Sobre loucura e preconceito

Elaine dos Santos: ‘Sobre loucura e preconceito’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem gerada com IA do Bing ∙ 25 de novembro de 2024
às 12:42 PM

Em O Alienista, conto de Machado de Assis, tem-se a história do médico Simão Bacamarte, que abriu um consultório no interior, na cidade de Itaguaí.

Na cidade, conheceu e casou-se com dona Evarista, uma viúva. O principal interesse do médico era ter filhos e ela pareceu-lhe uma “boa parideira”.

Com o passar do tempo, Bacamarte abriu um manicômio na cidade, em que internaria pacientes com algum grau de desvio comportamental. O problema é que o médico passou a enxergar loucura em todos os habitantes da cidade.

Embora o barbeiro Porfírio tenha liderado um movimento contra o médico, porque os cidadãos de Itaguaí temiam que todos fossem considerados loucos, o próprio Barbeiro, que tinha interesses políticos, acabou aliando-se a Bacamarte e as internações continuaram.

Eis que João Pina, opositor do Barbeiro, conseguiu a sua deposição, mas, quando quase 75% da cidade estava internada, Simão Bacamarte voltou atrás e liberou todos os internos.

Na sequência, tendo revisto a sua teoria, mandou internar Galvão, um vereador da cidade. Passado um tempo, liberou novamente os internos e promoveu a sua internação.

O texto de Machado de Assis esbanja ironia (talvez para o leitor menos iniciado, tenha apenas a possibilidade do riso, mas há nuances críticas à nossa sociedade).

A ideia de escolher uma mulher apta a ter filhos saudáveis, é recorrente em nossa literatura, como em São Bernardo, de Graciliano Ramos, quando Paulo Honório reúne as mulheres jovens da cidade para escolher aquela poderia ofertar-lhe um herdeiro.

Os conchavos por interesses políticos ou econômicos remontam à literatura de todos os tempos, Hamlet, de William Shakespeare, é um exemplo paradigmático.

A loucura permeia todas as relações em nossa sociedade em todos os tempos: comportou-se fora dos ditames de determinada sociedade em determinada época, é louco.

Lembro-me de Bernadette Soubirous, a menina pobre e doente, que, em 1858, em Lourdes, no interior da França, viu e conversou com a Imaculada Conceição. Ela foi ameaçada, segregada, silenciada. Bernadette precisava ser desacreditada e, como tal, disseram que era louca.

A sociedade burguesa instituiu que a mulher deve ser tutelada pelo pai, pelo marido ou, quando este falece, pelo filho mais velho.

Como escreveu Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Na contramão dessas ideias, em tempos idos, a vida já foi diferente (ou nem tanto!). Os meus alunos de Literatura Portuguesa divertiam-se quando lhes lembrava que o Latim falado em Portugal não era o Latim culto de Roma, os doutos não participavam das invasões.

Quando os romanos invadiram a antiga Hispânia (Portugal e Espanha), seguiram soldados, aventureiros e prostitutas para a ocupação daquela região.

Quando o Brasil passou a ser ocupado, vieram aventureiros, degredados (presos) e prostitutas, portanto, a língua portuguesa que adentrou o Brasil era o português falado pelo povo.

Os jesuítas que chegaram aqui vieram, de fato, para catequizar os índios, mas vieram também para moralizar os costumes, realizar casamentos, batizar crianças nascidas em pecado.

Erico Verissimo, em O tempo e o vento, apresenta Pedro Missioneiro como ancestral mítico do gaúcho, filho de uma indígena e um tropeiro paulista, provavelmente casado, que a abandonara no caminho.

Qual o meu intento aqui com essa sucessão de fatos históricos e literários?

A sociedade contemporânea brasileira ainda guarda resquícios de conservadorismo, sobretudo em regiões interioranas: mulher, preferentemente, assume o nome de família do marido; deixa a família dela para residir com ele; as crianças recebem, com muita frequência o nome da família do pai etc.

E quem não casa? Sim, este texto é um libelo em defesa das mulheres que não se casaram, não tiveram filhos e estudaram, construíram as suas vidas profissionais independentes.

Somos loucas, porque estudamos; viajamos; adquirimos conhecimento, certa liberdade; solitude (há quem diga que é solidão), definimos os rumos das nossas vidas. Dispensem-nos do vosso preconceito, não nos atraí a vossa vida, mas não menosprezem as nossas escolhas.

Todos nós somos seres únicos, com experiências únicas. Se algumas mulheres experimentaram a maternidade, isso não as faz nem melhores nem piores. Até porque muitas mulheres gostariam de serem mães e o próprio organismo as impede.

Por outro lado, muitas mulheres que não foram mães têm tantas experiências para partilhar. Talvez respeito fosse o meio termo para intermediar as relações sociais.

Elaine dos Santos

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Sobre compromisso e partilha do conhecimento

Elaine dos Santos:

‘Sobre compromisso e partilha do conhecimento’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Compromisso e partilha de conhecimento
Imagem gerada por IA do Bing - 21 de outubro de 2024 
às 10:08 PM
Compromisso e partilha de conhecimento
Imagem gerada por IA do Bing – 21 de outubro de 2024
às 10:08 PM

Este texto vem com uma semana de atraso. As ‘moiras‘, figuras mitológicas da Grécia antiga destinadas a ‘tecer o destino’, atrapalharam-me de enviar a minha coluna na semana passada.

Na verdade, a referência às moiras é apenas um eufemismo para afiançar que a idade avançou e, com ela, os problemas de saúde: sobreviverei.

Ainda no ensino médio, olhava para a minha professora de português e pensava: “Será que eu quero fazer isso?” As moiras decidiram que eu precisava inserir-me no mercado de trabalho e assim o fiz. Acabei cursando, pela metade, Ciências Econômicas, mas, para mim, dois e dois sempre será vinte e dois, desisti do curso por causa da Matemática Financeira.

Quando regressei à universidade, optei por Letras e não poderia ter feito escolha melhor. Eu já trabalhava em escola, no serviço administrativo, quando fiz essa escolha e conhecia o universo estudantil, que era muito instigante (creio que sempre o será, apesar das dificuldades inerentes à cada geração).

O dia 15 de outubro é consagrado ao professor. Trata-se de uma pessoa que escolheu ensinar e isso, para mim, é um grande diferencial. É um ser humano que decidiu colocar o seu conhecimento a serviço do aluno, da sociedade, da humanidade. São quatro ou cinco anos frequentando um curso de graduação para aprender, além dos conteúdos característicos desse curso, como lecionar/ como ensinar.

Tinha uma companheira de viagem para a faculdade que estudava Física, certa vez, ela disse-nos que estava prestes a desistir: havia resolvido um problema qualquer, usara cinco folhas de caderno (frente e verso) e o resultado final fora zero. Se a sociedade imaginasse os conteúdos que conhecemos e não são empregados em sala de aula, mas são necessários para compreender todo o arcabouço teórico que compõe cada área…ah, o tratamento seria outro!

Eu trabalhei com alunos do curso superior – diurno e noturno -, trata-se de um público completamente diferente daquele que se atende no ensino médio, ainda que, em alguns casos, eles tenham quase a mesma idade e as mesmas angústias.

Além disso, fui coordenadora de curso da graduação em Letras, função administrativa, pedagógica, psicológica, materna (e eu confesso: nunca tive vocação para a maternidade, mas a minha professora de Literatura Portuguesa dizia que eu sou a clássica ‘pata choca’, que coloca todos embaixo das asas e protege, sejam seus patinhos ou não).

Há um processo em curso que menospreza a docência: escolas sucateadas; uma legislação que engessa o ensino; baixos salários se comparados aos profissionais com o mesmo nível de formação; ainda assim, a sociedade passa pela sala de aula, passa pelo professor que se dedica ao aprendizado do seu aluno, que o recebe com a disposição de levá-lo, nem que seja pela mão, a construir-se como cidadão.

Aliás, a cidadania talvez seja o grande desafio, que extrapola a função das ‘moiras’: é um trabalho contínuo, feito de esclarecimento, de criticidade em uma sociedade que exclui, que reprime, que segrega.

Encontramo-nos diante da mistanásia, quando o paciente morre à espera de consulta, de exames, de cirurgia, o que seria um dos direitos inerentes à nossa condição humana. A insegurança nossa de cada dia tornou-nos prisioneiros em nossos lares (quando a condição financeira assim o permite), com câmeras, alarmes e todos os dispositivos anti-gente estranha.

Tornamo-nos prisioneiros da corrupção – e se há um corruptor é porque alguém aceitou ser corrompido: dizer a verdade tornou-se um ato obsceno; confundiram ensinar com doutrinar; não sabem discernir entre questionar e afirmar e a mentira grassa solta, impávida com se fosse senhora de todo o saber.

É preciso dizer: haja coragem para ser professor, haja coragem para professar a fé no ser humano, haja coragem para seguir preparando aulas, partilhando conhecimento, ouvindo alunos, amparando alunos (disse-me uma ex-aluna que é professora na atualidade: “Professora, eles sequer têm portas em casa, vivem em lugares com apenas um cômodo!”).

A minha profissão de fé segue sendo a favor do conhecimento, creio sempre que o conhecimento liberta (e, como falava a minha falecida mãe: “Ninguém te rouba, te sonega o conhecimento. Com ele, a gente recomeça do zero”), o conhecimento empodera e, mais que isso, apavora os tiranetes de plantão.

Obrigada, senhores professores: um mundo minimamente digno ainda passa pelas vossas mãos. Em nossas salas de aula, existem seres humanos carentes de atenção, que a sociedade capitalista compreende como objetos, mão de obra barata.

Profa. Dra. Elaine dos Santos

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Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia

Elaine dos Santos:

‘Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
"Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia"
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“Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia”
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Consta que o povo gaúcho não gosta que digam que somos o último estado do Brasil. Acostumei-me, pois, a referir que nasci no estado mais meridional dessa terra linda e trigueira.

Vivo quase no coração do Rio Grande do Sul, o que significa afirmar que tanto Uruguai como Argentina estão a poucos quilômetros de distância. Devo confessar-lhes: a minha alma tem mais tango do que samba. Deve ser o clima, deve ser a geografia, devem ser os costumes.

Engraçado mencionar o samba, uma vez que nasci numa segunda-feira de Carnaval, às 16h e, segundo a minha falecida mãe, caía uma leve neblina sobre a cidade – minúscula cidade.

Antes de mim, na verdade, 50 anos antes, em 18 de novembro de 1914, nasceu um menino, filho do agente da estação ferroviária que deu origem ao pequeno povoado (o município que existe hoje é outras histórias). Se o tempo nos separa, o espaço nos aproxima.

Os primeiros anos de vida foram vividos nas cercanias da estação férrea e do pequeno córrego (sanga, como se diz no Rio Grande), que, ainda hoje, timidamente, corta a cidade no sentido sul-norte. Por vezes, a sanga se enfurece e, tangida pela chuva forte, sai do leito, mas ela tem as suas razões: lixo e abandono.

O menino viveu pouco tempo no povoado, os seus pais, ferroviários, foram transferidos e ele seguiu a vida. Estudou. Ele, o menino, dedicou-se àquela arte que, conforme contam, fazia com os restos de carvão das locomotivas a vapor. Tornou-se um dos maiores pintores expressionistas brasileiros da segunda metade do século XX. Refiro-me a Iberê Camargo.

Artista consagrado, algumas pessoas que o reencontraram, assim como estudiosos de sua Arte, destacam uma paisagem: a linha férrea que se perde no horizonte; às margens do córrego; as várzeas tanto do córrego quanto do pequeno rio que há nas proximidades da cidade, as coxilhas (ou, como queiram, colinas). Um nome: solidão.

Diferentes estudiosos da obra do pintor referem a infância e a solidão como marcantes em sua produção pictórica: não apenas a pequena Restinga Seca, no coração do Rio Grande, que nos une, mas outras estações férreas, outras estradas, outros campos, outras várzeas, assim como estão presentes os serões familiares, a mãe em sua labuta como telegrafista, mas como dona da casa, costurando as roupas da família ou ainda as brincadeiras do menino no entorno da estação.

Inúmeras vezes, eu regresso àquele local: a estação ferroviária, a caixa d’água, ambas desativadas; a linha férrea, que se estende entre o campo e a várzea, mas, depois das enchentes de maio, ali não cruzam nem mais os trens de carga; o córrego assoreado; o campo e a colina. Reencontro os meus pais e os meus avós.

Volto a ser criança, aconchego-me novamente no colo de meu avô, ouço histórias. É incrível a força que aquele local tem. A força da terra, a força da mãe-terra, a força da natureza, a força da água que corre, mas também a força da mão humana, a força da avassaladora mão humana que destrói, que esquece, que se omite.

Contudo, ali sobre a linha férrea, sou ainda a professora de Literatura, que optou pela Sociologia da Literatura, que lê as obras literárias ou visualiza em qualquer obra artística a expressão da sociedade conforme a entende o artista.

Iberê Camargo, que expôs em Nova Iorque, Roma, Madri, Tóquio, mundo afora, era filho de ferroviários, uma das classes de trabalhadores sindicalmente melhor organizadas na virada da primeira para a segunda metade do século XX. Tinha, pois, uma boa consciência de classe, que foi adquirida em casa e em escolas que estudou. Tinha, um tanto além disso, a sensibilidade do artista, aquele que vê, sente, pressente e entende a corrosão social

A segunda fase de sua obra traz o homem culto, pintor respeitado, que observa a sua sociedade, trata-se de ‘Os ciclistas’, sejam homens, sejam mulheres, que, uniformizados, deixam as fábricas, são operários, desprovidos de identidade.

Na terceira fase, ele vai adiante: ‘As idiotas’, são a representação de todos nós, consumidos pelo trabalho, pelo dinheiro, pela necessidade de sobreviver. Há um aprofundamento no que se poderia chamar de alma humana vista pela ótica da pintura, desconfigura-se o corpo.

Se, para o pintor, a sobrevivência estava atrelada ao trabalho, ao alimento, à saúde; por vezes, pergunto-me se não estamos apenas sobrevivendo num mundo pautado pela guerra, pelas enchentes, pelas queimadas, pelo ódio disseminado nas redes sociais. Que tempo (s) estamos nos dando para contemplar e amar, mais que trabalhar, amealhar recursos?

Profª. Dra. Elaine dos Santos

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Para onde vamos? Como vamos?

Elaine dos Santos: ‘Para onde vamos? Como vamos?

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem gerada pela IA do Bing - 11 de setembro de 2024
 às 9:00 PM
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às 9:00 PM

Eu li, recentemente, um desses textos curtos e sem autoria publicados em redes sociais sobre a situação que o mundo vive atualmente. Era uma reflexão bastante interessante sobre essa barafunda diária que nos assola.

De imediato, a minha memória evocou uma cena antológica do cinema. Charlton Heston, interpretando o astronauta George Taylor, chega a uma praia deserta e encontra a Estátua da Liberdade enterrada pela metade na areia, ele ajoelha-se e diz algo como “Eles conseguiram” (os homens destruíram o planeta).

Refiro-me ao filme ‘O planeta dos macacos’, de 1968.

Claro, em 1968, vivíamos os tempos de Guerra Fria, a disputa pelo espaço (em 1969, a Apollo 11 teria chegado à Lua) e os filmes de ficção científica eram comuns.

O personagem George (de Heston) descobre-se no futuro, porque a sua espaçonave teria ultrapassado o que se denomina como ‘dobra do tempo’, inserida naquela ideia de que todos convivemos em tempos distintos no mesmo planeta (essa teoria, segundo sei, suscita discussões, mas não tenho conhecimento que tenha sido comprovada).

Ao deparar-se com a Estátua da Liberdade, ele entende que o planeta era a Terra, mas, no futuro, dominada com ‘mãos de ferro’ por macacos, que falam, comandam o planeta (usando armas, como rifles e assemelhados) e escravizam os seres humanos, que são mudos.

Os três companheiros de George morreram de causas diversas e ele foi levado para o laboratório da Dra. Zira, uma símia, noiva de Cornélius, um arqueólogo fascinado pela possibilidade de os humanos já terem sido inteligentes (o que, claro, é uma teoria negada pelos grandes mentores do planeta). Pareceria desnecessário dizer, mas a Dra. Zira estava interessada em entender como aquele ser de ‘segunda categoria’ conseguia falar.

Fui, a partir daí, fazendo algumas elocubrações com base no texto lido e nas lembranças que o filme trouxe à tona:

  1. vivemos um tempo de negacionismos, com pessoas reagindo, inclusive, com força (a peso de armas de todo tipo) ao pensamento que diverge das suas ideias;
  2.  a fala, a interação social, diminui significativamente (a geração Z e a geração Y ) já não têm mais paciência para ouvir áudios enviados por aplicativos. Confesso que eu nunca tive muita paciência com os próprios aplicativos de mensagens);
  3.  comunicamo-nos cada vez menos e escrevemos cada vez pior, estamos desaprendendo os signos linguísticos;
  4. para ficar em dois exemplos mais ‘vistosos’, ou seja, que a televisão mostra mais: os embates na Faixa de Gaza e a Guerra da Rússia contra a Ucrânia – em suas imagens de bombardeios, além de matar centenas de pessoas, fazem-me pensar sobre o solo que sobrará ali;
  5. Claro, a cereja do bolo é o ódio que o conhecimento desperta entre aqueles que não querem sair da sua zona de conforto e aprender.

Não estou, evidentemente, levantando uma teoria conspiratória, apenas fazendo uma reflexão (note bem: uma reflexão) sobre o mundo que os seres humanos estão construindo para as futuras gerações.

No meu ponto de vista, duas coisas horríveis afloraram nos últimos anos: o ódio expresso em redes sociais, que não conhece limites; e a soberba/arrogante ignorância (entenda que ignorância não é burrice, mas falta de conhecimento sobre assuntos que as pessoas se acham no direito de ‘achar’ algo), expressa de todas as formas, em todos os lugares.

Não creio que caminhemos para uma hecatombe, a nossa extinção, mas a destruição nossa de cada dia (queimadas, guerras, drogas), convenhamos, assusta. Que planeta estamos deixando para os nossos pósteros?

Prof. Dra. Elaine dos Santos

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Verdade, reapresentação da realidade, ponto de vista?

Elaine dos Santos:

‘Verdade, reapresentação da realidade, ponto de vista?

Elaine dos Santos
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https://pixabay.com/vectors/girl-anime-blue-hair-pieces-mind-8880111/
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Talvez, uma das tarefas mais difíceis de um professor de Literatura, tanto no ensino médio quanto no curso de graduação em Letras, seja ensinar o conceito de mimesis, conforme definida por Aristóteles, em sua ‘Poética’.

Em palavras bem corriqueiras, mimese é uma reapresentação da realidade que o artista faz. Vá lá, grosseiramente, uma cópia – ou, ainda, uma tentativa de cópia daquilo que ele viu (ressalve-se que eu adverti: é uma definição grosseira).

Eu costumava colocar uma cadeira em cima de uma classe e perguntava o que os meus alunos viam. A resposta era uma só: cadeira. Eu dizia que não. O revide era imediato: “Que é professora, ‘tá’ querendo inventar a roda?”

Principiava, então, a explicação: fomos ensinados a ver aquele objeto como cadeira, em sua totalidade, mas o que vemos são partes daquele objeto, raros alunos enxergavam, por exemplo, o assento.

Eis o papel do artista: desvelar aquilo que as demais pessoas não enxergam, não percebem. Ele reapresenta a realidade, sob uma nova ótica. Pode ser que muitos mortais, como nós, não entendamos as obras de Anita Malfatti ou de Picasso, mas a realidade está reapresentada ali.

Falta, para a maioria da população, é conhecimento para entender, ler, analisar obras artísticas de um modo geral. Experimente ‘ler’ os quadros de Van Gogh e desfrute a beleza daquelas obras. Por que nos deliciamos tanto com as obras de Machado de Assis?

Este escrito surgiu de uma conversa banal: “A senhora não sabe a verdade sobre os fatos!” E a senhora, no caso a professora de Literatura, questionou-se: “Qual verdade? O teu ponto de vista sobre a cadeira? E se a verdade estava justamente sobre o assento, nenhum de nós conseguiu alcançá-la?

Se a obra literária, em particular, os romances, que são mais difundidos hoje em dia, reapresenta a realidade, convém pensar a realidade sob diversos prismas, pontos de vista e nem sempre aquilo que eu sei corresponde, em sua integralidade, aos fatos decorridos.

Tivemos uma eleição polarizada e eivada por ‘Fake News‘; já, em 2022, uma parte da população estava mais atenta e, ontem, eu li a história de um candidato a prefeito que estaria sendo acusado de algo que não prometeu: a promessa estaria gravada em áudio. O meu sinal de alerta soou: uso de inteligência artificial?

Encerro, pois, misturando alhos com bugalhos (que era o meu propósito desde o início): estamos preparados para ver além da totalidade, esmiuçar a verdade e enxergar o assento da (minha) cadeira usada em sala de aula para meus alunos analisarem, ou ainda cremos que a verdade é una, apenas um grupo a detém, enquanto os outros devem ser silenciados?

Prof.ª Dr.ª Elaine dos Santos

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Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré

Elaine dos Santos: ‘Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré’

Elaine dos Santos
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Vocabulário, ironia, metáfora: o que é isso, meu Deus?!
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Vocabulário, ironia, metáfora: o que é isso, meu Deus?!
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Quando concluí a graduação no curso de Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) https://www.ufsm.br/, no final do século passado, além do estágio em sala de aula, diante dos alunos, foi-nos solicitada uma aula expositiva de 50 minutos sobre um determinado conteúdo diante de nossos colegas de estágio, fazendo, claro, parte da avaliação.

Imediatamente, todos os meus colegas sabiam que eu escolheria o poeta Gregório de Mattos Guerra e os seus poemas satíricos. Naquela época, quando findava o curso de graduação, final do século XX, Gregório, o Boca do Inferno, e Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta português, eram os meus preferidos pela forma totalmente crítica com que viam a sociedade, pela maneira irônica com que manifestavam essas críticas.

Ocorre-me ainda outro texto que sempre teve a minha mais profunda simpatia: ‘Cartas Chilenas‘ https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_Chilenas, do Arcadismo brasileiro, atribuídas a Claudio Manoel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, em que eles narram as estrepolias do governador de Minas Gerais, como se ele fosse o governador chileno. O Brasil sempre foi um território propício para corrupção, propina, governantes despreparados e sátira / ironia escrachada.

Há uma ironia mais requintada, que exige experiência do leitor, que pode ser encontrada nas obras realistas do português Eça de Queiroz e parece-me que o exemplo mais claro está em ‘O crime do Padre Amaro‘, que é uma crítica contundente à sociedade portuguesa: aristocracia e clero. Mas (cá entre nós e o mundo), o Brasil produziu um esplêndido prosador responsável por obras que são primores em ironia – eu, pessoalmente, amo ‘Esaú e Jacó‘.

O autor/prosador que me refiro, claro, é Machado de Assis e, em particular, o romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, em que um narrador-defunto ou um defunto-narrador assume a fala e dedica as suas memórias ao verme que primeiro roeu as suas carnes. Sabemos todos (Erico Verissimo explorou essa máxima muito bem em ‘Incidente em Antares‘ que mortos e loucos não têm credibilidade e eles podem dizer tudo que lhes aprouver. No caso dos mortos, não se pode matá-los. No caso dos loucos, é preciso comprovar que são, de fato, loucos – de resto, é calúnia, difamação, inveja e afins.

Essa reflexão literária, porém, tem um propósito bem real, nada irônico. Recentemente, retornou à pauta, inclusive, pelas redes sociais, mas também em blogs, jornais e revistas, o termo ‘brainrot‘, que se poderia dizer algo equivalente à podridão cerebral, embora não seja um eventual distúrbio reconhecido por psiquiatras ou neurologistas.

Trata-se, na verdade, de uma espécie de vício em conteúdos fúteis/inúteis, consumidos à exaustão em redes sociais – a mera rolagem de postagens, sem aprofundar qualquer assunto, sem aprendizagem, com qualidade duvidosa. Muitas vezes, uma compulsão por eventos negativos: assaltos, acidentes automobilísticos, assassinatos etc. Qual o ganho individual disso?

Por outro lado, estudos têm apontado (e não precisa nem pesquisar muito para ver as grandes celeumas em redes sociais) a dificuldade para escrever e interpretar textos. Em língua portuguesa, usamos a sequência SVC – sujeito, verbo e complemento para produzir uma oração frasal. Quem respeita? E pontuação? Cadê? Em muitos casos, inexiste.

Chego à questão da ironia e da metáfora. Os mesmos estudos, que já mencionei, referem que há pessoas com uma gigantesca incapacidade para compreender duas figuras de linguagem simplórias para quem, por exemplo, assistia ao programa ‘Os trapalhões‘; um pouco mais elaboradas, talvez, em outros programas televisivos já fora do ar.

Cito pesquisas de Astrides Farias de Lima Oliveira, Aretuza Ladeia de Lima e Vanessa Polli, para não me estender. Preocupa-me o caminho que tomamos se uma pessoa não tem vocabulário para expressar-se com clareza e, para além disso, se uma pessoa se sente ofendida porque não compreende uma figura de linguagem que, incrivelmente, fez sucesso sob a pena do Boca do Inferno, de Bocage, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, passados 400, 300, 200 anos. Estamos andando na contramão, desaprendendo a língua portuguesa?

Prof. Dra. Elaine dos Santos

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A Arte como didática: ela precisa ‘ensinar’ bons modos?

Elaine dos Santos:

“A Arte como didática: ela precisa ‘ensinar’ bons modos?”

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
A Arte como didática
A Arte como didática
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Um dos pressupostos básicos com que trabalha um professor de Literatura, cuja formação é na área de Letras, é que a Arte não deve ser usada para fins didáticos. Certamente, professores de séries iniciais tendem a discordar. Respeito-os.

A Arte – entendida aqui como música, pintura, escultura, poesia, romance – é, antes de tudo, prazer, fruição, deleite. Trata-se de uma re/apresentação da realidade, uma re/criação da realidade, o que, em termos técnicos, chama-se mimese, termo que foi criado por Aristóteles na Grécia Antiga.

Além disso, Aristóteles considerou a Arte em geral, mas me detenho na epopeia e nas tragédias , como catarse. Todos nós temos as nossas tristezas, os nossos medos, as nossas dúvidas, mas, teoricamente, não andamos, no cotidiano, ‘chorando as pitangas’ (dito popular que significa chorando os nossos sofrimentos).

As tragédias, como ‘Édipo Rei‘, em que o personagem principal fura os fura os olhos ou Jocasta suicida-se ao saberem que são filho e mãe e que, apesar disso, por puro desconhecimento, viveram juntos e tiveram filhos, provocam o choro, a compaixão diante dos fatos. Mal comparando, a comoção diante da morte de Airton Senna, em 1994, fez o Brasil chorar, viver a sua própria  catarse, purgar as dores do cotidiano na morte do seu ídolo.

Porém, como consta em um poema de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e a Arte pode assumir um cunho inovador, revolucionário, incluindo o pendor de denúncia. Recordo-me da grande obra de Pablo Picasso que contempla a Guerra Civil Espanhola, a destruição da cidade de Guernica, em 1937, cuja dor e sofrimento são reproduzidos, re/ criados em seu famoso e valioso quadro.

‘Guernica’, o quadro, é uma pintura cubista. O Cubismo, uma das vanguardas europeias do início do século XX, é uma ruptura com os modelos que valorizavam a perfeição das formas. Trata-se de um tratamento geométrico dado às formas da natureza, o que provoca a fragmentação, a decomposição das formas, dos planos, das perspectivas.

Essas lembranças da estudante de graduação e da professora de Literatura vieram à tona diante de uma postagem e os respectivos comentários em uma rede social. Havia uma instalação feita com terra e era visível a simulação da morte, a finitude da vida. Os comentaristas menosprezavam o artista e a sua proposta. Um dos comentários era categórico: “Isso é coisa de louco, não ensina absolutamente nada”.

Quem disse que a Arte precisa ensinar?

Quem disse que a Arte precisa seguir as regras que nós acreditamos que definam a Arte?

Do ponto de vista do texto literário, quem disse que não se pode mais usar a palavra em sentido conotativo, sendo necessário o sentido denotativo para facilitar a compreensão do leitor?

Espera-se que a Arte (e sempre penso na Literatura como correlata) deve ser colocada em uma camisa de força para atender os censores de plantão?

Não comentei a dita postagem, mas a vontade foi colocar o mictório (vaso sanitário masculino) – sob o título de ‘A fonte’ usado por Marcel Duchamp , o expoente máximo do Dadaísmo , também uma das vanguardas europeias, exposto como Arte em Nova Iorque no ano de 1917.

Se a Arte é re/presentação da realidade, re/criação da realidade, ou seja, se reinterpretamos à luz da nossa subjetividade, como querer que música, pintura, escultura, poesia, romance sejam um monobloco, que agradem a todos igualmente, se nós, como seres humanos, somos diferentes?

Vivemos tempos ‘enformados’ (e chatos), com extrema dificuldade para aceitar o diferente, o diverso… Mas o mundo roda, a terra gira, as novas gerações nos sucedem!

Prof. Dra. Elaine dos Santos

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