Entre a chuva e a luz
Irene da Rocha: Poema ‘Entre a chuva e a luz’


Minha história começa em Passa Quatro,
onde o amor tinha cheiro de terra molhada
e o riso das crianças misturava-se
ao canto das panelas na cozinha.
Havia colo, havia tempo,
e o mundo cabia inteiro
na palma quente das mãos da minha mãe.
Nada doía,
porque tudo era abraço.
Mas o céu, ah, o céu,
um dia escureceu de repente.
E a chuva, que antes lavava as ruas,
veio forte demais,
levando não só as casas,
mas o chão dos meus passos.
Perdi o lar,
perdi o cheiro de casa,
perdi o rastro da infância.
Minha mãe partiu, ano seguinte da enchente,
meu pai seguiu outro caminho,
e eu fiquei,
como quem fica num porto vazio,
esperando um barco que não volta.
No orfanato, aprendi o silêncio.
Aprendi que há dores que só Deus escuta,
mesmo quando o coração grita.
E, todas as noites,
eu perguntava baixinho,
Senhor, onde o Senhor se esconde
quando chove dentro da gente?
O tempo passou
e, um dia,
um gesto acendeu de novo a esperança.
Um padre, com olhos de ternura,
me estendeu a mão e disse:
Vens comigo.
Cruzeiro me acolheu
como quem acende uma vela
num quarto escuro.
Ali, a vida foi voltando devagar,
com o mesmo cuidado
de quem costura um pano rasgado.
Aprendi que a coragem
não é ausência de medo,
é a insistência em continuar,
mesmo tremendo.
Que as cicatrizes não são feridas,
mas mapas,
testemunhos de quem sobreviveu à travessia.
Hoje, quando olho para trás,
não vejo tragédias,
vejo caminhos.
A dor me ensinou a fé,
e o abandono me fez entender
que o amor de Deus
é o único abrigo que não desaba.
E se um dia a chuva te encontrar,
deixa que ela caia.
Ela não vem para te afogar
vem para lavar o que precisa ser renascido.
Quando ela passar,
a luz será mais clara.
E o que hoje parece fim,
é apenas o começo
de um novo amanhecer em ti.





