Dona Dolíria morreu na faixa de pedestre. Ela queria apenas atravessar a rua com sua cestinha de legumes. Mas tinha alguém mais apressado que Dona Dolíria, e, quis passar na faixa enquanto ela atravessava. Não deu outra. Atropelou a pobre senhora. Os legumes e verduras ficaram espalhadas na pista. Mas Dona Dolíria caiu mortinha, exatamente na faixa. Nenhum carro podia passar. O trânsito ficou congestionado. O apressado que a atropelou, sequer parou para prestar socorro, o que seria em vão, a batida foi muito violenta, ela iria morrer mesmo antes de chegar o socorro, como de fato morreu. As pessoas curiosas desciam de seus carros parados na pista para espiar a morta. Ela estava perfeitinha. Nada sangrava, nada de fratura exposta, porém os legumes e verduras estavam amassados, ou em picadinhos. Os tomates e beterrabas esmagados deixavam dois riscos vermelhos arroxeados no asfalto, marcando o rastro das rodas do veículo. Muitos tapavam a boca, de súbito, crendo que a mulher tinha esgotado todo sangue do seu corpo. Mas logo percebiam no rosto da vítima um semblante sereno, plácido e até corado. Suas pernas estendidas, juntinhas, exibiam o solado das sandálias novas de couro, recém compradas. Os braços envoltos pela alça da cesta, em um dos lados do corpo. Dedos cruzados deixavam à mostra um anel de ouro 18 quilates com uma grande pedra de brilhante. Os cabelos, muito grisalhos e arrumados num coque, presos com uma presilha ‘bico de pato’, decorado com um laço branco de tafetá. Nenhum fiozinho sequer de cabelo escapava daquele coque.
Todos estavam atônitos. Olhavam-se, indagando se a mulher estava realmente morta.
— Não se aproximem! Por favor! — recomendava e gesticulava muito um guarda de trânsito que, coincidentemente, estava próximo ao local.
— Alguém já chamou o SAMU? Minha nossa senhora! – disse uma mulher descabelada, que descera de uma motocicleta.
— Sim, sim! Já solicitamos o SAMU, mas pelo que foi averiguado, não há mais nada a fazer. Ela já passou dessa pra melhor… — falava com um ar zombeteiro, o homem de um carro parado ao lado.
As pessoas se engalfinhavam, tentando ultrapassar o cerco para fotografar ou filmar o corpo de Dona Dolíria. Pisavam em repolho, pepino e tomates esmagados, chutavam cebolas, que ainda rolavam no asfalto.
O povo, aglomerado ao redor do corpo, parecia menos impactado e penoso com a situação e mais preocupado em fazer uma foto ou um vídeo da vítima, para lançar, de imediato, nas redes sociais. O Sol da manhã ardia sobre o asfalto, o suor pingava da testa dos guardas que faziam o cerco ao redor da morta. Eram muitos clics de todos os lados. Uma ou outra pessoa soltava uma exclamação:
— Oh! Ela nem parece estar morta! Está tão coradinha!
— Pois é… como pode, que tipo de pessoa maldosa é capaz de atropelar uma pobre velhinha, assim, na faixa de pedestre!?
Acrescentou outra:
— Nem sequer parou para dar assistência! Isso é uma crueldade com o próximo!
Nesse momento, chegou um homem de meia-idade, moreno claro e magro, vestido de jaleco branco e gravata de bolinha. Usava uma boina preta caída sobre um dos olhos. Parecia desesperado, falava alto e pedia para se aproximar da vítima:
— Saiam! Saiam da frente! Sou filho da vítima!
A roda foi abrindo-se para dar passagem ao homem, o qual parou ao lado do corpo da mulher, pôs as mãos na cintura e disse, impaciente:
— Chega mamãe! Já chega, pode levantar daí! Você já ficou famosa! Está passando em todos os telejornais! Prejuízo foi meu de ter que lavar a lambuzeira de legumes no meu carro!
A velha fincou os calcanhares no chão e levantou-se de uma só vez! Batia as mãos na roupa, para limpar o pó do asfalto.
— Você é um filho ingrato! Paguei-lhe muito bem para isso! Não estava combinado vir aqui atrapalhar minha imagem!
As pessoas em volta filmavam e fotografavam tudo. Houve quem colocou como título de uma postagem: “A anciã atropelada na faixa de pedestre ressuscitou milagrosamente”.
Uma fiandeira, sem ser incomodada pela dona da casa, ia fazendo pequenos reparos em seu refúgio de proteção e caça em um canto esquecido e mal iluminado da sala. Insociável, sua morada era apenas para uma. Invasores de teia alheia viravam presas antes de saborearem sobras.
Nas madrugadas, pelas paredes rosa antigo, lobos cinzas dançavam uma canção imaginária, arranhavam feridas e mastigavam sonhos furtados dos travesseiros, engolindo-os sem piedade.
Formigas persistentes, em fila indiana, marchavam no entorno de uma xícara de café frio do dia anterior.
As cortinas eram pesadas e pendiam das janelas como águias guardiães, por onde um raio se esforçava para entrar em qualquer cômodo e desenhar uma linha fina de sol no chão como um pequeno lembrete.
Do lado de fora, um gato de olhos ternos e remelentos miava há horas na soleira da porta como uma campainha teimosa. Desistiu e deu meia volta, pois talvez não houvesse realmente ninguém na casa. Mas Lara estava ali, dentro de um pijama listrado, ainda envolta em um casulo morno de tramas entrelaçadas de 300 fios, atrasando seu encontro com o dia – “mais um dia” – e olhando, indiferente, o sol quadrado timidamente esboçado sobre a mesinha de madeira cálida de cabeceira.
Goles solitários, dois cubos de açúcar em um café tingido com leite aquietavam, vez ou outra, as mesmas conversas matinais de uma alma ainda sonolenta.
O espelho nada dizia, nada revelava. “Por que as cicatrizes abertas são assim tão invisíveis e eu tenho que dizê-las, e dizê-las com hora marcada e boca amarga? Talvez se eu ficasse… Talvez se chovesse… Talvez se eu esperasse… Talvez se eu fugisse para os fundos do quintal…” Mas os ponteiros apressados e pontuais avisavam-na de que a vida continuaria, mesmo sem ela. Com passos tensos e hesitantes, abriu a porta e saiu.
Seus olhos, desabituados, rejeitavam a luz deste sol tão intenso como pássaros noturnos que encontram conforto e liberdade apenas na escuridão. A rua parecia-lhe terminar mais longe. Nesta prisão a céu aberto, nesse labirinto escaldante cheio de rostos embaralhados e corpos de coreografias confusas e descoordenadas, neste vai-e-vem de calçada, faltava-lhe o ar, os pés, o chão. Os veículos passavam rapidamente, mas o eco de uma ou outra buzina ficava ali dentro fazendo hora. O cheiro de fumaça de motor mesclado ao de comida de rua e de água de tantas colônias causava-lhe náusea. A rua era longe demais. A calçada estreita demais. Não havia atalhos. Uma prisão sem chave. Lara queria voltar. Queria desesperadamente voltar. Estava sendo levada por essa multidão que sequer conhecia seu local de destino.
Depois de uma eternidade e dez minutos, ela finalmente estava diante do prédio. Era um prédio de incontáveis andares, com olhos vigilantes de vidro, imponente, porém espremido entre outros arranha-céus. Entrou e encostou-se em uma das paredes metalizadas do elevador, cuja vista panorâmica ela fez questão de não olhar. Queria apenas respirar. Confinada e de mãos úmidas, ela queria só respirar.
Na antessala, o silêncio combinado seria interrompido logo mais com a chamada de seu nome completo. Lara verificou o relógio repetidamente. Fechou, abriu e fechou novamente a bolsa, apertando-a contra o corpo antes de desenlaçar as mãos das alças e acomodá-la ao lado. Seus joelhos balançavam involuntariamente, com os pés colados no chão.
Seus olhos atentos varriam o ambiente e moviam-se inquietos de um objeto para outro, incapazes de se fixarem em um único ponto. Ela notara cada imperfeição ao seu redor como se no ambiente inteiro ali houvesse uma conspiração silenciosa. As paredes tinham cores pálidas e a iluminação era fraca e insuficiente. As lâmpadas fluorescentes emitiam um zumbido baixo que a irritava.
Um discreto rasgo em uma das poltronas, algumas folhas amareladas e um galho seco entre os outros de uma planta, cujas raízes estavam obviamente sufocadas naquele vaso tão pequeno, e uma fissura em uma das paredes envolta em manchas abstratas perto do rodapé alimentavam um certo desconforto e melancolia.
Mas algo havia momentaneamente quebrado o ritmo dessa inquietação. Dois quadros intrigantes pendurados um de cada lado na parede fizeram seus olhos ancorarem ali por mais tempo, fazendo-a esquecer daquele relógio em frente que acelerava o tempo com um tique-taque constante: “Cajonera Doblada”, uma imagem de uma cômoda toda torta com gavetas escancaradas, e “O Gato no Divã de Freud”, cuja figura de um gato sobre um sofá, com o retrato de Sigmund Freud ao fundo, fez com que Lara desviasse o olhar rapidamente e se questionasse, duvidosa:“E Freud gostava de gatos?”
O silêncio havia sido interrompido finalmente. Seu nome foi chamado em voz alta.
Saindo do consultório sem milagres na bolsa, ela ajeitou as alças no ombro e alisou a blusa como ferro quente de passar. Um guarda-chuva azul marinho, pegado às pressas, foi sua sorte quando uma chuva repentina a surpreendeu na metade do caminho de volta para casa. Com as gotas grossas salpicando o asfalto, formando pequenos anéis que se expandiam entre os carros lentos de faróis acesos, a rua estava mais refrescada.
Na calçada com cheiro de café e toldos abertos, pessoas desprevenidas e apressadas, desviando se de poças aqui e ali, procuravam abrigo.
Poças… esses pequenos espelhos que tremem e que podem refletir, de forma invertida, pedaços do mundo ao redor. Ela encolheu-se ao fundo, debaixo de um toldo compartilhado, esperando em vão que a chuva se acalmasse.
Quando menina, com uma capa colorida e botas de plástico, corria escondida pela estradinha de chão batido molhado e quando avistava uma poça grande, com um sorriso travesso, pulava com força. “Splash!” A água saltava em todas as direções e ela ria alto, encantada com o espetáculo que acabara de criar, e dava outro salto.
Ela abriu novamente o guarda-chuva, inclinou-o para frente e prosseguiu engolindo o choro, enxugando os pingos insistentes dos olhos e lamentando feito criança que naquela sala onde esteve por mais de uma hora, não tivesse uma bola de cristal sobre a escrivaninha.
Ao chegar ao portão de ferro, meio ofegante e sentindo o peso do dia em seus ombros, ela soltou um suspiro profundo e empurrou-o com força. O rangido agudo, lembrando-a de que ele também precisava de manutenção, cortou a conversa que tivera mais cedo e que ainda ecoava em sua mente. Passou os pés no capacho de boas-vindas na porta morosamente, como se quisesse deixar a sujidade da rua e os pensamentos barulhentos todos ali. Girou a chave, fechou o guarda-chuva e a porta atrás de si, trancando o mundo lá fora.
No hall de entrada, as chaves, a bolsa e mais alguns pensamentos foram postos sobre o aparador, e o guarda-chuva molhado ao lado, dentro de um vaso vazio de chão.
Havia uma conexão íntima com seu habitat que lhe proporcionava a sensação acalmada de poder moldá-lo e mantê-lo sob seu controle. Havia um certo conforto na solidão, uma liberdade silenciosa que lhe permitia explorar seus próprios sentimentos sem pressa e fazer escolhas conscientes com as cortinas fechadas.
Mas, ultimamente, já não havia mais alívio nos espaços desguarnecidos como antes. As caixas empilhadas, que ela sequer abriu, ainda estavam à sua espera pelos cômodos. Tudo ali era motivo de descontentamento: os pratos sobre a pia, a poeira acumulada nos cantos, o ar estagnado, os dias muito longos de verão, as chuvas constantes, o velho guarda-chuva azul-marinho, as sombras acordadas em seu presente triste. “Para onde vai este barco se estou à deriva neste mar sem mapa, sem bússola?”
Seus olhos percorreram os quatro cantos dessa vida entre paredes, desse refúgio minado, dessa falta de prática de teorias confusas enquanto, entre um desassossego e outro, sentada no sofá, amassava com raiva as flores já secas da mesinha de canto. “Malditas aranhas invasoras e formigas inconvenientes de trilhas invisíveis! Maldito sol, chuva e este relógio barulhento! Malditos lobos que zombam de mim! Malditas mães que vão embora sem olhar para trás!”
Em um ímpeto, ela se levantou e foi até a janela. Abriu bruscamente a cortina espessa e se deparou com um chuvisco manso que batia suave e ritmado contra o vidro, criando pequenas gotas que tamborilavam e escorriam lentamente, calando por ora sua própria tempestade. Uma gota pingou de uma fenda no teto e ela franziu a testa e suspirou. “Aqui também necessita de reparos.”
Rodeada por poucas casas, ali era sua morada, com dualidades e passagens pouco confessáveis. Não se lavava pratos com escumas de lágrimas, tampouco a chuva fecharia fendas, ela sabia. Refugiar-se em páginas com histórias alheias também não lhe preencheria mais as tardes livres. Ela já não se lembrava mais do que gostava, do que fazia, de quem era ela. Tinha medo de voltar às suas gavetas e estragar as boas lembranças com esta vida sem temperos.
No entanto, no início da noite em seu quarto, sentada na poltrona ao lado da cama, seus olhos pousaram em uma caixinha antiga de música sobre o toucador, um presente de aniversário que ganhou da avó de uma amiga. Ao abri-la, uma melodia leve e familiar transportou-a para uma tarde ensolarada, onde brincava no quintal da amiga enquanto a avó cuidava de seu pequeno jardim e cantava acariciando pétalas e brotos.
No quarto, a penumbra era atenuada apenas pela claridade suave do abajur na mesinha de cabeceira. Ela se deitou, puxando o cobertor até o queixo. “Não sei rezar nem cantar. Meu coração não dança talvez por falta de novos motivos.”
O sono veio em fragmentos, breves momentos de descanso intercalados por despertares inquietos. Olhou ao redor do quarto, reparando nas sombras definidas das cortinas inertes mesmo com a brisa noturna e no livro aberto na prateleira. Naquela noite, pela primeira vez em muito tempo e sem perceber, ela havia deixado a janela e as cortinas semiabertas.
Ela acordou com os primeiros raios tímidos de sol entrando pelas frestas. Abriu as janelas de maneira ainda um pouco engessada após mais uma noite de sono intranquilo, permitindo ao ar fresco invadir seu aposento.
Preparou uma xícara de café forte e sentou-se à mesa, observando o movimento das silhuetas rendadas das folhas na parede.
O som distante do bairro despertando trouxe à mente de Lara as lembranças das manhãs frias em que acordava cedo para ir à escola. Era perto de casa, e ela atravessava sozinha um caminho de terra cercado por mato curto e geada antes de chegar à rua da escola primária, onde cursou o terceiro e quarto anos. Feita de madeira bem pintada, assim como muitas casas típicas das cidades do Sul onde morava, a escola era um lugar de descobertas, acolhimento e simplicidade. A merenda era uma sopa quente feita com ingredientes que os próprios alunos traziam de suas hortas nos fundos dos quintais, e ela ainda se lembrava do cheiro. Mesmo diante das dificuldades que sua pouca idade não percebia na época, ela tinha no coração a alegria da expectativa de mais um dia de aprendizado e recreio com seus coleguinhas de classe.
O estalido de duas torradas saltando da torradeira a trouxe de volta ao presente. Observar a manteiga derretendo lentamente sobre elas, douradas, com um pingo de mel, poderia ser algo trivial aos olhos de muitos, mas ali, em meio a um turbilhão de pensamentos, era um momento singular mesmo de breve contemplação.
No quintal dos fundos, recolhendo o que sobrou da chuva de ontem, ela regou as plantas esquecidas em um canto, retirando delas as folhas murchas e ervas daninhas. “As plantas são como crianças; sem cuidador, padecem.” Pisando em folhas secas e grama crescida, notando as nuvens um pouco carregadas e ouvindo ao longe o gorjeio de um pássaro, ela entrou em casa melancólica.
Enquanto uma música suave selecionada para preencher o ambiente tocava, ela tomou um banho morno e mais demorado que o de costume, como se desejasse encontrar clareza ali, nas espumas do sabonete.
De volta ao coração chuvoso da cidade, com seus contrastes interessantes que, ora revelavam beleza, sons, aconchego e dinamismo, ora revelavam a aspereza de sua alma pulsante em ruas vazias. Um relógio digital, compondo a paisagem urbana com relevância no topo de um poste,
avisava, além da temperatura e qualidade do ar, que havia vinte e cinco minutos livres. Passando pela mesma calçada de antes, ela não havia reparado ainda o Café La Vie en Douce. Seduzida pelas grandes janelas que permitiam ver o interior atraente e acolhedor, Lara, apesar de oscilante, entrou.
Café La Vie en Douceera um lugar encantador que combinava requinte e conforto, e possuía uma fachada clássica com janelões de vidro que proporcionava a entrada de luz natural e oferecia uma vista do movimento lá fora, onde pessoas e guarda-chuvas coloridos enfeitavam o cenário cinza metropolitano. Ela estava ali, sentada à janela, experimentando pela primeira vez um chai latte, cuja mistura de chá preto, especiarias e leite quente parecia perfeita para o clima. Ela ficaria horas contemplando as luminárias vintage que pendiam do teto e o som melódico de uma música francesa. Talvez saborearia um dos doces que o balcão exibia e se perderia no aroma morno dos croissants recém-assados, no burburinho e no fluxo constante dos pedestres que cruzavam a calçada ensopada, mas ciente de seu compromisso previamente agendado, resignada, levantou-se, ajeitou o casaco e saiu.
Minutos depois, ela chegou ao local onde seria atendida. Ao reparar melhor, percebeu que era um charmoso prédio comercial com sacadas que se destacavam na fachada, projetando-se graciosamente sobre a calçada. Cada uma era adornada com grades de ferro forjado, cujos desenhos intrincados lembravam arabescos antigos. Algumas possuíam vasos de plantas com flores pendentes, trazendo encanto ao cenário citadino e atraindo a atenção de quem passava pela rua, refletindo um esforço consciente dos proprietários e administradores para criar uma imagem positiva até mesmo em dias nublados.
À medida que o elevador panorâmico subia, após uma pequena vertigem inicial enquanto olhava o movimento das pessoas lá embaixo no átrio interno, ela se perguntou: “Quantas histórias de vida já passaram por aqui?”
Na antessala, notas frescas e muito leves de bergamota, dispersas por um elegante difusor de óleos essenciais, preenchiam o ambiente e sopravam “seja bem-vinda” a ela mais uma vez.
A espera era distraída pelo murmúrio suave de uma fonte de água sobre uma mesinha de apoio. Um sofá de dois lugares e duas poltronas gordas convidavam propositalmente corpos tensos ao aconchego.
Na mesinha de centro, cuidadosamente escolhidos, quatro livros sobrepostos e uma gaiola decorativa de porta aberta com uma pena de coloração alva em seu interior sugeriam leituras breves e múltiplas interpretações.
Uma palmeira, de raízes bem acomodadas, erguia-se até onde podia, dentro de um vaso alto azul atrás de uma luminária de chão, cujo facho bem diluído, não fazia sombras duras. Afastada do teto o bastante para se notar que estava pendurada, uma luminária discreta de vidro fosco, espalhava luz suave e uniforme.
A cômoda distorcida, com três gavetas semiabertas e uma fechada, talvez equilibrando a desordem e a delicadeza com pinceladas na cor rosa, e o gato preferido de Freud, sentado confortavelmente em seu sofá com o retrato de seu dono fumando um charuto à direita na parede ao fundo: aquelas duas telas, “Cajonera Doblada” assinada por Diego Manuel e “O Gato no Divã de Freud” de Maria Luziano, uma de cada lado da parede verde-lavado, contribuíam para um espaço único de conforto, com toques de personalidade e pontos de reflexão.
Na sala principal, um ambiente equilibrado para conforto e segurança, de onde não se ouvia ruído externo algum. Um sofá com uma manta dobrada, uma cadeira acolchoada ao lado, além de uma mesa de madeira quente pequena que encurtava distâncias e outra cadeira com braços. Sem a presença da cor branca, as cores pastéis davam-lhe a impressão agora de que o espaço era maior e se espalhavam pelas paredes e mobília de forma aconchegante. Desta vez, ela optou pelo sofá, ajeitando a manta próxima a si.
Três diplomas emoldurados na parede, atestavam a competência e a dedicação do profissional que ali a atendia. Uma foto discreta de família que não dizia muito.
Após 1 hora e 15 minutos, ela atravessou a antessala, despedindo-se da recepcionista com um aceno simpático.
Lara já não era mais o centro de sua própria atenção. Em sua bolsa a tiracolo trazia sugestões e possibilidades.
Havia que se observar o velho jornal ou a pasta executiva abrigando da chuva ternos-e-gravatas, tailleurs. A marquise do outro lado da calçada abraçando um músico solitário com seu violino nostálgico. A mãe apressada empurrando um carrinho de bebê bem protegido. As folhas grudadas no asfalto, um selo discreto de lábios enamorados. Um vendedor ambulante cobrindo com lona suas mercadorias, enquanto um braço infantil esticado ia colhendo pingos com a mão. Um cachorro minúsculo, com uma capa impermeável de super-herói, descansando no colo de alguém. Os “peixes-fora-d’água” saindo de táxis ou coletivos, pisando nas pontas dos pés como dançarinos que se desequilibram sem suas sombrinhas de apoio. Uma madame com cara de enjoada, protegida por um enorme guarda-chuva marrom com a marca em dourado de um hotel cinco estrelas, se dirigindo apressada, guiada pelo concierge que segurava o acessório com destreza e garbo, ao seu carro de luxo, ignorando esse caos poético ao seu redor.
Neste lugar, nesta cidade de mais encontros do que desencontros, de massa variada, com histórias idênticas e perspectivas de mudança, na esquina da Rua das Rosas com a Avenida Louis Lafayette, enquanto Lara atravessava, por iniciativa do céu e de alguma divindade, começou a chover mais grosso. Uma rajada de vento brincalhão soprou-lhe o guarda-chuva marinho do avesso e o arrancou de suas mãos. Ela riu, a princípio timidamente, sem jeito, sem olhar para os lados. Molhada até os ossos e encharcada de riso, ela engoliu a chuva, colheu os pingos com as mãos em concha e jogou-os no ar sem sentir vontade de apressar os passos ao ver seu velho guarda-chuva azul, com duas ou três varetas bem tortas, bicando desajeitado o asfalto já longe.
“O coração daquela menina, com botas e capa de chuva, que sempre brincava escondida na estradinha enlameada e pulava em poças, bateu feliz em mim. Estamos seguras agora,” pensou, enquanto sacudia a cabeça e ajeitava os cabelos molhados com um gesto gracioso.
Horas depois, já em casa, entrou em seu pequeno estúdio onde três telas à óleo, inacabadas, aguardavam finalizações para remessa. Em breve, retomaria.
Apenas apanhou dois potes pequenos de tinta, algumas lixas e rolinhos para pintura, deixando os separados para amanhã. Repaginará uma antiga cômoda com três gavetas, faltando-lhe um puxador, que havia adquirido recentemente em um mercado de pulgas, e trocará todos os puxadores já que não encontrou um igual aos outros dois.
O início da noite ia assim correndo, toda cheia de lembranças, outros confrontos e intenção de ressignificações. Lara percorria a sala de estar agradavelmente iluminada, ajustando a luz amarelada dos abajures, lembrando-se de palavras desidratadas, de olhares ameaçadores, castigos e ausências que a acompanharam na infância. Pensava em seus primeiros óculos aos sete anos cuja armação era em forma de olhos de gato com três pedrinhas em cada lado das hastes. Também pensava nos amores de escola, na vizinha de porta que fazia pão caseiro toda semana em forno à lenha, na vitrola tocando The Hollies e nas tardes em que se embonecava à sua maneira de menina-moça para os bailinhos com as amigas.
De uma brecha à direita da janela, um pequeno inseto espreitava, mas logo foi espantado e desaparece.
Flor de maracujá em saquinho dentro de uma xícara quente começa a encerrar a noite ali na cozinha.
Parir novas memórias para dissipar marcas profundas seria uma tarefa árdua e sem anestesias. Havia que se esquecer delas propositalmente e à conta-gotas para que seu passado não definisse seus dias correntes.
Há três meses, uma estação inteira, as feridas tinham sido reabertas, as mágoas remoídas e cuspidas sobre aquela escrivaninha pequena sem bolas de cristal, que encurtava distâncias, olho no olho e ouvidos atentos, com hora marcada.
Deitou-se, deixando o dia se dissolver gradualmente na maciez dos lençóis, enquanto se aconchegava na lembrança de que costumava dormir agarrada a uma boneca de pano de vestido rosa com rendinha na gola que ganhou da madrinha quando era criança.
O que se pode fazer quando o mundo parece ter mudado durante uma noite dessas? Talvez, abraçar as impermanências da vida, reconhecendo que cada amanhecer traz novas paisagens e surpresas?
As manhãs já não nasciam tardes ultimamente. A mansidão de sua casa, de paredes curvas, e a familiaridade dos objetos ao redor, acolhiam-na. Ali era o útero, as asas, os braços, a mão, o abrigo. Cada detalhe e canto da casa foram escolhidos e arranjados de uma maneira que refletia suas preferências pessoais e sua compreensão do que era reconfortante e seguro, apesar das sombras que às vezes ainda perpassavam seus pensamentos, mas ela os desafiava.
Reaprendendo a capturar a essência com olhos contempladores, Lara absorvia o que via no entorno da casa, nas ruas, nas lojas e cafés, calçadas e canteiros centrais: o movimento, os aromas, as quietudes, as cores, verão chuvoso e os contrastes do dia a dia. Elementos inspirados nesse mundo ao seu redor eram trazidos para dentro de casa — uma flor colhida no caminho ou comprada no mercado local enfeitava a mesa da sala, uma fotografia tirada de um pôr do sol recente sobre a prateleira, um tom diferente de tinta que lembrava o céu após a chuva. Uma conexão entre ela e seu lar com a energia ora vibrante, ora serena da vida lá fora.
A luz do sol, filtrada pelas cortinas, lançava padrões dourados pincelados sobre as paredes recém-pintadas, maravilhando Lara.
Até as pequenas pedras, encontradas em breves passeios, além de acrescentar um charme único ao espaço, não estavam ali por acaso. Diziam dos desafios e obstáculos inerentes aos contratempos da vida.
Lara se sentia quase pronta para uma nova estação, novas fases. Foi como ver as bordas de uma fotografia indesejada começarem a se enrolar e ficarem pretas pela ação do fogo que ela própria ateou, até se desfazer em cinzas – como um desejo, uma urgência, um ato de coragem para deixar ir as lembranças amargosas.
Nas janelas, abertas todas, as cortinas recém-instaladas de voil rendado tinham um bailado lento, preguiçoso, vinham alisar molemente cá os móveis e depois espiar lá fora curiosa. A incompreendida rosa do deserto, que por excesso de água e pouca luz, teve alguns galhos amputados, afetados por fungos, mas logo surgiram outros brotos. O espelho lascado do corredor e o bolo que queimou à tarde no forno não tiveram salvação.
Sobre o aparador, as chaves, um pássaro em quartzo rosa, a bolsa, e, acima dele, um painel sem moldura de tintas frescas e abstratas assinado pela dona da casa.
O relógio da parede mostrava as horas, minutos e segundos que seriam lembrados por aquele instante especial, marcado pelo toque da campainha. Um entregador, previamente autorizado pela portaria, com um pacote estreito, comprido e etiquetado:
Remetente: Dr. Santiago Johansson
Rua das Rosas, 621
Edifício Imperium.
Destinatário: Lara Dubois
Rua Muriel Gardiner, 17A
Condomínio Residencial Excellence.
Um guarda-chuva novo e um bilhete:
“Querida Lara,
Para que você nunca deixe de ver os dois mundos, mesmo sob a chuva.
Com carinho,
Santiago”
Naquela noite, as borboletas em seu estômago engoliram finalmente o último lobo que se debatia raivoso, há minutos, pelas paredes rosa antigo do quarto.
Começar tarde, começar de novo…
Por que não?
Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, um coração acordado enquanto Lara seguia pela calçada movimentada da cidade, dividida para mil pés, quando então se deparou com a estranha, mas encantadora combinação de sol e garoa branda, um momento em que a natureza parecia brincar com contrastes e paradoxos.
A chuva em riscas finas, demarcando a linha de despedida do verão, ia destapando o céu sob seu guarda-chuva transparente.
“Talvez se eu ficasse… Talvez se eu esperasse… Talvez se eu fugisse…”
O coração desacostumado de Lara pulsava sem jeito, sem maestro, acelerado, enquanto ela se aproximava do café.
“Quem é você? Quem é você que invade assim os meus dias sem hora marcada, desarrumando gavetas e fazendo pássaros cantarem fora das gaiolas? Quem é você que rasga nuvens, acorda sóis e me faz dar nomes novos às minhas flores e me desenhar em pedaços de papel?” Ela estava ali, do lado de fora, trêmula diante de um dos janelões do Café La Vie en Douce, olhando para aquele homem lá dentro, que acenava para ela com o sorriso mais lindo e sem
porquês que ela já viu, sentado à mesa, com dois chai lattes bem quentes e uma rosa vermelha à sua espera. Naquele instante, o mundo se aquietou, ajeitando-se naquele café, cujas grandes janelas revelavam um universo interno e externo, ambos repletos de histórias, para aconchegar um novo capítulo que se iniciava entre os dois… Dr. Santiago Johansson e Lara Dubois.
E aquele gato mirradinho de olhos ternos e remelentos que costumava miar na soleira da porta de Lara como uma campainha teimosa? Ganhou um nome e um cantinho ali dentro. “Bem vindo, Phoenix Dubois.”
O que fazer quando o mundo parece ter virado do avesso tal qual um guarda-chuva ao vento, sob o véu da chuva?
Em um tempo distante, o Natal era diferente. Claro, havia luzes vibrantes, coloridas e florescentes.
As casas eram todas enfeitadas com pisca-piscas; até as casinhas mais humildes brilhavam na noite de véspera de Natal.
Nosso Natal era mágico; mesmo na simplicidade, nossos presentes eram entregues após a meia-noite.
Estou falando do Natal da Vekinha, na lembrada rua do sapo.
Não havia hienas e rouxinóis, mas havia muita diversão com os coleguinhas da vizinhança. Havia também a tia Margarida, que não era uma flor, mas parecia uma. A vó Cirene, que não era Cirene, mas despertava todos com seu amor e seus doces de coco e amendoim cortados em triângulos na antiga mesa de madeira, usada desde os tempos em que meu avô Joaquim era comerciante em Guiricema. E como esquecer da tia Tonha, que adorava encerar o piso da casa para o Natal? A casa ficava cheirosa e bonita, parecia uma casa de bonecas. O chão vermelho e espelhado era, para mim, o mais bonito de todos.
Uma das lembranças que ficou na memória foi o “puxa-puxa” que a tia Tonha fazia no fogão a lenha da varanda. Eu ficava ali, admirando e esperando o ponto perfeito. A tia sempre jogava uma colher da mistura em um copo d’água e, dependendo do ponto, ela nos dava aquela balinha para chupar. Depois de provar aquele doce perfeito, eu corria para a sala e balançava na cadeira de balanço do vovô Joaquim. Ele, sentado na sala, ligava a vitrola antiga, tocando os discos que ele gostava. Uma das canções que nunca esqueci era “Filme Triste” de Sueli, que contava a dramática história de um namorado que, dizendo que estava cansado e dormiria mais cedo, foi ao cinema com outra garota. A mentira foi descoberta quando a namorada apareceu com algumas amigas. Até hoje lembro de ouvir essas canções por horas.
Os primos vinham de outras cidades para passar o Natal todos juntos na casa de minha avó, e era um verdadeiro alvoroço. A casa era pequena, mas parecia o coração de mãe, sempre cabia mais um. E éramos felizes assim. Além das guloseimas que a vovó fazia, adorávamos o cheirinho do café torrado e moído na hora. Acho que não existe café tão gostoso como o de antigamente.
Na véspera de Natal, em minha casa, meu pai e minha mãe iam para a cidade comprar presentes para meus irmãos e para mim. Ficávamos ansiosos esperando sua chegada, mas até que a gente não dormisse, eles não colocavam os presentes na beirada da cama. Eu ficava sem conseguir dormir, de tanta ansiedade, mas fingia que estava. Quando finalmente vi que eles haviam colocado meu presente na cama, sorria e continuava sonhando sobre o que poderia estar dentro daquele saco de presente. Acabava adormecendo em meus sonhos, e no outro dia era uma festa! Cada um abria seus presentes. Nesse Natal, eu ganhei uma boneca “Quem me Quer”. Minha irmã mais nova, a Chelzinha, ganhou uma boneca “Emília”, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, minha irmã mais velha, a Cicinha, ganhou um “Boca Rica”, e meus irmãos ganharam carrinhos e bonecos de super-heróis. Nosso Natal foi uma verdadeira festa; brincamos muito.
Ao final, íamos todos para o quintal e refletíamos sobre como é importante ter uma família. Percebíamos que o Papai Noel não é um velhinho de barba branca que sai por aí distribuindo presentes. Ele é apenas um personagem que enfeita ainda mais o nosso Natal, porque o verdadeiro Papai Noel é o nosso papai e nossa mamãe, que, muitas vezes sem poder, fazem o possível para tornar o nosso Natal mais alegre.
Vivi muitas aventuras natalinas com minha família e, neste Natal, desejo que todas as crianças ganhem presentes, mas, acima de tudo, que amem suas famílias e compreendam o amor que transcende qualquer presente. O amor do papai, da mamãe, do vovô e da vovó, enfim, de toda a família. Porque, mais importante do que os presentes, é a presença daqueles que amamos. A Vekinha deseja um feliz Natal para todas as famílias do Brasil e do mundo inteiro. Feliz Natal! 💝
Se esta carta está chegando às suas mãos, não estou mais neste plano e foi o meu último desejo. Sentado na cadeira de execução, passou um filme da minha trajetória.
Espero que você jamais cometa erros que o leve a chegar aqui. Troque os maus pensamentos pela bondade e a vontade de viver. Veja como a liberdade é bela! Ter família e amigos e uma bela história de vida. Não seja ambicioso ao ponto de não ter o sono dos justos.
Foram dias, meses e anos e a maioria deles numa solitária. Em torturas, queriam extrair de mim toda a estratégia que levou à faceta tão perfeita do roubo. Emudeci e sofri horrores desumanos por calar-me. Tirei o sono dos poderosos e sentia prazer ao ver o desespero deles em querer mostrar trabalho, sabendo como tudo aconteceu e onde eu coloquei tanto ouro.
Já cansado de sofrimentos e com idade avançada, dei a informação, com uma condição: de que essa carta chegasse a você ,meu único amigo, para que você, com isto, aprendesse que roubar não vale a pena.
Não descarto a possibilidade de já ter esbarrado com aquele homem, que, em idade, provavelmente regulava com a do meu falecido pai. Talvez me deixei ser enganado pela maneira austera de se vestir. Seja como for, era mais velho do que eu e um tanto mais moço do que meu avô, que mal cheguei a conhecer.
Pois lá estava o dono de cavanhaque tão distinto, apesar de bastante popular por aqueles tempos. Sóbrio, parecia mordiscar metodicamente cada salgado folhado diante de si. Alguns goles longos na limonada. Não tardava, voltava o olhar vago em busca de possível aconchego.
Tive ímpeto de me fazer notado. Caminhei alguns passos em sua direção, o olhar fixo, mas, assim que o meu alvo se virou, também o fiz, mas em outra direção, como se procurando alguém com quem tivesse marcado um encontro. Pura interpretação de ator medíocre, coisa que sempre fui. Por sorte, alguém ao fundo da Confeitaria Colombo acenou para mim.
A princípio, não reconheci aquele rosto, até que me aproximei. Era tia Maricota, irmã mais moça de meu pai. Ela estava acompanhada da filha, Maria de Lourdes, que, para meu alívio, havia desistido de firmar compromisso justamente comigo. Na verdade, nunca acreditei em amores entre primos, muito antes de saber que os frutos podem não vir saudáveis.
As duas bebiam chá, enquanto dois quindins repousavam docemente sobre a mesa. Quando menino, era meu quitute favorito. No entanto, homem quase feito, buscava sofregamente pelo sal na comida. Se bem que, de vez em quando, pegava um naco de cocada e o levava à boca, talvez como lembrança de tempos de criança.
O garçom se aproximou. Fiz o mesmo pedido do dono do cavanhaque distinto, certamente na ânsia de me aproximar dele. As parentas sorriram, como se percebessem como aquele garoto de outrora havia crescido. Devolvi o sorriso, enquanto tentava cofiar o ralo bigode, que teimava cultivar, apesar da quase total falta de pelos.
— Que coincidência, Julinho.
— Não entendi, tia.
— A limonada e o folhado.
— Não gosta?
— Você bem sabe que sou mais afeita a doces.
— Já sou crescido para doces.
— Percebe-se, Julinho.
— Mas a senhora estava falando sobre coincidências. Que coincidências?
— Reparou que você fez o mesmo pedido do Joaquim Maria?
— O escritor?
— Sim. Ele está sentado logo ali. Você passou por ele. Não percebeu, Julinho?
Olhei para trás e fingi espanto. Na certa, tia Maricota e Maria de Lourdes não desconfiaram da minha pequena mentira ou, por sorte, guardaram segredo para evitar pendengas desnecessárias.
— Onde estava com a cabeça, que nem notei tamanha presença?
Minha prima riu e o pequeno ruído chamou a atenção do mais distinto cliente da confeitaria. Trocamos olhares e, num ímpeto de mocidade, ergui a taça de limonada. Ele fez o mesmo, o que me encheu de regozijo.
Não tardou, meu companheiro de limonada saiu do recinto. Tive vontade de ir até ele para cumprimentá-lo, mas minhas pernas bambas não me permitiram. Entretanto, assim que o garçom recolheu a taça do Joaquim Maria, chamei-o. Tomei-lhe a taça das mãos e coloquei uma nota graúda no bolso da camisa. E, antes que alguém percebesse, apesar dos olhos espantados das minhas parentas, que a tudo viram, a escondi no bolso interno do meu paletó.
Pois bem, eis que estou aqui sentado na sala da minha casa, cercado de netos barulhentos. Em frente, na ampla estante de mogno, lá está aquela taça, que me custou o dinheiro que não possuía na época, mas que, ainda hoje, me é tão cara.
Sobre o autor
Eduardo Martínez é um premiado escritor carioca, que há quase três anos mora em Porto Alegre, cidade pela qual é apaixonado.
Seu primeiro livro, o romance “Despido de ilusões”, 2004, figurou entre os mais lidos do CCBB. “57 Contos e crônicas por um autor muito velho” é seu mais recente livro.
Ei, Deus, você aí em cima, sou uma criança e, apenas, um sobrevivente, mas mesmo assim resolvi lhe escrever.
Há três anos sem casa, pais, família, amiguinhos…
Crianças também sofrem, e como sofrem, e ninguém as ouve!
Vivo de lixo em lixo, disputando uma sobra de qualquer coisa, pois até um pão adormecido ou sobras de quentinhas viram um banquete.
Perdi meus pais para a violência, minha casa foi queimada e, enfim, perdi tudo e fui obrigada a viver nas ruas da cidade grande, perambulando, onde é um campo sem lei e, com isto, aprendi a me virar sozinha, pintei o rosto de carvão e vesti-me como um menino para me livrar dos abusos sexuais da galera que toma conta do espaço. Até aqui tem o famoso Manda-Chuva.
Ah, este meu bloco, achei no lixo e deve ter sido dos filhos dos poderosos que descartam seus materiais escolares a cada final de ano. Desculpa eu estar escrevendo a lápis, mas foi o que eu encontrei.
Eu só queria que você soubesse que o que eu mais gostaria neste Natal é que surgisse alguém com um gesto solidário e me levasse para a sua casa, me deixasse tomar um banho, porque aqui, banho só quando o chafariz funciona em épocas de festa na cidade ou visita de algum chefe de estado; me desse uma roupa limpa, um tênis, mesmo velho, de um de seus filhos, uma sopa quente e uma caminha pra dormir aquecida decentemente.
Seria o melhor Natal de minha vida. E o maior presente dado pelo Senhor.
Feliz Natal pra você, Deus!
Ainda é cedo e tudo pode acontecer, e, quem sabe, Você me surpreende.
Dois amigos conversavam despretensiosamente no bar do senhor Joaquim.
O início do bate-papo foi sobre o trabalho, mas depois da sexta garrafa de cerveja a conversa mudou de tom.
— É…o mundo já não é mais o mesmo. — disse Junior, meio desiludido, enquanto observava as pessoas que passavam pela frente do bar.
— Por que tu diz isso? — perguntou seu Barbosa com a boca mole de tanto cervejar.
— Porque onde o homem põe a mão as coisas saem do natural. — disse o bêbado, filosofando.
— Tu levou chifre ou caiu da cama para ficar, assim, de miolo mole?
—Nenhuma coisa, nem outra. A realidade é que as coisas não são mais como eram. Até os convites são diferentes.
— Não te avisaram que as coisas evoluem? — perguntou seu Barbosa, tentando tirar cerveja da garrafa vazia.
— Acredita que o Zé do Cachorrão me convidou para almoçar na casa dele e me deu para comer sanduiche de metro?
— Não estava bom?
— Estava; mas eu havia me preparado para comer comida, não lanche.
— Lanche não é comida?! Não seja ingrato; tu, pelo menos, comeu sem pagar.
— É.. as coisas estão muito diferentes — continuou o bêbado, olhando para o horizonte, com saudades do passado — a batata-doce, não é doce; o milho, é transgênico; o leite é de amêndoa; a manteiga é de milho, o pão, de aveia; o café, é de cevada, a muçarela, de castanha de caju… Assim fica difícil ser natural. — disse o decepcionado.
— Junior, bebe mais um pouco de cerveja para limpar teu fígado que hoje tu tá muito azedo. — disse seu Barbosa, pedindo a conta.
— Nem a amizade é a mesma… — disse Junior, fixando sobre o amigo o olhar julgador.
— Por que tu tá me dizendo isso?
— Porque desde que somos amigos você nunca me convidou para almoçar na sua casa.
— Nunca te convidei porque só janto. — disse ele encerrando a conversa.