Deixa-me te decorar

Evani Rocha: Poema ‘Deixa-me te decorar’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem gerada por IA do Gencraft

Deixe-me te decorar
Ler as tuas entrelinhas
Descobrir no teu olhar
As estrelas escondidas

Deixe-me adivinhar
As histórias que viveu
Os caminhos que trilhou
E as vezes que morreu

Deixe-me te percorrer
Verter tuas cachoeiras
Deitar-te sob o luar
Despir-te da solidão

Colorir os teus ladrilhos
Desabrochar tuas flores
Ser a chuva de verão
E os vagões do teu trilho

Deixe-me te pertencer
Vestir em mim tua pele
Brotar as tuas nascentes
Imergir em tuas veias

Levantar o teu castelo
Fazer do pó a areia
O telhado cor de ocre
E a floreira na janela

Deixe-me te germinar
Gestar a tua semente
Enraizar em teu solo
Regar-te suavemente

Deixe-me ser o teu colo
O lirismo da canção
A capa do teu diário
E o verso do refrão

O doce de tua boca
As folhas do calendário
A verdade atrevida
E o amargo fel necessário!

Evani Rocha

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Fim de tarde

Evani Rocha: Conto ‘Fim de tarde’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por IA do Gencraft
Imagem criada por IA do Gencraft

A tarde caiu em seu olhos anuviados e perdidos no horizonte!

O que se passa nos seus últimos anos de vida?

Será que ela já perdoou seus opressores, seus algozes, seus traidores?

Talvez, nessas noites escuras, ela ainda revisita seus cativeiros interiores…

E na face descaída escorre uma cachoeira silenciosa.

Ela está sempre calada e distante: de uma mulher prosa, a uma sombra lenta a vagar em sua própria memória…

Esgotou-se finalmente seu repertório, suas retóricas sobre as coisas da vida…

Teve tudo o que um dia pensou ser necessário, e nada do que, talvez, sua meninice lhe prometia.

Lá, bem no fundo do seu ser, ela ainda é uma criança, correndo pelos corredores da casa…imaginando desenhos de nuvens… rabiscando seu diário.

Este rosto sisudo, deveras, sofre por não poder retornar, por não poder revidar, por não poder perdoar-se!

O tempo é cruelmente fugaz! E a matéria humana manipulável, volátil, cruelmente sensível…

O corpo não suporta o rigor do tempo. Vai-se com ele o brilho, o viço, a vivacidade…Menos a história registrada na memória – Essa vai, volta, fica, Muda de forma…massacra!

Ela não cede, por rebeldia, por acreditar num retorno, numa viagem sideral…

Pois ainda há força pra contemplar os girassóis às margens do caminho, os desenhos geométricos que vão se revelando entre as escarpas.

Finalmente, o corpo denuncia a chegada.  Os vagões se esvaziam –  A boca está cerrada e as mãos em prece…

Não há pressa em desembarcar. Mas em seus labirintos interiores há uma efervescência, um fulgor na alma…

E incrivelmente, no fundo dos olhos um sol gigante em ebulição!

Evani Rocha

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Sob o sol de outubro

Evani Rocha: Conto ‘Sob o sol de outubro’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por IA do Gencraft

Escorei no parapeito da janela de madeira. Olhei a estradinha de terra que sumia na planície seca. O brilho do sol ardente de outubro dava uma impressão de terra molhada. Eu sabia que era ilusão de ótica, pois no terreiro de chão batido, a terra seca rachava, formando sulcos e valas sedentas. O único verde por ali, eram os mandacarus espinhosos. “Esses suportam essa seca tremenda, porque têm a capacidade de guardar água. Deve ser a água que caiu do céu há muitos meses pela última vez”.  Ponho-me a pensar sobre aquele cenário desolador, quase não senti os cotovelos magros doerem escorados na madeira da janela. Era hora de partir, eu tinha mesmo que enfrentar aquele caminho espinhoso e poeirento.

O ônibus da vila mais próxima partiria há poucas horas. afastei-me da janela e a fechei devagar, girando a tramela. Fui ao quarto, olhei a imagem de Nossa Senhora, amarelada, pendurada num prego na parede de adobe. Pensei em tirá-la, mas hesitei, não daria conta de carregar muitas coisas a pé, pois a distância era grande. Fiz o nome do pai, e, decidi deixá-la ali, onde esteve por tantos anos. Somente enrolei o cabelo longo, fazendo um rabo de cavalo frouxo. Arrumei o lençol florido, bem desbotado, passei a mão de leve sobre a cama. Abaixei e peguei a trouxa de roupas que arrumei para a viagem. Nada mais além de dois vestidos e algumas blusas surradas.

Dei alguns passos e sai do quarto. Entrando na cozinha, lembrei-me da garrafa de água que precisava levar: “Num sol desses quem é que aguenta andar sem beber água?!” –  Fui ao pote no canto da prateleira e retirei a água com uma caneca de alumínio. Enchi a garrafa e a ajeitei ao lado da bagagem. Olhei em volta, observando pela última vez aquele ambiente. Era apenas duas peças construídas de adobe, coberta com telhas de barro, antigas. Tinha porta e janela de madeira rústica, era tudo extremamente simples. Mas foi ali que eu morei meus últimos dez anos ao lado de Jeremias. Ele sabia que eu iria embora, porém, há dias andava cabisbaixo e quase não dizia nada. Às vezes eu tentava entrar no assunto, mas ele evitava. Sempre saía. Já havia me dito antes:

– Você pode ir! Aqui é muito seco. Eu sei que a vida tá insuportável, mas eu vou ficar. Pode ir, sem remorso nem piedade de mim…”

Mas eu sempre insistia:

– Vamos homem, vamos tentar a vida na capital, enquanto ainda temos força pra trabalhar!

E ele, com o mesmo argumento de todos os anos:

– Acabei de plantar o milho…vai chover, mulher! Vai chover…deu na previsão. Eu tenho fé. E quando der a primeira chuva, o milho nasce todo e a gente tem fartura! Dizia com os olhos lacrimejando e a voz embargada. Mas amanhecia e anoitecia com o mesmo céu limpo e um Sol grande, como a esperança de Jeremias.

– Não há mais água nas cacimbas, os últimos animais podem morrer logo, homem! Já estamos com pouca água de beber no reservatório. Não podemos dar aos animais! Seu Bené me disse que compra as duas cabras…o cabrito eu vou deixar com o compadre João, esse ano ele tem palma. Da pra aguentar por lá…Eu não vou esperar essa fartura ilusória que você espera todo ano em vão! Não tem uma nuvenzinha sequer nesse imensidão de meu Deus! Se você não quer ir, eu vou-me embora sozinha! Tomo o ônibus ali na vila e vou trabalhar na Capital.

– Vai mulher! Pode ir…arrume suas coisas, eu lhe dou a passagem, tenho uns trocados. Eu lhe desejo boa sorte!

Era finalzinho de tarde, naquele dia. Jeremias estava falando sério. Ele não tinha um tom de voz agressivo, mas conformado e melancólico. Entrou no quarto e veio com as últimas notas que tinha guardado da venda dos animais. Estendeu a mão trêmula, com o dinheiro. Eu fiquei sentada no banquinho de madeira olhando seu rosto sisudo. Desviei o olhar para o pôr do sol muito vermelho, que se escondia atrás dos mandacarus. A noite é sempre triste no sertão. Ela traz um vazio, talvez seja apenas um silêncio para que possamos preencher a nossa alma com alguma esperança perdida. Relutei em pegar aquele dinheiro. Ele insistiu:

– Tome! Pegue, é teu mulher…está livre, pode ir quando quiser.

Virou-me as costas e foi sentar num tamborete atrás da casa, como de costume, devorando um cigarro de palha. Eu fiquei parada ali, apertando aquele dinheiro nas mãos. Meu corpo parece que havia se descolado da alma. Eu estava imóvel, não tive reação. Senti uma tristeza, uma pena de nós… Eu ainda não tinha certeza se iria mesmo partir, sem Jeremias.

Mais de um mês se passou, desde o dia que Jeremias me deu o dinheiro da passagem. Hoje, eu o vi levantar e escutei o barulho das panelas no fogão. Todos os dias ele prepara a farofa de ovo ou carne seca, quando tem. Faz um café preto, prepara sua marmita e vai pra roça. Lá, limpa a capoeira, roça o mato espinhento que cresce na plantação de mandioca. Quando cansa, se ajeita na sombra de uma quixabeira e come sua matula. Eu sei que Jeremias olha muito para o céu, à procura de qualquer ínfimo sinal de chuva. Ele vela pelo nascimento de suas sementes de milho e feijão. Jeremias é um bom homem. É um homem de fé. Homem de fé não desiste fácil dos seus sonhos…

Não tive coragem de falar que iria hoje. Ouvi o rangido da porta, ao fechar. Pelas pequenas frestas da parede percebi o dia turvo, o Sol não havia saído. Ainda fiquei hora na cama tomando coragem para sair. Não me despedi de Jeremias. Não temos nada para dividir…minhas poucas roupas e uma sandália de couro cru é tudo que tenho.

Vou andar a passos largos, não quero perder o único ônibus que sai do povoado a cada dois dias.

Ajeitei com carinho um vasinho de margaridas que enfeitava o centro da mesa. Estiquei o paninho branco de crochê. Passei uma vassourinha sobre a chapa e a cauda do fogão a lenha, para retirar as cinzas. Certifiquei-me de que estava tudo limpinho. Pendurei a trouxa no ombro. Dei dois passos em direção à porta, olhei a estradinha sinuosa, brilhando com o calor do sol. Puxei a porta e rodei a tramela por fora. Ajeitei meu chapéu de palha na cabeça e tomei o caminho em direção à vila. Ora pisava num solo duro e rachado, às vezes afundava o pé num pó fino que levantava e era carregado pelo vento quente que soprava do norte. À minha frente, uma imensidão ocre se misturava com uma vegetação seca, onde apenas corvos e calangos se arriscavam a visitar. 

Para trás, quase sumindo atrás dos mandacarus, ia se distanciando de mim uma pequenina casa de adobe, descascados e telhas avermelhadas, em meio a um extenso terreiro de chão rachado. Sobre nós, uma imensidão de céu, pintado de azul, muito profundo, e um Sol tão grande quanto a tristeza que eu carregava naquela pequena bagagem.

Evani Rocha

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O que é que há, João?

Evani Rocha: ‘O que é que há, João?’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por Ia do Gencraft - 15 de setembro de 2025, às 06:50 PM
Imagem criada por Ia do Gencraft – 15 de setembro de 2025, às 06:50 PM

O que é que há, João?!

Hoje está tão cabisbaixo,

Frustrado e resmungão…

Já olhou o céu, João?

O azul profundo,

Mostrando que não tem fundo,

Não tem parede, nem chão!

O que é que há, João?!

Sentiu a brisa do mar,

A maresia a espalhar,

Um cheiro doce no ar?

Já observou o beija-flor,

Voando de flor, em flor,

Enfeitando o Jardim?

João, nada mais lindo

Não há,

Que ver o nascer do sol

No horizonte sem fim!

Sorver o sabor da vida,

Nos caminhos da estação,

Talvez na última parada, João,

Ainda haverá perfume

Nas suas honrosas mãos!

Evani Rocha

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Primavera outra vez

Evani Rocha: ‘Primavera outra vez’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por IA do Gencraft – 08 de setembro de 2025, às 08:11 PM

Vejo ao longe
No fio do horizonte
Campinas ocres, robustos montes
Fumaça branca em caracol
Encobre o azul cobalto do céu

Vejo ao longe, aves ao léu
Sob o manto branco do véu
Um piado gemido, grunhido
Como quem pede clemência

Como quem tem esperança
De um dia ser livre outra vez
Outra vez mês de agosto vai embora
E setembro ressurge em bonança

Ninhos novos se espalham no prado
Finalmente, uma fresca aurora
O ocre torna-se verdejante
Renasce a bela primavera

Vejo ao longe…
Campinas verdes e robustos montes
Aves em festa no jacarandá
Sob o azul profundo do céu
Um Sol gigante a fulgurar!

Evani Rocha

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Coração de poeta

Evani Rocha: Poema ‘Coração de poeta’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por IA do Gencraft - 1º de setembro de 2025, às 10:20 PM
Imagem criada por IA do Gencraft – 1º de setembro de 2025, às 10:20 PM

O poeta é dolorido,

Emotivo, pensativo…

Às vezes quieto, ou irrequieto,

Às vezes contente e extrovertido!

O poeta é resiliente, sociável

Ou solitário…

Pode ser sorridente ou taciturno,

Ou simplesmente boêmio!

O coração de um poeta, as vezes sangra,

Seus olhos vertem cachoeiras…

E da pele encrespada, as digitais de um toque!

O que toca o poeta, as coisas fugidias da vida,

Aquelas que ficam, ou as que nunca mais…

O poeta não é feliz, nem triste,

Apenas sensível ou insensato…

Faz dos fatos simples, tempestades

E das tempestades, poesia!

Evani Rocha

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Talvez o amor

Evani Rocha: Poema ‘Talvez o amor’

Evani Rocha
Evani Rocha
Imagem criada por IA do Canva – 26 de agosto de 2025, às 07h50

É! Talvez o amor da gente seja mesmo fugaz,

Como a florada da primavera.

Talvez seja como as estações do ano,

Tão passageiras…

Como a areia carregadas pelas ondas,

Para o fundo do mar,

Sem hesitar!

E talvez volte na maré cheia…

Decerto o amor é uma ave migrante,

Em busca de verão, que vem e vão,

Para qualquer lugar,

Onde haja sol e calor!

É o amor, devorando o tempo,

Moldando a gente, devagar…

É a terra fértil gestando a semente,

É o filho pródigo, retornando ao lar…

Quem sabe o amor é a gente,

Virando gente, no outono,

Trocando as folhas velhas por novos sonhos…

Ou talvez, o amor seja mesmo uma utopia,

Fantasia, melodia…

O equilíbrio em meio ao caos,

Na lucidez da sanidade…

Ou por ventura,

A loucura travestida 

De poesia!

Evani Rocha

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