma pessoa”. Cardoso transformou minha forma de ver Angola pela brilhante realidade ficcionada do imaginário que cria na sua obra. Desta vez, a condenação da minha análise estará voltada nas marcas que demonstram uma INDEPENDÊNCIA FALHADA, a começar a análise nos paratextos que, com todo conjunto textual, justificam o título da obra.

Considero, em relação à literatura, mais especificamente obras literárias, que nela tudo merece atenção, inclusive um simples risco que possa aparecer na capa. E é exatamente na capa da obra Noites de Vigília que começaremos a nossa análise, como sinônimo de respeito, pedir licença antes de entrar (no texto).

“A etmologia da palavra «paratexto» remete-nos para aquilo que acompanha o texto (para = junto a); ou seja, assinala a direção, intenção e objectivo de atingir um destinatário: o texto” (Matos, 2012).

O paratexto é, então, todo elemento que vai aparecer antes do próprio texto da narrativa. Assim, a capa, a lombada e a contracapa são locais, por excelência, onde se encontram os paratextos, aqui, vamos nos focar na capa.

Três cores, essencialmente, se destacam na capa de “Noites de Vigília”: vermelho, amarelo e preto. Não é mera coincidência que isso represente a bandeira de Angola ou, se quisermos, como nos confundem, a bandeira do MPLA, o que implica que, com isso, o autor nos situa, como espaço, o país onde decorreu todo o evento da narrativa e sobre o que narra, bem como ajuda a entender a razão de eu ter delimitado, como o nome “Angola”, no título que ofereci a esta análise. Além disso, o paratexto icónico (imagem), exibido na capa, é de três indivíduos, representando o povo, com as mãos ao ar e pedra, formando o punho, representando uma reivindicação. Aliás, o próprio título da obra é convidativo. “Noite”, indicando trevas ou escuridão e “Vigília” indicando insónia, ou seja, privação do sono durante a noite. Quão é bom e suave dormir quando há sossego! quando a noite chega! Por que não pode o povo dormir depois de alcançar a independência? Significa que, no meu entender, o autor nos chama a despertar, a questionar, a reivindicar o que costumam, em vários corredores, a chamar de independência. Isso é confirmado, agora entrando no texto, nas falas das personagens  e do próprio narrador.

“Quinito olhava vagarosamente para as mercadorias expostas, latas de leite em pó, de conservas, de refrigerantes e cerveja, garrafas de vinho, de uísque, detergentes de várias marcas, comparava os preços e concluía rapidamente que o dinheiro que tinha era um nada que não dava para nonadinha” (Cardoso, 2013).

O parágrafo acima perde lógica se não explicarmos que Quinito, na narrativa, era um antigo combatente, mutilado por causa disso, que lutou para a libertação e independência de Angola, que derramou sangue e que, aliás, lutou no lado do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), actualmente, o governo no poder. Quinito não conseguia comprar nem leite em pó, mesmo depois da independência, que na narrativa, reza o autor, nessa altura, já ter passado vinte e sete anos, desde 1975 a 2003, como confirma o tempo da narrativa.

– um pouco mais animados, passaram então em revista o que a ambos acontecera durante os cerca de vinte e sete anos em que tinham deixado de se ver. Na corrente do tempo, passava o ano de 2003 (pág10).

Independência significa liberdade, autonomia. Carácter de pessoa independente (Tavares at al, 347).

É assim que, no meu ponto de vista, independência traz, consigo, uma nova forma de pensar e ver o país; o desenvolvimento. Traz um “homem novo”, como está marcado no hino nacional. Significa que desde a data que se proclama, todos, independentemente da origem étnica, raça, cor, tribo ou, até mesmo, grupos partidários, começam a sair beneficiados. Todavia, é diferente do que se constata nas falas das personagens em Noites de Vigília, uma narrativa atemporal, histórica, que se diga.

– (…) arrependido, mil vezes arrependido de me ter metido numa luta sem glória (pág 17).

Ou seja, aquele povo do paratexto, na capa, a ser representado por Quinito e Siundo, no texto, porém uma metonimia do todo, arrepende-se, mil vezes, de ter lutado para a libertação e independência: uma consequência. Pois, quem se arrependeria duma luta com ganho? Quem se arrependeria depois de estar livre? Ou será que exite um grupo dos beneficiados e outro dos não beneficiados? O nosso objecto de análise, que  é a obra, responde por ela mesma:

– Quinito, lá perto de Viana onde que morava, vivia numa barraca de papelão que ele próprio tinha construído (pág 19).

– (…) os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais miseráveis (pág 18)

Volvidos 46 anos de independência de Angola, quase meio século, os problemas que Quinito e Saiundo enfrentam continuam, daí metonimicamente representarem todo povo sofredor que, culpa das lutas político-partidárias, orgulho, egoísmo, falta de amor ao próximo, sede e centralização do poder, desunião, rivalidade, continuam a sofrer.

– (…) o nosso sofrimento não tem cor partidária. O que nos une neste momento é o facto de nos sentirmos excluídos da sociedade (pág 30).

Portanto, Noites de Vigília, através das falas das personagens e do próprio narrador, questiona os ganhos da independência, na medida em que relata, depois de consegui-la, ainda assim, o sofre de um povo que se vê distante de usufruir dos sonhos preconizados, quando confirmado, outra vez, na fala de Quinito:

– “se pressentia que a mudança estava para acontecer, que os sonhos que tínhamos sonhado um dia iam se transformar em realidade, que a canção da liberdade ia ser cantada de mãos dadas por todos nós, os filhos desta terra” (pág 24). A obra nos ajuda a perceber que não há ganho algum com a Angola independente, mas que se há, só alguns usufruem disso. É por isso que, e não menos importante:

– A sociedade tem deveres para connosco. É inadimissível que depois de termos dado o corpo ao manifesto, ninguém nos ligue nenhuma. TEMOS, POIS, DE NOS ORGANIZAR PARA QUE POSSAMOS, JUNTO DO GOVERNO, AGIR EM BUSCA DE SOLUÇÕES CONCRETAS PARA O NOSSO CASO (pág 30). E isso tem liança, diriamos intertextualidade, com que Ukuakukula, na sua obra “Dias de Expiação” através de Costa, expõe: “NINGUÉM FALA POR NÓS. NOSSO PROBLEMA É DO TAMANHO DO NOSSO MEDO; SUA SOLUÇÃO É DO TAMANHO DA NOSSA CORAGEM(…)” (Pag 36).

Orlando Ukuakukula

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cardoso, B. (2013). Noites de Vigília. Luanda: Texto editores.

Matos, J. C. (2012). Gramática Moderna da Língua Portuguesa. Lisboa: Escolar Editora.

Tavares, A. C. (s.d.). o nosso dicionário. Luanda: Plátono Editora.

Ukuakukula, Orlando (2022) Dias de Expiação. Crearte Editora. Sorocaba, São Paulo-Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: 'O grande desafio'

Orlando R. Ukuakukula

O grande desafio

Duas equipas como aquelas, só em Angola! Magia do Pé Liso Arrasado vs União Interior de Talatona. São as melhores em campo. A primeira, é a equipa do kota Zé, que mesmo deixando de jogar, ainda continua na boca da população. Dizem que ele é quem trouxe as fintas que hoje todos eles usam; só que, infelizmente, por serem as mesmas, já muitos sabem como atacar. As fintas, vêm-se no campo. Todos respeitam os toques que aqueles dão. Kota Jó, um grande ponta de lance, tomou o lugar de capitão em 2017. Hoje, é ele quem orienta a equipa. Dizem ser rigoroso. Desde que chegou, passou o tempo todo a trocar as posições dos seus colegas e colocava mesmo fora das partidas alguns, quer dizer, era o capitão, era o treinador e era tudo, sozinho. Mas as trocas que fazia na sua equipa, todos sabiam que era para baralhar os apoiantes do futebool e tornar ameaça à equipa adversária. A segunda equipa é liderada, hoje em dia, pelo kota Costinha, como é chamado na banda, que mesmo com craques de bola, nunca ganharam nenhum campeonato nacional. Desde mil nove centos e alguma coisa que vêm perdendo, ou melhor, que muitos dos seus golos nunca foram validados. Aparecem pouco, porém, todos sabem que há craques ali, até os da equipa do kota Zé, hoje do kota Jó, sabem. Semanas de feriados prolongados, graças as pontes, era para demonstrar as grandes disputas. Em tudo que era canto de Angola se ouvia falar dessas grandes partidas de futebool, aliás, o mundo à fora apreciava à distância.

Num campo que não é de ninguém, portanto de todos, viam-se as grandes partidas. E porque eram manchetes dos jornais, ficavam ali jornalistas, radialistas e outros istas, que cumpriam um papel de açucarar os jogos, favorecendo uma equipa e desfavorecendo a outra, como sempre, era a do kota Costinha. RNA, TPA, TV-ZIMBO e outros meios de comunicação, nas pessoas dos jornalistas, que afinal eram clacke do kota Jó, por obrigação, para manter o pão das crianças, criavam matérias que sujavam a equipa coitada. Agora que estavam quase na fase do campeonato nacional, os insultos intensificavam. Cada um vinha em televisão e falava um seu mal contra Costinha e o seu elenco, que também só queriam contribuir com o seu talento na bola. Dizia Costinha, nos bastidores, que era ameaçado, perseguido, aliás, que nessa fase mesmo, já tinha sido quase morto de perseguição.

– Mas o campo é de todos. Todos capinamos quando era mata. Todos trouxemos enchadas, pás, vassouras e catanas, inclusivemente. Ou seja, todos fizemos alguma coisa pra que as cobras fugissem e isso ficasse limpo. Hoje só vocês é que podem jogar porque a bola é vossa, ou seja, porque a bola está do vosso lado? – reclamava ele. – já conhecemos os vossos truques e as vossas fintas desde os anos mortos. Já não pegam aqui. Não entra mais golo na nossa balisa! – continuava. – a população, hoje, vai saber que aquelas vossas fintas, que lhes agrada, mas a mata aos poucos, é fruto da imitação do grupo que evacuamos daqui. É uma assombração. Mas não tem makas. Vem aí o grande dia. Tudo vai depender da decisão deles. Como sabemos, vão usar as vossas fintas. Mas já sabemos como vos atacar. E desafio: O campeonato deve ser municipal e os golos devem ser contados ali mesmo.

Nenhuma resposta. Mas o campo já é visto à cor dos equipamentos. Uma grande partida vai começar. Um grande desafio. Talvez jamais vistos.

Orlando Ukuakukula

NOTA:

Kota > da Língua Nacional Kimbundu, “dikota”, que significa “mais velho”. Termo popular. Usado para manter uma relação de intimidade entre um menor e um mais velho.

Baralhar > verbo usado popularmente para significar atrapalhar, estorquir, mentir ou enganar.

Ponte >  no contexto, indica o feriado prolongado, quando este calha numa Terça ou Quinta-feira, acrescentando mais dias de repouso.

Açucarar > verbo usado por parte da população, originado de “fazer ficar doce”, ou seja, usado com pendor pejorativo: “tornar a coisa mais interessante”, que chame atenção. Exagerar.

RNA > Rádio Nacional de Angola

TPA > Televisão Pública de Angola

TV-ZIMBO > Televisão Zimbo

 

Autor: Orlando Ukuakukula

 

 

 

 

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: “O distanciamento afectivo na relação humana descrito na música 'Ngana Zambi', do grupo Clássico Infinito, e um olhar sugestivo para o poema ‘solidariedade’, de Gabriela Lopes”

Orlando Ukuakukula

A vida é um eco. Não importa a distância e o tempo, tudo que lançar terá retorno para si” (Ukuakukula, 2022)

Dois textos de ritmo, arte e poesia (a música e o poema) fizeram nascer este outro texto, de análise, quando cruzamos a música da staff Clássico Infinito, jovens do  bairro Vidrul, uma das periferias de Cauaco, Lunda, Angola; e o poema da estimada escritora Gabriela Lopes, de Brasil, para nos servir de apoio, propósito para o qual a nossa mente estava virada, quando decidimos convocar um texto de uma escritora da diáspora.

Ao procuramos saber do significado de “UBUNTU”, termo usado pelos africanos, Tomé Ângelo (2022, Facebook) respondeu-nos: “É uma filosofia da vida africana, que significa <<eu existo porque tu existes>>”. A interpretação deste termo, da língua nacional angolana kimbundu, remete para o caso em que a pessoa quer fazer perceber que o outro pode contar com ela e vice-versa, ou seja, “eu sou você, e você sou eu”; uma expressão que indica, portanto, um acto de solidariedade, de afecto.

Pondo a música em linha estreita com a literatura, cuja escrita é uma forma de expressão, que nos remete, parafrasendo Maria Miguel e Maria Alvez (2011), à transmissão das emoções, dos sentimentos e pensamentos mais íntimos do artista, torna-se claro todo acto emotivo expresso na música “Ngana Zambi”, dos Clássico Infinito, para evidenciar um desafastamento familiar e até social, portanto, ausência do amor, da afectividade, e, enfim, para mostrar o desprezo que as pessoas vivem quando estão diante dos problemas. Verifiquemos nalguns versos da música:

Arranjei diculo no cubico.

Mano, fui barrado por eu ter feito dois cassules

E não ter emprego.

Entendo por ser expulso porque um gajo falhou

Que atira a primeira pedra aquele que nunca pecou.

Eu pausei com bué de wys

Que um gajo pensava que eram irmãos

Na frente tá tudo bem

Mas nas costas falam mal

Eu Já fui borrado, humilhado, desprezado

Na rua já dormi, nem sequer tive um teto

Tudo que eu passei, passei sozinho

Agradeço a Deus por iluminar o meu caminho

Estes são os versos que consideramos serem o centro da música. Aqui, está expresso todo conjunto de situações que nos fazem confirmar o adágio segundo o qual o escritor (artista) é fruto das suas vivências. Ainda que não das suas, o que se retrata na música é passível de ser situação de outrem, já que a literatura, embora tenha a subjectividade como grande recurso, parte do real. O que significa que o artista se inspirou numa situação real, que, como dissemos, pode ser dele ou não. Encontramos, portanto, no teor da mensagem dessa música, uma queixa, uma denúncia, um pedido de socorro; um apelo ao socialismo, ao amor ao próximo, à solidariedade, que tem se visto distante cada vez mais no seio da sociedade angolana, e não só, no mundo em geral.

Agora, pondo em diálogo os textos, no seu poema “Solidariedade”, Gabriela Lopes nos escreve:

A cada dia que vivo

Mais tenho certeza que o amor cura

Desconcerto bruto

Joga luz no oculto

Traceja estrada que antes não existiam

Cada vez que o ser vivo

Olha de forma empática o outro

E age com maior atenção

De respeito e acolhimento

Correntes do bem são construídas

Reverberam fertilidade

Multiplicam esperanças na natureza humana

Assim, está expresso a preocupação dos textos em análise. Se, por um lado, na música se evidencia uma queixa do distanciamento afectivo entre as pessoas, por outro lado, no poema, temos um conselho e, sobretudo, o que tal atitude, se seguido o conselho, pode gerar, como se verifica nos três últimos versos do poema “Correntes do bem são construídas”, “Reverberam fertilidade” “Multiplicam esperanças na natureza humana”. A beleza desses dois textos, por tratarem de questão social, no que relação humana diz respeito, foi o que nos fez escrever esta análise para deixar como subsídio de reflexão aos homens, já que de Deus foram feitos imagem e semelhança, assim como é o título da música “Ngana Zambi”, do Kimbundu, “Senhor Deus”, que é refrão da música, uma invocação; cruzando-se com “Solidariedade”, uma característica intrínseca a este Ser Supremo.

GLOSSÁRIO: A gíria e o calão são, nos músicos das periferias, os registros de linguagem mais usados. Daí a necessidade de criar um glossário para melhor explicitação dos termos usados na música em análise: Diculo> problema; Cubico> casa; Barrado> negado; Wys> amigo Gajo> usado para substituir pronomes pessoas rectos (eu/ele), para o contexto, significa “Eu”.

AUTOR: Orlando Ukuakukula

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: "A necessidade da implementação da 'Pragmática' como unidade curricular no curso de Linguística Portuguesa nas instituições de ensino superior (IES) face a concepção contemporânea do estudo da linguagem"

Orlando Ukuakukula

“O enunciado é o resultado do acto da enunciação. Ou seja, as pessoas, em sala de aulas ou não, têm a necessidade de comunicar; mais do que isso, têm a necessidade de interagir.”

Dum tempo a esta parte, tenho vindo a reflectir, nos meus estudos em literatura, a questão dos enunciados linguísticos, uma relação que faço entre as entidades dos textos literários, o conto e o romance, mais especificamente, já que envolvem presença do narrador e narratário, elementos internos ao texto e que, dado o tempo, circunstâncias a que são postos pelo autor, criador do código e cenários, criam discursos, ou melhor, enunciam e tais enunciações resultam em enunciados. No entanto, o meu foco, neste artigo de opinião, não está muito voltado à literatura, mas propriamente à linguística, embora os empréstimos entre ambas funcionam normalmente, e porque é necessário. Então, introduzir a temática relacionando-a com a literatura é um método que encontro para querer dizer que importa a sugestão deste artigo, da necessidade da Pragmática como unidade curricular, que é funcional para qualquer aula em Língua Portuguesa. Senão vejamos:
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Os estudos sobre a linguagem apresentam-se em três grandes concepções:
(I) como representação do mundo e do pensamento do indivíduo;
(II) como instrumento de comunicação;
(III) como meio de interação. Esta última é a contemporânea por apresentar:
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a) a língua como objecto de comunicação (no sentido de interação) e, por isso;
b) levar em conta dois elementos em falta nas duas primeiras concepções: O RECPTOR, que é um elemento em falta na primeira, mas existente na segunda, porém passivo; e o ALOCUTÁRIO, que implica a interação, ou seja, que implica um emissor e um receptor activos e responsáveis pelo acto da interação, que é a actividade linguística. Assim, nessa interação, os responsáveis desenvolvem enuciados, no processo das enunciações, aquele que é, então, objecto de estudo da Pragmática. Esta é, portanto, a justificativa do tema deste artigo, que também é uma proposta, sendo que:
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O enunciado é o resultado do acto da enunciação. Ou seja, as pessoas, em sala de aulas ou não, têm a necessidade de comunicar; mais do que isso, têm a necessidade de interagir. Deste jeito, produzem enunciados. O enunciado é um acto da fala; individual. Citando Martins (2021) em seu trabalho designado “Súmula sobre estudos de enunciação”, enunciados “são unidades do sistema linguístico + unidades do sistema extralinguístico.” Ela considera as situações e contextos a que são produzidos. Assim, a Pragmática surge e, segundo o que se sabe, a Pragmática é parte do estudo da língua que trata de compreender os “sentidos”, e não significados, dos enunciados.
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Ainda parafraseando Martins, o sentido é, diferentemente do significado, inferências ou informações que se acrescentam a um enunciado. Ao passo que significado é objecto da semântica na sintaxe da frase. Por isso, o significado da frase é calculado pelas palavras que a compõem, ao passo que o objecto da Pragmática é o enunciado, aquilo que se percebe dos enunciados produzidos pelos interlocutores de uma interação, através da situação e/ou contexto.
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Posto isso, evidencia-se que “interagir”, produzindo enunciados, é a actividade básica, diária e necessária de qualquer indivíduo, falante e dententor de uma língua. Se nos enunciados se expressam sentimentos, pensamentos, modo de ver, de criar; aliás, se isso envolve o conhecimento extralinguístico, portanto, histórico, social, ideológico, está claro que isso é suficiente para fazer com que a Pragmática deixe de ser parte da unidade curricular designada Semântica e passe a ser autónoma, tendo sua própria unidade curricular designada “Pragmática”, nas Instituições de Ensino Superior (IES). Isso a olhar também, e como já dissemos, para a concepção contemporânea de Linguagem, na agrupacão que (Koch, 1992 apud Martins, 2021) faz das três concepções.
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Voltando ao que acima frisamos, sobre o outro olhar disso em Literatura, perceberemos que, afinal, as impressões causadas pelos narrador e narratário são enunciados que exprimem ideias, pressupostos e implicitos, trabalhado pelo autor. E, aliás, perceberemos, mais importante ainda, que o “narrador” não é, afinal, como nos vêm ensinando século após século, <a pessoa que conta a história>. Outrossim, a considerar as enunciações, ou melhor, os enunciados, que são o resultado final de toda enunciação, estariamos a considerar todo tipo de impressão linguística do falante, a cultural, principalmente. Entender-se-ia, naturalmente, as questões muito debatidas, e que até virou moda, sobre variação e mudança linguística.
Portanto, por serem a enunciação, o enunciado, o acto da fala, elementos ligados ao sentido=contexto e/ou situação, por isso, respeitando os aspectos socio-culturais e socio-linguísticos do falante, e, por isso, objecto de estudo da Pragmática, urge, no meu entender, enquadrá-la no programa do curso de Ensino da Língua Portuguesa, ou Linguística Portuguesa, como outras instituições denominam, como uma unidade curricular. Resolveria, como fim último, os problemas de Leitura (como acto de descodificação e visão do mumdo) e interpretação, só pra citar.
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Orlando Rafael Ukuakukula
Luanda, 22 de Março de 2022