O mistério da rua sem saída

Eduardo Martínez: Conto ‘O mistério da rua sem saída’

O mistério da rua sem saída
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Imagem criada por IA do ChatGPT em 13 de novembro de 2025, às 07:57 PM
Imagem criada por IA do ChatGPT em 13 de novembro de 2025, às 07:57 PM

Duas meninas, gêmeas, sete anos, uma Ana Maria, outra Mariana.  Ana Maria tinha grandes olhos de um castanho meio mel; Mariana também.  Ana Maria com seus cabelos encaracolados, caídos um pouco abaixo dos ombros; Mariana também.  Ana Maria adorava sorvete de flocos; Mariana, de morango.

            As duas irmãs moravam em uma pequena rua, uma rua sem saída, num bairro bem distante, numa cidade bem grande, num país chamado Brasil.  Havia outras crianças na rua da Ana Maria, que também era a rua da Mariana, mas que também era a rua de outras pessoas. 

Juliana também morava nessa rua, era amiguinha das gêmeas, tinha cabelos lisos, loiros, caídos bem abaixo dos ombros.  Todos a chamavam de Jujuba.  Também havia a Gabriela, morena dos cabelos tão grandes que alcançavam o bumbum.  Nossa, a Gabriela era tão mandona, gostava de chefiar tudo.  Mandar era com ela mesma.  Iago era um dos poucos meninos da rua, magro como um palito, negro, dois olhos de jabuticaba bem madura.         

A criançada se divertia com as brincadeiras que seus pais e até avós já haviam brincado.  Queimada, que essa nova geração cismava em chamar de queimado, pique-esconde, bandeirinha, o mestre mandou.  Muitas e muitas brincadeiras.  Puxa, como se divertia essa meninada!

          Não só havia crianças nessa rua, mas árvores frondosas, principalmente amendoeiras.  Quando chovia, e a criançada não queria acabar a brincadeira, todos se protegiam embaixo das árvores.  E quando o sol estava muito forte, a galerinha também ficava sob as copas tão protetoras das mesmas árvores.

            Alguns gatos circulavam pela rua, uns tinham dono, outros eram da rua mesmo.  Um desses errantes era um lindo gato branco, a cauda mais peluda do que o resto do corpo, um pouquinho gordo, mas nada que o impedisse de escalar muros e até mesmo as belas árvores.  E mesmo sendo um bichano das ruas, tinha nome e até sobrenome, colocado pelo pessoal da vizinhança.  Pois bem, o dito cujo se chamava Virgulino Ferreira da Silva.  Mas por que cargas d’água iriam dar um nome desses a um gato, você poderia perguntar.  É mais simples do que parece: esse bichano recebeu esse nome como uma referência ao cangaceiro Lampião, que se chamava Virgulino Ferreira da Silva e só tinha um olho.  Pois é, o gato Virgulino também só possuía um olho.  Ninguém sabe na verdade como ele perdeu o outro ou, se sabe, já se esqueceu.

            Quem sempre andava com o Virgulino era um gato de cor cinza azulado, olhos verdes e que sempre se metia em confusão.  Já havia escapado da morte diversas vezes e, por esse motivo, ganhara o sugestivo nome de “Elvis não morreu”.  Virgulino e Elvis eram amigos inseparáveis, sempre se metendo em encrencas juntos, sempre saindo delas juntos.  Eram como unha e carne.

            Não poderia deixar de existir nessa história uma gatinha, que por sinal se chamava Sonja ou, para os íntimos, Sonjinha.  Uma bela bichana de cor cinza, tigrada, olhos verdes como os do Elvis, mas bem mais dóceis e confiáveis.  Ao contrário de Virgulino e seu amigo inseparável, Sonja possuía dono, ou melhor, dona, ou melhor ainda, duas donas: Ana Maria e Mariana ou, se você preferir, Mariana e Ana Maria, as tais gêmeas de que falei logo no início desta história. 

Sonja não era a única na casa das duas irmãs, dividia o caixote de madeira com seu filho único, o Dunguinha, um gatinho loiro e de olhos verdes.  Ele ainda não havia completado três meses, mas já era o xodó da casa, da rua, enfim, de todos que o conheciam.  Era uma coisa de Dunguinha para cá, Dunguinha para lá, todos queriam pegar o filhotinho no colo.

            Não só de crianças, árvores e bichanos esta história é feita.  Também havia os pais e mães da criançada.  Ah, claro, também não podemos nos esquecer dos outros animais como, por exemplo, a Cuca, uma cachorrinha muito simpática, que morava na mesma casa da Sonja.  Ela também pertencia às gêmeas Ana Maria e Mariana e, apesar do dito popular, se dava muito bem com os bichanos da casa e até mesmo com os da rua. 

Atirei o pau no gato

             A criançada estava brincando na rua, numa sexta-feira já perto das dezenove horas, que é a mesma coisa que sete horas da noite.  Só que era horário de verão, e o dia continuava claro.

            Era um corre-corre para cá, um corre-corre para lá.  A patota já havia brincado de pique-bandeira, que alguns chamam de bandeirinha.  Também se divertiram muito jogando garrafão.  Ei, não pense você que jogar garrafão é sair atirando garrafas nos coleguinhas.  Garrafão é o nome de uma brincadeira onde a gente desenha uma grande garrafa no chão.  Aí, quem está dentro do garrafão só pode andar com um pé, a não ser que seja você que está tentando pegar seus amiguinhos.  Quem está de fora pode usar os dois pés.  Bem, mas como eu ia dizendo, a galerinha já havia gastado muita energia em inúmeras brincadeiras divertidas.  Então, a Gabriela, a tal menina mandona, chamou todos para brincar de show de calouros.  Cada um tinha de cantar uma música, mas podia cantar em dupla, trio ou, até mesmo, todos juntos.

            — Eu posso ser a primeira? – Jujuba perguntou.

            — Tá bem.  Depois vai ser a Mariana – Gabriela disse.

            — Mas eu posso cantar com a minha irmã? – quis saber a Mariana.

            — Claro que pode, Mariana – concordou a Gabriela.

            — E eu não vou cantar? – o Iago perguntou quase chorando.

            — Claro que vai, Iago – todos responderam ao mesmo tempo.

            Jujuba cantou “O trem maluco” e foi aplaudida por todos.  Depois foi a vez das gêmeas cantarem “Cai, cai balão”.  Outras crianças cantaram “Marcha soldado”, “Casa engraçada” e outras canções.  Quando chegou a vez do Iago, ele não quis cantar sozinho e pediu para que todos cantassem juntos “Atirei o pau no gato”.  Não pense você que eles maltratam os animais, mas apenas preferem a versão original àquela que diz “Não atirei o pau no gato”.  

            Quando terminaram de cantar “Atirei o pau no gato”, alguém, acho até que foi a Ana Maria, perguntou se uma das crianças tinha visto o Virgulino.  Ninguém, mas ninguém mesmo soube responder.  Pensando bem, a última vez que haviam visto o tal gatinho branco foi pela tarde do dia anterior.  E acho que foi o Iago, isso mesmo, foi o Iago quando voltava da escola, que o viu pela última vez. 

            Gabriela imediatamente organizou duas turmas de busca.  A primeira era formada por Jujuba, as gêmeas, Taís e Leila.  A outra turma ficou sendo a Gabriela, Amanda, Iago e o Leo, que na verdade se chama Leonardo e é irmão da Leila. 

            A galera da primeira turma tinha de procurar embaixo dos carros; a outra procurou em cima das árvores.  Procuraram, procuraram, procuraram…  Puxa, mas como procuraram!  E nada de acharem o Virgulino.  Ainda estavam procurando quando a mãe da Leila e do Leo os chamaram.

            — Leila!  Leo!  Já tá tarde!  Vamos entrando!

            Logo em seguida foi a vez da avó do Iago mandá-lo entrar.  E as mães, pais e outras pessoas da família foram chamando a criançada para entrar.  E todos foram se despedindo dos coleguinhas e entraram para as suas respectivas casas.

Pique-esconde

             No dia seguinte, uma sexta-feira, lá estava a garotada da rua sem saída, a rua da Ana Maria e da Mariana, a mesma rua que também era de outras crianças, de árvores frondosas e de vários bichinhos.

            — Gente, hoje é sexta-feira, amanhã não temos aula, pois será sábado.  Então, podemos brincar até um pouco mais tarde – disse Gabriela, que você já sabe que era mandona.

            — É mesmo!  Que legal! – foi dizendo Iago.

            — Mas estudar também é muito legal – falou a Mariana.

            — É isso aí, Mariana! – concordou a Jujuba.

            — Podemos brincar de pique-esconde – sugeriu a Ana Maria.

            — Bacana! – disse a Taís.

            — Maneiro! – concordou a Leila.

            Como a maioria queria brincar de pique-esconde, a proposta da Ana Maria foi aceita.  Logo estavam todos formando um círculo e gritando “zerinho ou um”.  O último a sair contaria até 50 para que os outros se escondessem.  E o último a sair foi justamente o Leo.

            — Um, dois, três, quatro, cinco… – enquanto o irmão da Leila contava com o rosto virado para o pique, todos se escondiam.  

            A Ana Maria e a Jujuba se esconderam atrás de uma moita de capim limão, a Mariana foi para trás de um carro, o Iago e a Taís subiram em uma árvore, a Leila e a Gabriela ficaram atrás de uma  outra árvore.  As outras crianças também se esconderam, cada uma tentando escolher o esconderijo mais perfeito.

            Pois é, a galerinha ficou nessa brincadeira por mais de uma hora.  Depois do Leo, foi a vez da Jujuba contar até 50 para que todos se escondessem.  Mariana e Taís a sucederam.  E depois ainda vieram a Gabriela, a Leila e, por último, o Iago.  Só a Ana Maria não teve de contar até 50.  É, dessa vez, a danadinha teve sorte!

            A brincadeira só acabou mesmo porque alguém se lembrou de procurar o Virgulino, que havia sumido e ninguém conseguiu achá-lo.  Se não estou enganado, acho que foi a Mariana que se lembrou.  Seja como for, a mandona da Gabriela dividiu os grupos como no dia anterior e todos foram procurar o Virgulino.  

            Era um tal de gritar “Virgulino” pra cá, “Virgulino” pra lá, mas nada do bichano aparecer.  De tanto berrarem, as crianças já estavam ficando roucas.  Gritaram até que a Taís percebeu que não era só o Virgulino que havia sumido.  Ela notou que o amigo inseparável do gatinho desaparecido também não estava por ali.  

            — Galera, vocês notaram que o Elvis também sumiu? – perguntou a Taís.

            Ninguém havia visto o amigo do Virgulino.  Então, a Gabriela chamou todo mundo e fez uma grande roda.

            — Pessoal, a Taís notou que o Elvis também sumiu.  Ontem ele estava aqui, mas hoje desapareceu.  O que será que houve com os dois?  Será que foram embora da nossa rua? – falou a mandona.

            Mas antes que alguém pudesse responder, o pai das gêmeas mandou que elas entrassem.  Logo em seguida foi a vez da mãe da Leila e do Leo chamá-los.  E assim a criançada foi entrando para as suas respectivas casas, sempre obedecendo aos chamados dos pais, das mães, das avós…   

Cobra-cega

            O sábado amanheceu ensolarado e logo a garotada estava na rua.  A brincadeira já ia começar.  A maioria escolheu brincar de cobra-cega, que alguns conhecem por cabra-cega.  Só estavam faltando as gêmeas, que ainda não tinham saído de casa.  Então, a Gabriela, que era mandona mesmo, falou pro Iago ir chamá-las.  

            — Puxa, sempre sobra pra mim! – resmungou o garoto de olhos de jabuticaba.

            Antes mesmo que o Iago tocasse a campainha da casa da Ana Maria e da Mariana, elas apareceram e falaram ao mesmo tempo:

            — Iago, você viu a Sonjinha e o Dunguinha?

            — Não.  Por quê?  Não vão me dizer que eles sumiram também?

            — Isso mesmo – respondeu Ana Maria antes da sua irmã.

            Os três correram para contar a novidade para a galerinha.  Então, a Gabriela dividiu a turma em dois grupos para procurar os dois gatinhos.  Aliás, os quatro, pois o Virgulino e o Elvis continuavam desaparecidos.   Procuraram, procuraram, procuraram e nada de encontrar os felinos.  Onde eles poderiam estar?  

            Depois de mais de uma hora procurando os gatinhos, a Ana Maria veio conversar com a Gabriela.

            — Gabi, estive pensando numa coisa.

     — No quê, Aninha? – quis saber a Gabriela.

            — Olha, já procuramos os nossos amigos gatinhos em vários lugares, mas até agora nem sinal deles.  Então, tive uma ideia!

            — Que ideia, Aninha? – quis outra vez saber a Gabriela, que além de mandona era muito curiosa.

            — Precisamos da ajuda de mais alguém! – disse a Ana Maria fazendo um certo mistério.

            — E de quem? – mais uma vez a mandona e curiosa da Gabriela quis saber.

            — Ora bolas, da Cuca! – finalmente disse a Ana Maria.

            — Da Cuca?  Mas por que da Cuca? – a Gabriela não entendeu.

            — Olha, a Cuca é uma cachorrinha e tem um ótimo faro.  Ela conhece o cheiro de todos os gatinhos que sumiram.  Então, ela vai achá-los!  Tenho certeza de que ela irá encontrá-los! – falou a Ana Maria.

            — Boa ideia! – disse o Diogo, que estava por perto e acabou ouvindo a conversa das duas.

            — É, pode dar certo – concordou a Gabriela.

    Depois de chamar toda a criançada da rua, a Gabriela falou para o Iago ir buscar a Cuca, que era a cachorrinha da Ana Maria.

            — Iago, vai lá na casa da Ana Maria e traga a Cuca aqui.

            — Ah, tudo eu, tudo eu! – resmungou o Iago, mas mesmo assim obedeceu à mandona da rua.

            Em menos de cinco minutos, o Iago estava de volta com a Cuca, que veio abanando o rabinho para a garotada.  Ela gosta tanto das crianças que acabou por derrubar a Ana Maria e começou a lamber o seu rosto.  A Mariana foi tirá-la de cima da irmã, mas a Cuca deu um pulo e a jogou no chão e também lambeu o seu rosto.

            — Para, Cuca!  Você está me fazendo cócegas – protestou a Mariana.

            — Au, au, au! – a Cuca latia chamando todos para brincar.

            — Quieta, Cuca! – ordenou a Gabriela.

            Até a Cuca sabia que a Gabriela era mandona e, por isso mesmo, saiu de cima da Mariana e se sentou ao seu lado.  A Mariana limpou seu rosto das lambidas da cachorrinha danada.

            — Aninha, fala pra Cuca procurar os gatinhos – disse a Gabriela.

            A Ana Maria se ajoelhou em frente à Cuca, pegou a cabeça da cachorrinha com as suas duas mãozinhas e olhou bem dentro dos olhos dela.

            — Cuca, quero que você ache a Sonjinha, o Dunguinha, o Virgulino e o Elvis, que sumiram.  Ninguém sabe onde eles estão.  Você pode encontrá-los pra mim? – falou a Ana Maria.

            — Au, au, au! – respondeu a Cuca.

            A cachorrinha, então, colocou o focinho no chão e saiu em busca de uma pista.  Ela vinha e voltava, vinha e voltava com o focinho quase arrastando no chão e a cauda levantada.  Até que ela foi seguindo para o final da rua, onde parou em frente à casa de um tal Ubaldo Canastra, que havia se mudado há poucas semanas para o bairro. 

A Cuca ficou de pé com as patinhas da frente apoiadas no muro da casa.  Ela estava inquieta, o rabinho agitado, mas não latia para não chamar a atenção do dono da casa.  A Cuca era danadinha, mas também não era boba.

            A criançada correu até onde a Cuca estava.  Jujuba foi a primeira a falar.

            — Galera, os gatinhos estão aí dentro!  Vamos entrar e pegá-los!

            — Não podemos fazer isso, Jujuba.  Quem mora aí é aquele homem estranho, o tal Ubaldo Canastra – disse a Taís.

            — A Taís tem razão.  Precisamos bolar um plano para salvar nossos amiguinhos – disse a Amanda.

            Então, a Gabriela, que você já sabe que era mandona e curiosa, convocou toda a galerinha para uma reunião secreta.  Só que quando todos já estavam na tal reunião secreta, a mãe da Gabriela a chamou para almoçar.  Não demorou muito e todas a mães, pais, avós, avôs, tias e tios da criançada apareceram na rua para avisar que o almoço já estava na mesa.   

O plano

            Após o almoço, a gurizada foi saindo de casa.  Primeiro foram as gêmeas Ana Maria e Mariana, depois a Jujuba, a Taís, a Gabriela, o Diogo, a Amanda, enfim, todos, menos um, o Iago.  Bem, o Iago demorou porque ele é meio guloso.  Também, naquele dia tinha feijoada e o Iago adora comer o feijão da sua avó.  Aliás, o Iago come de tudo, dizem que até sopa de pedra!  

            Depois de esperar pelo amiguinho guloso, a criançada finalmente viu surgir o Iago, que vinha coçando a barriga de satisfação.

            — Ah, que feijoada deliciosa! – disse o glutão.

            — Puxa, até que enfim você apareceu, Iago – protestou a Gabi.

            — É mesmo, Iago.  A gente só estava esperando você pra começar a reunião – disse a Jujuba.

            Então, a reunião teve início com as palavras da Gabriela.

            — Amiguinhos e amiguinhas, debaixo desta linda castanheira digo que a reunião comece.  A pauta é o salvamento dos nossos amiguinhos gatinhos – disse a mandona.

            A Mariana levantou a mão para falar.  A Gabriela olhou para ela e falou para todos prestarem atenção nas palavras da colega.

            — Meus amiguinhos, minha irmã e eu tivemos uma ideia para salvar os gatinhos.  Olha, um de nós vai ficar vigiando a casa do Ubaldo Canastra.  Quando ele sair, a gente pula o muro e entra na casa dele.  Aí, a gente pega os nossos amiguinhos e fugimos – disse a Mariana.

            — Boa! – concordou a Jujuba.

            — Mas e se ele aparecer de repente? – quis saber o Diogo.

            — Bem, é só deixar alguém vigiando a rua.  Quando o Ubaldo Canastra aparecer, quem ficar de vigia avisa os que entrarem na casa – explicou a Mariana.

            — Legal! – disse a Jujuba.

            — É, acho que o plano das gêmeas vai funcionar – concordou a Taís.

            Então, a Gabriela perguntou se todos estavam de acordo com o plano, e ninguém foi contra.  A mandona continuou a falar.

            — Iago, você vai ficar vigiando a casa do Ubaldo Canastra.  Assim que ele sair, você avisa a gente.

            — Puxa, tudo eu, tudo eu – resmungou o Iago.

            — E quem vai entrar na casa? – perguntou a Amanda.

            — Eu, a Aninha, a Mariana, a Jujuba e a Taís – respondeu a Gabriela.

            E assim ficou acertado o plano de resgate dos quatro gatinhos.  Mas como o dia foi passando e nada do Ubaldo Canastra sair de casa, a garotada resolveu brincar de queimado.  E o tempo foi passando, passando, até que as mamães, os papais, as avós, os avôs, as titias e os titios foram chamando a criançada para entrar.  Brincadeira só no outro dia!

O resgate

            Domingo!  O primeiro a sair à rua foi o Diogo.  Ele estava brincando de rodar pião.  Logo chegou a Jujuba, que brincou um pouco também.  Depois apareceram a Taís e a Gabriela quase ao mesmo tempo.  A criançada foi chegando aos poucos, mas ainda faltava um.  E você pode adivinhar quem era esse retardatário?  Pois é, era o guloso do Iago, que não se contentava com um pão.  Ele come pelo menos três!  E olha que ele é magrinho que nem palito!  

            E brinca daqui, brinca dali… A meninada estava com todo gás esse dia.  E o Iago, mesmo brincando, não desgrudava os olhos de jabuticaba madura da casa lá no final da rua, onde morava o tal Ubaldo Canastra.

            Ih, agora me lembrei que não disse como era esse tal Ubaldo Canastra.  Pois bem, ele é um homem de mais de 1,80 metro de altura, pelo menos uns cem quilos ou mais, mãos enormes com dedos grossos, as unhas são tão grandes e cheias de sujeira, é calvo e o pouco dos cabelos que lhe restam são quase pretos.  Tem um enorme nariz de batata e sua pele é branca encardida de terra.  Seus olhos são maiores do que os de uma coruja e sua boca mais fedorenta que um penico.  Pois é assim mesmo esse Ubaldo Canastra!

            De repente o Iago começou a pular e apontar para o final da rua.  Mas ele não conseguia dizer coisa com coisa.  Teve criança até que achou que o guloso da rua tinha pirado.  Também teve uma menina, acho até que foi a Jujuba, que achou que o Iago estivesse com dor de barriga.  

            — O que foi, Iago? – perguntou a Gabriela.

            — E…e… ele saiu! – gaguejou o guloso.

            — Ele quem, Iago? – quis saber a Jujuba.

            — O… o… Ubal…  Ubaldo Canastra! – finalmente falou o Iago.

            — Vamos turma!  Temos de agir o mais rápido possível – disse a Gabriela.

            Enquanto a criançada corria para frente da casa do Ubaldo Canastra, a Ana Maria e a Mariana correram para o lado oposto.  A Gabriela não entendeu e as chamou.

            — Ei, Ana Maria!  Ei, Mariana!  Aonde vocês estão indo? – falou a Gabriela.

            — Vão indo na frente.  A gente só vai pegar umas coisas lá em casa.  Logo estaremos com vocês – respondeu a Mariana.

            Então, a criançada ficou em frente à casa do Ubaldo Canastra.  Em menos de cinco minutos apareceram as gêmeas carregando um balde e cinco ratoeiras.

            — Pra que vocês trouxeram essas coisas? – quis saber a Gabriela.

            — Depois a gente fala.  Agora precisamos agir o mais rápido possível – disse a Ana Maria, já pulando o muro da casa do Ubaldo Canastra.

            Então, a Mariana passou o balde e as ratoeiras para a sua irmã.  Depois também pulou o muro.  Vieram atrás dela a Gabriela, a Jujuba e a Taís.  As outras crianças ficaram ajudando o Iago a ver se o Ubaldo estava voltando.

            A porta da frente estava fechada.  Então, as gêmeas tiveram a ideia de olharem se a porta dos fundos estava aberta.  As cinco meninas deram a volta na casa.  A porta de trás também estava trancada.  Mas havia uma janela aberta, só que era um pouco alta para as meninas.

            — Puxa, e agora? – falou uma desanimada Jujuba.

            — Já sei!  Já sei! – disse a Taís.

            — O que você já sabe, Taís? – perguntou a Gabriela.

            — Olha, a gente vai fazer uma pirâmide humana!  Eu já vi isso no circo – respondeu a Taís.

            — Pirâmide humana?  Mas o que é isso? – quis saber a Jujuba.

            — Pirâmide humana é o seguinte: a gente vai subindo uma em cima da outra até ficar bem alta.  Entendeu? – respondeu mais uma vez a Taís.

            — E isso vai dar certo? – perguntou a Gabriela.

            — Só saberemos tentando – disse a Ana Maria.

            Como a Gabriela era a mais velha e mais forte, ela ficou sendo a base da pirâmide.  Então, ela encostou o corpo na parede da casa e falou para a Jujuba subir nos seus ombros.  Ajudada pelas outras meninas, a Jujuba conseguiu ficar em cima da Gabriela.  Depois foi a vez da Ana Maria subir nos ombros da Juliana.  Ela foi ajudada pela Taís e pela Mariana.  Com bastante esforço ela conseguiu.

            — Vai logo, Ana Maria, pula logo a janela, pois não estou aguentando todo esse peso – disse a Gabriela.

            A Ana Maria não perdeu tempo e entrou na casa através da janela.  Ela estava no quarto do Ubaldo Canastra.  Estava tudo escuro, apesar de ainda ser dia.  É que as cortinas estavam todas fechadas.  Tratou logo de descer a escada da casa de dois andares e foi abrir a porta de trás para a sua irmã e as suas amigas entrarem.  Por sorte a chave estava na porta.

            Assim que as meninas colocaram os pés na casa, ouviram um barulho…

            — Miaaauuuuuu!

     —      É a Sonjinha!!! – explodiu de alegria a Mariana.

            — Acho que o som veio dali – disse a Taís.  

            As meninas foram andando sempre de mãos dadas pela sinistra casa.  Os miados continuaram, agora mais fortes, agora de todos os quatro gatinhos.  Finalmente descobriram onde o malvado Ubaldo Canastra os havia escondido: presos numa gaiola dentro do banheiro.

            Assim que os gatinhos viram as corajosas meninas, eles começaram a miar, principalmente a Sonjinha e o Dunguinha.  As garotas soltaram os gatinhos.  A Gabriela pegou o Elvis no colo, a Jujuba ficou com o Virgulino, a Taís carregou a Sonjinha e o Dunguinha.  

            — Meninas, vocês vão indo na frente.  A gente tem de preparar uma surpresa pra esse malvado Ubaldo Canastra – disse a Ana Maria.

            — O que vocês vão fazer? – quis saber a Gabriela.

            — Depois você vai saber – disse a Mariana.

            As amigas das gêmeas, então, saíram da casa carregando todos os gatinhos.  Lá fora estavam as outras crianças esperando ansiosas pelas cinco meninas.  Mas só apareceram três.

            — Onde estão as gêmeas? – perguntaram todos quase ao mesmo tempo.

            — Elas já estão vindo.  Foram preparar uma surpresa pro Ubaldo Canastra – explicou a Gabriela.

            O tempo foi passando, passando…  Dez minutos!  Quinze minutos!  Vinte minutos!  

            — O Ubaldo Canastra está voltando, galera! – anunciou o Iago.

            — Temos de avisar as gêmeas! – disse a Jujuba.

            Mas não foi preciso chamá-las, pois antes mesmo do malvado raptor de gatinhos aparecer na rua, as duas irmãs saíram triunfantes da casa.  Aí, todos correram para debaixo da amendoeira que ficava em frente à casa da jujuba.

            — O que vocês fizeram lá dentro? – perguntou o Iago.

            — A gente colocou água no balde.  Depois o pusemos em cima da porta do quarto do Ubaldo. E espalhamos as ratoeiras pelo chão – respondeu a Ana Maria. 

            — Ué, mas pra que vocês fizeram isso? – perguntou a Amanda.

            Mas antes que uma das gêmeas respondesse, a criançada ouviu vários gritos vindos da casa do final da rua.  Logo após surgiu o malvado Ubaldo Canastra todo molhado e com cinco ratoeiras penduradas pelo corpo: uma em cada mão, uma em cada orelha e uma pendurada no nariz de batata.  A criançada caiu na gargalhada.  E essa foi a última vez que todos naquela rua viram aquele homem malvado que, segundo as pessoas, pegava gatinhos para fazer churrasquinho e tamborim.  

As duas irmãs continuam morando na mesma rua, uma rua sem saída, num bairro bem distante, numa cidade bem grande, num país chamado Brasil.  Talvez seja até uma rua bem parecida com a sua.

Eduardo Martínez

Eduardo Martínez. Foto por Irene Araújo
Eduardo Martínez. Foto por Irene Araújo

Eduardo Martínez é um premiado escritor carioca, mas mora em Porto Alegre, cidade pela qual é apaixonado. Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos com “57 Contos e crônicas por um autor muito velho”, que saiu pela Joanin Editora.

Seu primeiro livro, o romance “Despido de ilusões”, 2004, figurou entre os mais lidos do Centro Cultural Banco do Brasil. 

Seus contos e crônicas, que já ultrapassaram a incrível marca de 1.000 publicações, são utilizados por escolas no Rio de Janeiro, em Brasília e em Brodowski-SP. É cronista/contista do jornal Notibras (https://www.notibras.com/site/) e do Blog do menino Dudu (https://blogdomeninodudu.blogspot.com/).

Divide a editoria Café Literário do Notibras com o poeta e escritor Daniel Marchi e a jornalista e poeta Cecília Baumann.

Instagram: @escritoreduardomartinez

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O Natal iluminado da Vekinha

Verônica Moreira

Conto infantil ‘O Natal iluminado da Vekinha’

Verônica Moreira
Verônica Moreira
Conto infantil ‘O Natal iluminado da Vekinha’

Era uma vez, na amada Rua do Sapo — cercada por cafezais, mangueirais e um perfume doce de terra molhada — que a pequena Vekinha aguardava ansiosa pela noite de Natal.

Ela sabia que aquela data celebrava o nascimento do Menino Jesus, e seu coração se enchia de ternura cada vez que ouvia a história da estrela que guiou os três reis magos até a manjedoura. Para Vekinha, o Natal era mais do que presentes: era o momento mágico em que a família se aproximava um pouco mais, depois de um ano inteiro de muito trabalho.

Quando dezembro chegava, tios, primos, avós e vizinhos passavam a andar mais devagar, como se o espírito natalino soprado pelo vento lembrasse a todos que nascer — assim como Jesus nasceu — é sempre motivo para comemorar.

E Vekinha amava comemorar. Amava ainda mais fazer as pessoas sorrirem.

Por isso, naquela tarde serena, ela escreveu uma carta para o Papai Noel. Acreditava, do fundo do coração, que o bom velhinho era uma forma carinhosa do Papai do Céu visitar as crianças. E por isso fez seus pedidos com toda a pureza do mundo.

A carta de Vekinha

“Querido Papai Noel,

Nesta véspera de Natal, eu gostaria de pedir um presente especial. Mas não quero escolher — quero surpresa! Um presente que me faça muito feliz.

Não tenho lista… Na verdade, só preciso que o senhor traga minha família inteira para alegrar o meu Natal. Que meus tios, priminhos e meus irmãos estejam todos comigo.

Queria que a vovó Cirene trouxesse doce de leite, cocada e pé de moleque. Que a tia Tonha trouxesse rapadura e fizesse puxa-puxa para todos nós.

Queria também que a mamãe preparasse quibe cru, porque nunca pode faltar, já que não temos dinheiro para comprar peru.

Ah, e eu queria tanto tomar Guaraná Antarctica… o senhor sabe o quanto eu amo Guaraná.
Acho que pedi tudo. Mas, se eu tiver esquecido de alguma coisa, sei que o senhor conhece meu coração.
Ah, Papai Noel, preciso lhe contar uma coisa incrível…

Este ano nossa cidade recebeu um presente especial! Nosso prefeito, Dr. Giovanni, buscou recursos e, com a ajuda dos artistas e moradores, deixou a cidade inteira iluminada. A mamãe e o papai prometeram nos levar para conhecer sua casinha de Noel.

Dizem que o coreto tem um trenó enorme e que o senhor está lá, esperando o momento certo de espalhar presentes e amor por toda a cidade!

Meu tio Jadir comprou alguns presentes para nós, e sei que será algo muito especial. Ele sempre acerta.
Termino pedindo que todas as crianças da nossa cidade — e do mundo — sejam muito amadas.
Até o Natal, espero tirar uma foto no seu trenó.

Abraço da Vekinha.”

Ao terminar a carta, Vekinha correu para a sala, radiante. Já imaginava como seria a praça iluminada. Mal podia esperar para ver tudo de perto!

— Mamãe, vamos agora? Eu tô tão ansiosa! — disse, quase pulando.

A mãe sorriu e perguntou:

— Filha, o que você gostaria de ganhar neste Natal?

— Ah, mamãe… é segredo! Já contei tudo para o Papai Noel. Deixei a carta no meu sapatinho, na janela, como o papai ensinou.

Dona Conceição ficou curiosa, mas respeitou o mistério, sabendo que o papai também esperava o momento certo para espiar aquela cartinha cheia de amor.

Naquela noite, a família inteira saiu para ver a cidade iluminada. A praça estava mágica, brilhante como nunca antes. Havia renas, bonecos de neve, carinhas simpáticas, um balão para fotos e o grande presépio, onde Vekinha fez uma pequena oração ao ver José, Maria e o Menino Jesus na manjedoura.

O trenó no coreto parecia ter vindo diretamente do Polo Norte. Fotógrafos ajudavam as famílias a registrarem a magia para sempre. Caratinga estava tão linda que até turistas vieram de longe para ver o brilho daquele Natal.

Depois de caminhar encantada, a família tomou um lanche no Bob’s e voltou para casa, com o coração feliz e a alma leve.

A véspera encantada

Todos colocaram seus sapatinhos com cartinhas na janela. E, quando dormiram, Papai Noel — silencioso como o vento — leu cada pedido com carinho.

Na manhã seguinte, as cartas haviam sumido. Os sapatinhos continuavam lá, mas agora a magia tinha começado. Faltavam apenas algumas horas para o presente chegar.

À noite, a casa se encheu: tio Jadir, vovó com seus doces, vovô com sua bengala de martelo, tia Tonha com o puxa-puxa e tantos outros amigos. O Natal brilhou em cada sorriso.

Depois da ceia, todos foram dormir ansiosos.

Vekinha adormeceu abraçada à boneca Papinha que ganhou do tio Jadir. Sonhou com estrelas, trenós e risadas suaves de anjos.

Até que…

O galo cantou. Quatro horas da manhã.

Vekinha saltou da cama, correu à janela e lá estavam: seus presentes e os dos irmãos, todos no lugar dos sapatinhos.

Ela abriu o dela e encontrou uma boneca igualzinha a ela — até o nome era Vekinha! Feita com tanto carinho que parecia ter sido moldada pelo próprio espírito do Natal.

Vekinha cantou feliz:

“Deixei meu sapatinho
na janela do quintal…
Papai Noel deixou
meu presente de Natal…”

Os irmãos acordaram com o canto e correram para ver os próprios presentes. Cada um recebeu exatamente o que havia pedido.

E assim, entre abraços, risos e cantorias, nasceu o Natal mais iluminado da vida de Vekinha.

Fim

Verônica Moreira

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A cidade das máscaras partidas

Clayton alexandre Zocarato

Conto ‘A cidade das máscaras partidas’

Clayton Alexandre Zocarato
Clayton A. Zocarato
Imagem criada por IA do Grok

A cidade sempre foi uma cerimônia silenciosa. As pessoas caminhavam com passos iguais, ritmos iguais, rostos iguais. Não por natureza — mas por medo.

Eudoro, desde cedo, percebeu que a cidade só acolhia os que ofereciam um brilho sem fendas, uma docilidade sem hesitações, uma identidade sem rachaduras. E por isso, um dia, quando a exigência tornou-se insuportável, ele aceitou a máscara. 

Não uma máscara comum, mas um espelho vivo: um rosto oferecido à multidão, moldado pela fome invisível de ser aceito. Ele acreditava que a máscara era um instrumento. Não sabia que ela era um pacto.

Durante algum tempo, foi glorificado. A cidade o vestiu de aplausos, como quem veste um cordeiro de ouro para ocultar o medo da própria miséria. Filóstrato, o sacerdote da aparência, o guiava como guia um ator: 

“Mostra o que eles querem ver, Eudoro. A autenticidade é uma ousadia indecente. A máscara é o que protege.”

Eudoro acreditou.

No início, acreditou com a inocência dos que querem apenas pertencer. Mas a máscara, nutrida pelos desejos alheios, cresceu. Falava mais do que ele. Respirava antes dele. E um dia, no silêncio da noite, seu próprio eco já não obedecia ao seu passo.

Foi então que Lisandra surgiu — filósofa indesejada, amiga do que é nu, amante do que é verdadeiro. Ela não trouxe soluções. Trouxe apenas perguntas. E estas, quando chegam ao coração dos mascarados, doem mais que golpes.

“Quem és tu, Eudoro?”, ela lhe perguntou.

Ele, porém, não soube responder. A máscara respondeu por ele — e mentiu.

O banquete da cidade, certo dia, transformou-se em arena. Todos os olhares repousavam sobre o rosto impecável de Eudoro, e, mesmo assim, algo em seu peito implodiu. A máscara pulsou como um animal ferido, tentando dominar o que restava dele. E Eudoro fugiu, tropeçando entre colunas antigas, até encontrar a estátua esquecida de Aletheia, a deusa da verdade.

Ali, seu eco — aquela sombra da alma que o acompanhava desde a infância — finalmente falou. E não pediu. Acusou. Acusou-o de ter traído a criança que foi. Acusou-o de ter preferido aplausos a autenticidade. Acusou-o de ter deixado que o medo escolhesse por ele.

Eudoro caiu de joelhos. A máscara advertiu: “Sem mim, tu não sobrevives.”

Filóstrato ordenou: “Sem a máscara, tu és ameaça.”

A multidão sussurrou: “Sem ela, não confiamos.”

Lisandra, porém, sussurrou outra coisa: “A verdade dói, Eudoro. Mas a mentira te consome.”

E foi nessa fissura — entre o medo e o possível — que ele pela primeira vez tentou arrancá-la.

A máscara, agarrada à pele, gritou como fera que enfrenta a morte. Mas cedeu. E rachou.

A cidade viu. E a cidade, ao ver, temeu. pois nada assusta mais o coletivo do que um indivíduo que deixa de representar.

Na manhã seguinte, a ágora inteira estava tomada. Cidadãos erguiam dedos acusadores, como se o rosto de Eudoro — humano, imperfeito, vulnerável — fosse uma heresia. Filóstrato discursou como quem protege a ordem: “Se ele pode tirar a máscara, todos podem. E se todos podem, quem poderemos ser nós?”

O pavor se espalhou como peste — não o pavor de Eudoro, mas o pavor de reconhecerem-se como igualmente mascarados.

Então Eudoro falou.

Pela primeira vez, falaram seus pulmões, e não a máscara.

“Vocês temem que eu mude… porque não suportam mudar também.”

A multidão recuou.

Mas o decreto veio: exílio.

A cidade não suporta quem abandona o teatro social.

Lisandra quis segui-lo.

Ele recusou — não por desamor, mas por gratidão.

“Tu ficas, Lisandra. Ensina-os a pensar. Eu vou, porque preciso aprender a existir.”

E no centro da praça, sob a noite que parecia uma ferida aberta, Eudoro largou no chão as duas metades de sua máscara. Filóstrato gritou, como quem vê um templo ruir. A multidão silenciou, como testemunha de um crime sagrado. Mas Eudoro sorriu — um sorriso sem espetáculo, sem plateia, sem aprovação.

“Ser eu mesmo custou tudo”, murmurou. “Mas tudo que perdi… eu já não era.”

E caminhou rumo ao escuro.

Sem rosto artificial.

Sem testemunhas.

Sem aplausos.

E, pela primeira vez, sem medo.

A cidade, atrás dele, respirava fundo — não em alívio, mas em ameaça, pois agora sabiam: a liberdade era possível. E nada é mais perigoso que um homem que provou a si mesmo.

O Coro acompanhou sua partida com um canto grave: *“O homem que retira a própria máscara não desafia o mundo — desafia a si mesmo. E, ao derrotar sua mentira,

enfrenta o único destino humano: aquele que não cabe no rosto que lhe deram, mas no rosto que descobriu que tem.”*

Então as tochas se apagaram. Eudoro desapareceu entre sombras.

Mas sua ausência ressoou. Sua coragem tornoA cidade sempre foi uma cerimônia silenciosa.
As pessoas caminhavam com passos iguais, ritmos iguais, rostos iguais.
Não por natureza — mas por medo.

Eudoro, desde cedo, percebeu que a cidade só acolhia os que ofereciam um brilho sem fendas, uma docilidade sem hesitações, uma identidade sem rachaduras. E por isso, um dia, quando a exigência tornou-se insuportável, ele aceitou a máscara.
Não uma máscara comum, mas um espelho vivo: um rosto oferecido à multidão, moldado pela fome invisível de ser aceito.

Ele acreditava que a máscara era um instrumento.
Não sabia que ela era um pacto.

Durante algum tempo, foi glorificado. A cidade o vestiu de aplausos, como quem veste um cordeiro de ouro para ocultar o medo da própria miséria. Filóstrato, o sacerdote da aparência, o guiava como guia um ator:
Mostra o que eles querem ver, Eudoro. A autenticidade é uma ousadia indecente. A máscara é o que protege.”

Eudoro acreditou.
No início, acreditou com a inocência dos que querem apenas pertencer.
Mas a máscara, nutrida pelos desejos alheios, cresceu. Falava mais do que ele. Respirava antes dele. E um dia, no silêncio da noite, seu próprio eco já não obedecia ao seu passo.

Foi então que Lisandra surgiu — filósofa indesejada, amiga do que é nu, amante do que é verdadeiro. Ela não trouxe soluções. Trouxe apenas perguntas. E estas, quando chegam ao coração dos mascarados, doem mais que golpes.

“Quem és tu, Eudoro?”, ela lhe perguntou.
Ele, porém, não soube responder.
A máscara respondeu por ele — e mentiu.

O banquete da cidade, certo dia, transformou-se em arena. Todos os olhares repousavam sobre o rosto impecável de Eudoro, e, mesmo assim, algo em seu peito implodiu. A máscara pulsou como um animal ferido, tentando dominar o que restava dele. E Eudoro fugiu, tropeçando entre colunas antigas, até encontrar a estátua esquecida de Aletheia, a deusa da verdade.

Ali, seu eco — aquela sombra da alma que o acompanhava desde a infância — finalmente falou.
E não pediu. Acusou. Acusou-o de ter traído a criança que foi. Acusou-o de ter preferido aplausos a autenticidade. Acusou-o de ter deixado que o medo escolhesse por ele.

Eudoro caiu de joelhos.
A máscara advertiu: “Sem mim, tu não sobrevives.”
Filóstrato ordenou: “Sem a máscara, tu és ameaça.”
A multidão sussurrou: “Sem ela, não confiamos.”

Lisandra, porém, sussurrou outra coisa:
“A verdade dói, Eudoro. Mas a mentira te consome.”

E foi nessa fissura — entre o medo e o possível — que ele pela primeira vez tentou arrancá-la.
A máscara, agarrada à pele, gritou como fera que enfrenta a morte. Mas cedeu. E rachou.

A cidade viu. E a cidade, ao ver, temeu., porquanto nada assusta mais o coletivo do que um indivíduo que deixa de representar.

Na manhã seguinte, a ágora inteira estava tomada. Cidadãos erguiam dedos acusadores, como se o rosto de Eudoro — humano, imperfeito, vulnerável — fosse uma heresia. Filóstrato discursou como quem protege a ordem: “Se ele pode tirar a máscara, todos podem. E se todos podem, quem poderemos ser nós?”

O pavor se espalhou como peste — não o pavor de Eudoro, mas o pavor de reconhecerem-se como igualmente mascarados.

Então Eudoro falou. Pela primeira vez, falaram seus pulmões, e não a máscara: “Vocês temem que eu mude… porque não suportam mudar também.”

A multidão recuou. Mas o decreto veio: exílio. A cidade não suporta quem abandona o teatro social.

Lisandra quis segui-lo. Ele recusou — não por desamor, mas por gratidão. “Tu ficas, Lisandra. Ensina-os a pensar. Eu vou, porque preciso aprender a existir.”

E no centro da praça, sob a noite que parecia uma ferida aberta, Eudoro largou no chão as duas metades de sua máscara. Filóstrato gritou, como quem vê um templo ruir. A multidão silenciou, como testemunha de um crime sagrado. Mas Eudoro sorriu — um sorriso sem espetáculo, sem plateia, sem aprovação.

“Ser eu mesmo custou tudo”, murmurou. “Mas tudo que perdi… eu já não era.” E caminhou rumo ao escuro. Sem rosto artificial. Sem testemunhas. Sem aplausos. E, pela primeira vez, sem medo.

A cidade, atrás dele, respirava fundo — não em alívio, mas em ameaça, pois agora sabia: a liberdade era possível. E nada é mais perigoso que um homem que provou a si mesmo.

O Coro acompanhou sua partida com um canto grave: *“O homem que retira a própria máscara não desafia o mundo — desafia a si mesmo. E, ao derrotar sua mentira, enfrenta o único destino humano: aquele que não cabe no rosto que lhe deram, mas no rosto que descobriu que tem.”*

Então as tochas se apagaram. Eudoro desapareceu entre sombras. Mas sua ausência ressoou. Sua coragem tornou-se ferida e profecia. E a cidade, pela primeira vez, sentiu-se nua, porque, diante de um homem inteiro, todos os mascarados tremem.u-se ferida e profecia.

E a cidade, pela primeira vez, sentiu-se nua, porque, diante de um homem inteiro, todos os mascarados tremem.

Clayton Alexandre Zocarato

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Uma Tênue Linha

O fio invisível que une gerações

Uma tênue linha
Uma tênue linha

Há linhas que costuram mais do que tecidos — costuram histórias, memórias e destinos.

É assim que a escritora Sandra Lugli define “Uma Tênue Linha”, sua obra de estreia: um livro de 17 contos que mergulha nas relações humanas e no delicado elo que conecta cada pessoa à sua própria origem.

Ítalo-brasileira, nascida em São Paulo e moldada entre Portugal e a Itália, Sandra carrega em si o mosaico de duas culturas e a curiosidade de quem busca entender de onde veio para compreender quem é.

Sandra Lugli
Sandra Lugli

Química de formação, empresária, mãe e esposa, ela sempre manteve a arte e a literatura como refúgios de expressão e pertencimento.


“A partir da pesquisa sobre minha ancestralidade genética, tudo começou a fazer sentido — os gostos, as escolhas, até as emoções. Foi como se eu finalmente reconhecesse a linha que me liga aos meus ancestrais.”

Sandra Lugli


Essa descoberta foi o ponto de partida para “Uma Tênue Linha”, uma coletânea de contos sobre amizade, família e os laços invisíveis que nos moldam mesmo quando não percebemos.

Cada história nasce de vivências ou observações, transformadas em reflexões sobre o tempo, a herança emocional e o que permanece em nós, mesmo depois das gerações passarem.

Mais do que uma obra literária, o livro é um convite à introspecção, a olhar para dentro e para trás, e perceber que talvez nada seja por acaso.

Com escrita sensível e olhar maduro, Sandra Lugli celebra, em palavras, o poder da memória e o mistério da continuidade.

Porque, afinal, a vida também é isso: uma tênue linha que nos atravessa e nos conecta, de ontem até sempre.

REDE SOCIAL DA AUTORA

UMA TÊNUE LINHA

SINOPSE

​​​Narrativa detalhada, sensível e fluida, leva o leitor a refletir sobre identidade e laços interpessoais e a procurar beleza e esperança, mesmo nos momentos mais desafiadores.

Assista à resenha do canal @oqueli no YouTube

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Resenhas da colunista Lee Oliveira




Vekinha em… Aprendendo a ser ninja

Verônica Moreira: ‘Vekinha em… Aprendendo a ser ninja’

Verônica Moreira
Verônica Moreira
Vekinha em... Aprendendo a ser ninja. Imagem criada por IA
Vekinha em… Aprendendo a ser ninja. Imagem criada por IA

Era sempre ao anoitecer que ele começava a aprontar, e Vekinha já conhecia bem as travessuras do pequeno ninja Mizinho, como todos o chamavam. Jamir, o Mizinho, adorava assustar as pessoas à sua volta, e era ao cair da noite que ele armava as mais inusitadas ‘armadilhas ninja’, como ele chamava suas travessuras.

Certa vez, enquanto Vekinha brincava no quintal, fazendo cabaninhas com suas amiguinhas, Mizinho subiu no grande pé de ameixas que ficava perto da varanda da cozinha de dona Conceição. Margarida, a tia de Mizinho e Vekinha, estava cozinhando feijão no fogão a lenha. Quando, de repente, “cabrummm!” O telhado da varanda cedeu com um estrondo. Tia Margarida veio correndo, assustada, gritando:
— Menino maluco, quer matar todo mundo de susto! O que você tá fazendo em cima desse telhado?

Mizinho, pendurado nas vigas, quase caindo em cima da panela de pressão, foi salvo por tia Margarida, que o puxou pelas pernas. Assim que desceu, como se nada tivesse acontecido, ele começou a escalar a parede do quintal de novo.

— Mizinho, posso brincar com você? — perguntou Vekinha, com os olhinhos brilhando de curiosidade.

— Não, Vekinha. Isso é muito perigoso, coisa pra ninja. E você não é ninja — respondeu ele, sem pensar duas vezes.

Mas naquela noite, algo mudou. Mizinho olhou para a irmã mais nova e percebeu o quanto ela queria estar com ele, não só para brincar, mas para aprender e partilhar daquele mundo misterioso e emocionante dos ninjas que ele tanto gostava de inventar.

— Sabe, Vekinha, ser ninja não é só subir em telhados ou fazer travessuras — disse Mizinho, sentando-se ao lado dela. — Um verdadeiro ninja protege as pessoas que ama e não faz coisas que possam machucar os outros… ou a si mesmo.

Vekinha olhou para ele, surpresa com as palavras do irmão.

— Eu posso te ensinar a ser uma ninja também, mas tem que prometer que nunca vai fazer nada perigoso, como subir no telhado sem a supervisão de um adulto. Ser ninja é ser esperta, cuidadosa e responsável.

Vekinha sorriu, concordando com um aceno de cabeça.

Nas semanas seguintes, Mizinho ensinou a Vekinha alguns truques de “ninja”, como ser ágil, pensar rápido e como usar a imaginação para criar jogos divertidos, sem colocar ninguém em perigo. Eles brincavam de atravessar o quintal sem serem vistos, saltando por entre as árvores, construindo “fortalezas secretas”, e inventando códigos secretos. A pequena Vekinha sentia-se parte de algo especial, e Mizinho, por sua vez, ficou feliz em perceber que cuidar da irmã era mais importante do que qualquer travessura.

E assim, em vez de subir no telhado ou pregar sustos, Mizinho e Vekinha aprenderam juntos que o verdadeiro espírito de um ninja não está em aventuras perigosas, mas em usar a inteligência, o respeito e o cuidado com os outros.

No fim, Mizinho virou para Vekinha e disse:

— Agora você é uma ninja, mas sempre lembre: o maior poder de um ninja é saber quando não arriscar.

Vekinha sorriu, entendendo a lição. E a partir daquele dia, as brincadeiras dos dois se tornaram ainda mais divertidas — e muito mais seguras.

Verônica Moreira

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Sob o cheiro do sabão e da terra

Clayton Alexandre Zocarato

Conto: ‘Sob o cheiro do sabão e da terra’

Clayton Alexandre Zocarato
Clayton A. Zocarato
Imagem criada por IA do Grok
Imagem criada por IA do Grok

No coração do interior paulista, onde o café crescia como mato e o tempo escorria devagar entre o tilintar das xícaras de esmalte e o barulho seco do pilão, vivia-se uma velhice que não pedia licença para chegar. 

Ela vinha aos poucos, silenciosa, dobrando as costas, rareando os cabelos, afiando os ossos como se o corpo quisesse voltar ao pó antes da hora.

Era assim com dona Giuseppina, a nonna, que um dia fora moça de tranças longas, vinda da Lombardia com o pai e as irmãs, fugida da fome e das guerras pequenas. 

Agora, velha, tornara-se parte da paisagem — mais antiga que a casa de taipa, mais resistente que o tronco do cafeeiro.

Os banhos de Giuseppina eram um ritual. 

Naquela época, início dos anos 1940, não havia encanamento nem banheiro no sentido moderno; o banho era tomado no balde de ferro, sob o sol do terreiro, ou na cozinha, onde o calor do fogão a lenha aquecia a água em tachos fumegantes. 

A neta, Lina, era quem ajudava. 

Com o cuidado das mãos novas, ela despejava a água quente nas costas da avó, e o vapor subia como se quisesse carregar junto o cansaço dos anos.

Giuseppina falava pouco durante o banho.

Ficava ali, sentada no banquinho de madeira, os joelhos salientes, o corpo cheio de marcas — cada mancha, uma história; cada veia, um fio de memória. 

A pele, enrugada e fina, lembrava o papel de pão que embrulhava o café moído para vender na feira. 

E, enquanto Lina ensaboava as pernas da avó com o sabão de cinza feito em casa, o cheiro forte de soda e gordura misturava-se ao aroma doce do café secando no terreiro, compondo uma sinfonia que era, ao mesmo tempo, doméstica e sagrada.

A casa era simples, mas cheia de sinais de fartura de outros tempos: o relógio parado na parede, as imagens de santos trazidas da Itália, o baú de madeira escura onde se guardavam lençóis bordados e cartas amareladas.

Lá fora, o terreiro se estendia em vermelho e verde — grãos maduros e outros ainda verdes, secando sob o sol do interior. 

O som das peneiras, o rolar dos grãos, as vozes dos colonos italianos e caboclos misturados faziam da fazenda um pedaço de mundo.

Aos domingos, depois da missa, as mulheres se reuniam na cozinha grande para preparar o almoço: macarrão feito à mão, frango ensopado, pão de milho e vinho ralo. Era tradição — o domingo não existia sem o cheiro do molho e o barulho das panelas. 

E Giuseppina, mesmo já cansada, fazia questão de comandar tudo: dizia quantos ovos iam na massa, a hora certa de escaldar o frango, e, no fim, abençoava a mesa com um gesto lento, como quem reza para que o tempo não leve embora as pequenas certezas da vida.

Mas o corpo dela, teimoso, começava a pedir descanso. 

As pernas inchavam, o olhar se perdia.

Às vezes, falava em italiano, lembrando da neve que cobria os campos da infância, das oliveiras e das procissões com velas.

Ninguém mais entendia bem o que ela dizia — o idioma da memória é sempre outro, incompleto e vago. 

Lina, mesmo sem compreender as palavras, respondia com carinho, secando-lhe o cabelo com a toalha grossa e dizendo que logo o verão passaria, que o calor cansava a todos.

O tempo, porém, não passava para Giuseppina. 

Ele se acumulava, pesado, no corpo e nas lembranças.

Até que, numa manhã sem vento, ela não quis mais o banho. Disse apenas:

— Hoje, não precisa, Lina. A água pode esperar.

Foi o presságio.

Naquela noite, o corpo velho de Giuseppina, cansado de resistir, adormeceu para não acordar mais. 

A notícia correu pelas colônias, espalhando-se como cheiro de café torrado: “A nonna Giuseppina se foi.”

Mas, ali, não havia funerária, nem caixão comprado.

No interior de São Paulo daquele tempo, a morte ainda era um assunto doméstico.

O corpo ficava na sala, coberto por um lençol branco bordado por ela mesma. As mulheres preparavam o defunto com o mesmo zelo com que preparavam o pão: lavavam-no com água morna, penteavam-lhe os cabelos, vestiam-no com a melhor roupa. 

Lina, com as mãos trêmulas, repetiu o gesto dos banhos, só que agora o corpo não respondia.

Enxugou o rosto da avó com o mesmo pano de outrora, como se a limpeza pudesse manter viva a lembrança do calor que ali existira.

Os homens, do lado de fora, construíam o caixão de tábuas de cedro.

Pregos, martelo, vela — tudo improvisado, mas feito com uma devoção silenciosa. 

O velório durou a noite inteira.

Rezar o terço era tradição, e as vozes se erguiam compassadas, mesclando português arrastado e italiano antigo.

O padre só chegaria dois dias depois, então coube às mulheres cuidar da alma da falecida, entre cânticos, lamúrias e o cheiro doce das flores colhidas no quintal.

Quando o sol nasceu, o enterro seguiu a pé até o pequeno cemitério, atrás da igreja, ladeado de eucaliptos altos. 

Os homens carregavam o caixão nos ombros; as mulheres, de preto, vinham atrás, rezando. 

A terra fofa do interior paulista abriu-se para receber mais um corpo, mais uma história.

Não havia mármore, apenas uma cruz de madeira com o nome e o ano: Giuseppina Bianchi, 1867 – 1944.

Lina ficou por último. 

Levou consigo a bacia de ferro usada nos banhos e um pedaço do sabão de cinza, agora endurecido. 

Colocou-os ao lado da cruz e murmurou, quase em segredo:

— Pra senhora continuar limpinha, nonna.

O vento passou entre os eucaliptos, levando consigo o cheiro da terra molhada e do café maduro.

O tempo seguiu, como sempre faz, cobrindo de esquecimento o que não se pode guardar inteiro.

Mas, nas manhãs seguintes, quando Lina aquecia a água no fogão e via o vapor subir, jurava sentir, por um instante, o mesmo cheiro de sabão e de pele antiga, o mesmo silêncio do corpo que um dia ensinou que a velhice não é o fim — é apenas o começo do retorno à terra.

E assim, entre o cheiro do sabão e da terra, o ciclo se completava: a água lavava, o fogo aquecia, e a terra guardava.

Era o jeito das coisas naquele tempo — simples, duro e cheio de dignidade.

Clayton alexandre Zocarato

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O Bandido do Lampião Vermelho

Eduardo Martínez

Conto ‘O Bandido do Lampião Vermelho’

Logo da seção O Leitor Participa
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Imagem criada pela IA da Meta em 05 de novembro de 2025, às 12:39 PM
Imagem criada pela IA da Meta em 05 de novembro de 2025, às 12:39 PM

O ano exato não se sabe, mas a maior parte das pessoas diz que aconteceu na década de 1920, em uma cidade do agreste nordestino. E, naquele tempo, era comum a população andar armada, o que transformava o lugar em um negócio rentável para o dono da única funerária por aquelas bandas. 

          Outra informação que se faz necessária é que, assim como na maior parte do país, a luz elétrica ainda não havia chegado ali, e os moradores precisavam recorrer a fogueiras, lamparinas e lampiões a querosene. Por causa da precária iluminação, o povo jantava antes do sol se pôr e, às 20h, tirando os casais mais empolgados, a cidade adormecia.

          Pois bem, muito antes daquele criminoso que assombrou a capital paulista no final dos anos 1960, um outro bandido andava levando pânico àquele pequeno povoado. O tal delinquente, por conta da falta de luz, fazia uso de um lampião de vidro vermelho, o que provocava um contraste macabro durante as noites escuras. Os moradores o apelidaram de Bandido do Lampião Vermelho.

          O facínora, além de roubar o pouco que aquela gente possuía, ainda molestava as donzelas, que, por costumes da época, precisavam ser mandadas para um convento, onde passavam a vida inteira rezando para se redimirem do pecado de terem sido violadas. Algumas não suportavam tal martírio e tiravam a própria vida, mas também há casos das que passaram a viver a vida das mulheres malfaladas. Duas ou três, todavia, conseguiram manter segredo da violação e contraíram matrimônio. Adestradas pela mãe, souberam ludibriar o noivo na noite de núpcias. 

          A despeito do terror que se abateu sobre a população, havia por ali um homem destemido, cujo nome ainda hoje ecoa nas histórias contadas. Genaro Cavalcante, charuto no canto da boca, garrucha na mão, cuspia bala para qualquer desaforado. O cabra andava arretado com esse marginal e prometeu dar fim ao sujeito assim que o encontrasse.

          Enquanto a promessa não era cumprida, o Bandido do Lampião Vermelho agiu novamente. O malfeitor, sorrateiramente, invadiu a casa da dona Francisca, esposa do Timóteo. Entretanto, pelo menos nesse caso, a coisa aconteceu em conluio com a mulher. É que, sem o conhecimento do marido, Francisca andava de namorico com o Bandido do Lampião Vermelho e, durante as noites que Timóteo saía para caçar, ela acolhia o amante debaixo dos lençóis.

          O esposo traído, talvez por conta da falta de caça ou, então, por desconfiança, acabou retornando mais cedo para casa. Assim que abriu a porta, ouviu alguns gemidos vindos do quarto. Arma em riste, correu para salvar a mulher das garras do salafrário. No entanto, antes que conseguisse chegar, o Bandido do Lampião Vermelho já havia fugido pela janela, mas deixou o lampião ao lado da cama.

          Francisca, amedrontada pela chegada de Timóteo, ajoelhou aos pés do marido e suplicou perdão. O esposo, imaginando que a mulher fosse mais uma vítima do marginal, acolheu-a nos braços. Em seguida, pegou o lampião no chão e prometeu vingar a honra da amada. 

          A esposa viu o marido sair, quando, não tardou, ouviu um tiro. Correu para fora e viu Timóteo caído a poucos metros da casa. Curiosos correram ao local, onde encontraram Genaro Cavalcante se vangloriando.

          — Prometi que ia matar o gatuno e matei. 

       Os moradores enalteceram a bravura do matador. Em terreiro de Genaro Cavalcante, ninguém se cria. Quanto ao verdadeiro Bandido do Lampião Vermelho, ninguém mais ouviu falar. A viúva de Timóteo, não tardou, também sumiu e, até onde se sabe, nunca se preocupou em dar notícias. 

Eduardo Martínez

Eduardo Martínez -  Foto por Irene Araújo
Eduardo Martínez
Foto por Irene Araújo

Eduardo Martínez é um premiado escritor carioca, que há mais de três anos mora em Porto Alegre, cidade pela qual é apaixonado. Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos com ’57 contos e crônicas por um autor muito velho’, que saiu pela Joanin Editora.

Seu primeiro livro, o romance ‘Despido de ilusões’, 2004, figurou entre os mais lidos do Centro Cultural Banco do Brasil. 

Seus contos e crônicas, que já ultrapassaram a incrível marca de 1.000 publicações, são utilizados por escolas no Rio de Janeiro, em Brasília e em Brodowski-SP.

É cronista/contista do jornal Notibras (https://www.notibras.com/site/) e do Blog do menino Dudu (https://blogdomeninodudu.blogspot.com/).

Divide a editoria Café Literário do Notibras com o poeta e escritor Daniel Marchi e a jornalista e poeta Cecília Baumann.

Instagram: @escritoreduardomartinez