E a delicadeza dos recomeços em ‘Talvez viver seja isso’
Talvez viver seja isso
Falar sobre dor nunca é simples.
Mas o escritor Lucas Ariel, de 31 anos, encontrou nas palavras uma forma de transformar o silêncio em ponte, e a vulnerabilidade em arte.
Natural de São Paulo e professor de inglês desde 2014, Lucas é formado em Letras, com pós-graduação em Ensino da Língua Inglesa e MBA na área educacional.
Depois de anos ensinando pessoas a se expressarem melhor, ele precisou reaprender a fazer isso consigo mesmo.
Durante o tratamento contra um câncer na garganta, Lucas viveu meses de silêncio, físico e emocional.
Foi nesse período, de isolamento e introspecção, que nasceu a semente de sua primeira obra literária: “Talvez viver seja isso”, um romance contemporâneo sobre recomeços, coragem e reconexão com a própria essência.
A história acompanha Rafael, um homem de 30 anos que tenta reconstruir a vida após enfrentar o mesmo diagnóstico e o fim de um relacionamento.
Mais do que falar sobre a doença ou a perda, o livro mergulha no que vem depois, o medo, a redescoberta do corpo, os vínculos que mudam e o lento despertar do desejo de viver novamente.
“Minha maior inspiração foi registrar o processo de reconstrução de alguém que não quer voltar a ser quem era antes, mas descobrir quem pode ser agora.”
Lucas afirma que não quis romantizar a dor, mas compreendê-la.
Com um tom íntimo e cotidiano, “Talvez viver seja isso” reflete sobre as pequenas experiências que nos devolvem à vida, o sabor de uma comida, um novo olhar sobre si mesmo, um gesto de amizade.
É uma narrativa sobre afeto, leveza e a força silenciosa de quem decide recomeçar.
Entre aulas, patins e cafés compartilhados com amigos, Lucas segue nutrindo o desejo de escrever mais histórias que dialoguem com a sensibilidade humana.
“Escrever foi um exercício de cura, mas também um gesto de partilha.”
Lucas Ariel
E talvez seja justamente isso, viver: partilhar o que dói, o que cura e o que nos faz continuar.
Rafael tem trinta anos e um corpo que ainda carrega as marcas do que sobreviveu: um câncer na garganta, um divórcio silencioso, uma voz que reaprende a existir.
Mas este não é um livro sobre a dor que passou — é sobre o que vem depois.
Entre prazos apertados, cafés requentados e silêncios divididos com amigos que viraram casa, ele tenta reconstruir algo que nem sabe se ainda é possível: uma vida que faça sentido.
E talvez, pela primeira vez, sem pressa.
Enquanto escreve para não se perder, Rafael descobre que viver não é voltar a ser quem se era antes.
É aceitar os vazios, encontrar beleza nas pequenas coisas e, às vezes, deixar que alguém leia o que você ainda não teve coragem de dizer em voz alta.
Talvez viver seja isso é um romance sobre recomeços, sobre não saber ao certo o que vem depois e, mesmo assim, continuar.
Há momentos na vida em que a noite parece não ter fim. O silêncio pesa, as lágrimas se tornam companheiras e a esperança parece distante, como uma estrela escondida pelas nuvens. Mas é exatamente nesse instante — quando o escuro se torna mais denso — que a promessa divina sussurra ao coração: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.”
Essa frase, tão antiga e ao mesmo tempo tão atual, fala da certeza de que nenhuma dor é eterna. O sofrimento tem hora marcada para ir embora, e a alegria sempre encontra o caminho de volta. A noite, por mais longa que pareça, é apenas um intervalo — uma pausa necessária para que o amanhecer brilhe ainda mais.
A vida é feita desses ciclos: o pranto que limpa, a esperança que renasce, o sol que retorna para aquecer o que antes parecia frio. Deus, em Sua sabedoria, nos concede o tempo da escuridão não como castigo, mas como aprendizado. É na noite que aprendemos a valorizar a luz.
E assim seguimos. Cada novo dia é uma chance de recomeçar, de enxugar as lágrimas e abrir as janelas da alma para o primeiro raio de sol. Porque, depois de toda noite — por mais triste que tenha sido — sempre haverá uma manhã esperando para sorrir com a gente.
No coração do interior paulista, onde o café crescia como mato e o tempo escorria devagar entre o tilintar das xícaras de esmalte e o barulho seco do pilão, vivia-se uma velhice que não pedia licença para chegar.
Ela vinha aos poucos, silenciosa, dobrando as costas, rareando os cabelos, afiando os ossos como se o corpo quisesse voltar ao pó antes da hora.
Era assim com dona Giuseppina, a nonna, que um dia fora moça de tranças longas, vinda da Lombardia com o pai e as irmãs, fugida da fome e das guerras pequenas.
Agora, velha, tornara-se parte da paisagem — mais antiga que a casa de taipa, mais resistente que o tronco do cafeeiro.
Os banhos de Giuseppina eram um ritual.
Naquela época, início dos anos 1940, não havia encanamento nem banheiro no sentido moderno; o banho era tomado no balde de ferro, sob o sol do terreiro, ou na cozinha, onde o calor do fogão a lenha aquecia a água em tachos fumegantes.
A neta, Lina, era quem ajudava.
Com o cuidado das mãos novas, ela despejava a água quente nas costas da avó, e o vapor subia como se quisesse carregar junto o cansaço dos anos.
Giuseppina falava pouco durante o banho.
Ficava ali, sentada no banquinho de madeira, os joelhos salientes, o corpo cheio de marcas — cada mancha, uma história; cada veia, um fio de memória.
A pele, enrugada e fina, lembrava o papel de pão que embrulhava o café moído para vender na feira.
E, enquanto Lina ensaboava as pernas da avó com o sabão de cinza feito em casa, o cheiro forte de soda e gordura misturava-se ao aroma doce do café secando no terreiro, compondo uma sinfonia que era, ao mesmo tempo, doméstica e sagrada.
A casa era simples, mas cheia de sinais de fartura de outros tempos: o relógio parado na parede, as imagens de santos trazidas da Itália, o baú de madeira escura onde se guardavam lençóis bordados e cartas amareladas.
Lá fora, o terreiro se estendia em vermelho e verde — grãos maduros e outros ainda verdes, secando sob o sol do interior.
O som das peneiras, o rolar dos grãos, as vozes dos colonos italianos e caboclos misturados faziam da fazenda um pedaço de mundo.
Aos domingos, depois da missa, as mulheres se reuniam na cozinha grande para preparar o almoço: macarrão feito à mão, frango ensopado, pão de milho e vinho ralo. Era tradição — o domingo não existia sem o cheiro do molho e o barulho das panelas.
E Giuseppina, mesmo já cansada, fazia questão de comandar tudo: dizia quantos ovos iam na massa, a hora certa de escaldar o frango, e, no fim, abençoava a mesa com um gesto lento, como quem reza para que o tempo não leve embora as pequenas certezas da vida.
Mas o corpo dela, teimoso, começava a pedir descanso.
As pernas inchavam, o olhar se perdia.
Às vezes, falava em italiano, lembrando da neve que cobria os campos da infância, das oliveiras e das procissões com velas.
Ninguém mais entendia bem o que ela dizia — o idioma da memória é sempre outro, incompleto e vago.
Lina, mesmo sem compreender as palavras, respondia com carinho, secando-lhe o cabelo com a toalha grossa e dizendo que logo o verão passaria, que o calor cansava a todos.
O tempo, porém, não passava para Giuseppina.
Ele se acumulava, pesado, no corpo e nas lembranças.
Até que, numa manhã sem vento, ela não quis mais o banho. Disse apenas:
— Hoje, não precisa, Lina. A água pode esperar.
Foi o presságio.
Naquela noite, o corpo velho de Giuseppina, cansado de resistir, adormeceu para não acordar mais.
A notícia correu pelas colônias, espalhando-se como cheiro de café torrado: “A nonna Giuseppina se foi.”
Mas, ali, não havia funerária, nem caixão comprado.
No interior de São Paulo daquele tempo, a morte ainda era um assunto doméstico.
O corpo ficava na sala, coberto por um lençol branco bordado por ela mesma. As mulheres preparavam o defunto com o mesmo zelo com que preparavam o pão: lavavam-no com água morna, penteavam-lhe os cabelos, vestiam-no com a melhor roupa.
Lina, com as mãos trêmulas, repetiu o gesto dos banhos, só que agora o corpo não respondia.
Enxugou o rosto da avó com o mesmo pano de outrora, como se a limpeza pudesse manter viva a lembrança do calor que ali existira.
Os homens, do lado de fora, construíam o caixão de tábuas de cedro.
Pregos, martelo, vela — tudo improvisado, mas feito com uma devoção silenciosa.
O velório durou a noite inteira.
Rezar o terço era tradição, e as vozes se erguiam compassadas, mesclando português arrastado e italiano antigo.
O padre só chegaria dois dias depois, então coube às mulheres cuidar da alma da falecida, entre cânticos, lamúrias e o cheiro doce das flores colhidas no quintal.
Quando o sol nasceu, o enterro seguiu a pé até o pequeno cemitério, atrás da igreja, ladeado de eucaliptos altos.
Os homens carregavam o caixão nos ombros; as mulheres, de preto, vinham atrás, rezando.
A terra fofa do interior paulista abriu-se para receber mais um corpo, mais uma história.
Não havia mármore, apenas uma cruz de madeira com o nome e o ano: Giuseppina Bianchi, 1867 – 1944.
Lina ficou por último.
Levou consigo a bacia de ferro usada nos banhos e um pedaço do sabão de cinza, agora endurecido.
Colocou-os ao lado da cruz e murmurou, quase em segredo:
— Pra senhora continuar limpinha, nonna.
O vento passou entre os eucaliptos, levando consigo o cheiro da terra molhada e do café maduro.
O tempo seguiu, como sempre faz, cobrindo de esquecimento o que não se pode guardar inteiro.
Mas, nas manhãs seguintes, quando Lina aquecia a água no fogão e via o vapor subir, jurava sentir, por um instante, o mesmo cheiro de sabão e de pele antiga, o mesmo silêncio do corpo que um dia ensinou que a velhice não é o fim — é apenas o começo do retorno à terra.
E assim, entre o cheiro do sabão e da terra, o ciclo se completava: a água lavava, o fogo aquecia, e a terra guardava.
Era o jeito das coisas naquele tempo — simples, duro e cheio de dignidade.
Minha história começa em Passa Quatro, onde o amor tinha cheiro de terra molhada e o riso das crianças misturava-se ao canto das panelas na cozinha.
Havia colo, havia tempo, e o mundo cabia inteiro na palma quente das mãos da minha mãe. Nada doía, porque tudo era abraço.
Mas o céu, ah, o céu, um dia escureceu de repente. E a chuva, que antes lavava as ruas, veio forte demais, levando não só as casas, mas o chão dos meus passos.
Perdi o lar, perdi o cheiro de casa, perdi o rastro da infância. Minha mãe partiu, ano seguinte da enchente, meu pai seguiu outro caminho, e eu fiquei, como quem fica num porto vazio, esperando um barco que não volta.
No orfanato, aprendi o silêncio. Aprendi que há dores que só Deus escuta, mesmo quando o coração grita. E, todas as noites, eu perguntava baixinho, Senhor, onde o Senhor se esconde quando chove dentro da gente?
O tempo passou e, um dia, um gesto acendeu de novo a esperança. Um padre, com olhos de ternura, me estendeu a mão e disse: Vens comigo.
Cruzeiro me acolheu como quem acende uma vela num quarto escuro. Ali, a vida foi voltando devagar, com o mesmo cuidado de quem costura um pano rasgado.
Aprendi que a coragem não é ausência de medo, é a insistência em continuar, mesmo tremendo.
Que as cicatrizes não são feridas, mas mapas, testemunhos de quem sobreviveu à travessia.
Hoje, quando olho para trás, não vejo tragédias, vejo caminhos. A dor me ensinou a fé, e o abandono me fez entender que o amor de Deus é o único abrigo que não desaba.
E se um dia a chuva te encontrar, deixa que ela caia. Ela não vem para te afogar vem para lavar o que precisa ser renascido.
Quando ela passar, a luz será mais clara. E o que hoje parece fim, é apenas o começo de um novo amanhecer em ti.
Logo da seção O Leitor ParticipaImagem criada pela IA do ChatGTP
O ano exato não se sabe, mas a maior parte das pessoas diz que aconteceu na década de 1920, em uma cidade do agreste nordestino. E, naquele tempo, era comum a população andar armada, o que transformava o lugar em um negócio rentável para o dono da única funerária por aquelas bandas.
Outra informação que se faz necessária é que, assim como na maior parte do país, a luz elétrica ainda não havia chegado ali, e os moradores precisavam recorrer a fogueiras, lamparinas e lampiões a querosene. Por causa da precária iluminação, o povo jantava antes do sol se pôr e, às 20h, tirando os casais mais empolgados, a cidade adormecia.
Pois bem, muito antes daquele criminoso que assombrou a capital paulista no final dos anos 1960, um outro bandido andava levando pânico àquele pequeno povoado. O tal delinquente, por conta da falta de luz, fazia uso de um lampião de vidro vermelho, o que provocava um contraste macabro durante as noites escuras. Os moradores o apelidaram de Bandido do Lampião Vermelho.
O facínora, além de roubar o pouco que aquela gente possuía, ainda molestava as donzelas, que, por costumes da época, precisavam ser mandadas para um convento, onde passavam a vida inteira rezando para se redimirem do pecado de terem sido violadas. Algumas não suportavam tal martírio e tiravam a própria vida, mas também há casos das que passaram a viver a vida das mulheres malfaladas. Duas ou três, todavia, conseguiram manter segredo da violação e contraíram matrimônio. Adestradas pela mãe, souberam ludibriar o noivo na noite de núpcias.
A despeito do terror que se abateu sobre a população, havia por ali um homem destemido, cujo nome ainda hoje ecoa nas histórias contadas. Genaro Cavalcante, charuto no canto da boca, garrucha na mão, cuspia bala para qualquer desaforado. O cabra andava arretado com esse marginal e prometeu dar fim ao sujeito assim que o encontrasse.
Enquanto a promessa não era cumprida, o Bandido do Lampião Vermelho agiu novamente. O malfeitor, sorrateiramente, invadiu a casa da dona Francisca, esposa do Timóteo. Entretanto, pelo menos nesse caso, a coisa aconteceu em conluio com a mulher. É que, sem o conhecimento do marido, Francisca andava de namorico com o Bandido do Lampião Vermelho e, durante as noites que Timóteo saía para caçar, ela acolhia o amante debaixo dos lençóis.
O esposo traído, talvez por conta da falta de caça ou, então, por desconfiança, acabou retornando mais cedo para casa. Assim que abriu a porta, ouviu alguns gemidos vindos do quarto. Arma em riste, correu para salvar a mulher das garras do salafrário. No entanto, antes que conseguisse chegar, o Bandido do Lampião Vermelho já havia fugido pela janela, mas deixou o lampião ao lado da cama.
Francisca, amedrontada pela chegada de Timóteo, ajoelhou aos pés do marido e suplicou perdão. O esposo, imaginando que a mulher fosse mais uma vítima do marginal, acolheu-a nos braços. Em seguida, pegou o lampião no chão e prometeu vingar a honra da amada.
A esposa viu o marido sair, quando, não tardou, ouviu um tiro. Correu para fora e viu Timóteo caído a poucos metros da casa. Curiosos correram ao local, onde encontraram Genaro Cavalcante se vangloriando.
— Prometi que ia matar o gatuno e matei.
Os moradores enalteceram a bravura do matador. Em terreiro de Genaro Cavalcante, ninguém se cria. Quanto ao verdadeiro Bandido do Lampião Vermelho, ninguém mais ouviu falar. A viúva de Timóteo, não tardou, também sumiu e, até onde se sabe, nunca se preocupou em dar notícias.
Eduardo Martínez
Eduardo Martínez Foto por Irene Araújo
Eduardo Martínez é um premiado escritor carioca, que há mais de três anos mora em Porto Alegre, cidade pela qual é apaixonado. Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos com ’57 contos e crônicas por um autor muito velho’, que saiu pela Joanin Editora.
Seu primeiro livro, o romance ‘Despido de ilusões’, 2004, figurou entre os mais lidos do Centro Cultural Banco do Brasil.
Seus contos e crônicas, que já ultrapassaram a incrível marca de 1.000 publicações, são utilizados por escolas no Rio de Janeiro, em Brasília e em Brodowski-SP.