Rompeu tardia e chuvosa alvorada
Ella Dominici: ‘Rompeu tardia e chuvosa alvorada’
Dentro do alto corpo destelhado como num estábulo, iam eretos como fósforos numa caixa; no transporte enxergavam a inundação que ia pela estrada do Sul. Os terrenos eram baldios, compondo uma área onde retinha as chuvas de outono, as águas de um maio colossal.
Tudo desaparecera retumbantemente, dando lugar a um lençol horizontal e imóvel de águas marrons, que se estendiam aos campos de um além vivos. Emaranhado em compridos farrapos inertes no fundo do sulco dos arados e brilhando tenuamente sob a luz cinzenta.
Via-se a água da inundação perfeitamente imóvel e plana. Não se iluda com inocência e suavidade, não, creia nas forças de um rio em perversão!
Tão quieto agora, que se podia caminhar sobre ele, via-se uma colcha como de cetim perfeitamente lisa e imóvel, cobrindo as feridas humanas; um aceirado onde se fixavam os postes em retas fileiras como cercas que demarcavam os terrenos. Agora frouxos. Tudo bambeando molemente.
Havia uma vala sob a ponte e um pequeno riacho que escondia a “Lagoa dos Patos”, invisíveis, de patos submersos e penas flutuantes.
Ouviu- se um vago estrondo subaquático que soava como um trem destroçado que, num descarrilamento ao longe, sugeria uma velocidade espantosa e secreta.
Na superfície corriam dejetos espumosos, animais, idosos, roupas, objetos, telhas de vinil e plásticos enquanto afundaram-se latas, ferros, pedras e concretos. A extrapolação das águas em excesso cobiça calçadas, ruas, praças, passarelas e para passá-las em avalanches pelas vulneráveis cidades, dificuldades e impossibilidades.
Por que, água, não escoa e liberta a terra e as gentes, por que acumulada resta como mortalha? Enchentes e mais enchentes, mortes, epidemias, males por crises hídricas se avolumam nos anos e meses de impactos ambientais. E a correria, a fuga destes mortais, banais?
O prejuízo econômico pesa nas vidas e nas realidades convulsionadas por perdas residenciais, comerciais, industriais; morre a semente, o campo, o sementeiro, o gado, suínos, equinos, ovíparos, os lúcidos, infantes, gestantes, cadeirantes e caducos. Importam-nos plátanos, as parreiras e roseiras.
Sucesso absoluto aos peçonhentos e aos ladrões, usurpadores em vulneráveis momentos.
Correntezas frias e insensíveis, fortes avalanches despidas de compaixão levam móveis, comidas e vidas, mergulham alguns e “nenhuns” para não voltar, e os que restam a que prestam, nestes rostos empalidecidos pelas lágrimas do luar.
Sinistra e lamentosa chuva, espessou os rios e, agora, contundente, comove e consterna os povos a socorrer e amar estas gentes, sobreviventes, heroínas das enchentes.
Há um rio que atravessou a nossa casa, esse rio rebelou-se pelo tempo; as lembranças são peixes que restaram das correntes nadando nos contratempos. E ao olhar nos céus de hoje vejo inundações de aves, refração de estrelas que, nadando, se movimentam no lumiar de minha esperança.
Vem me guiando desde menino o rastro celeste de invisíveis enxurradas, em uma constelação que guardou meu diário em segredo, Cruzeiro do Sul.
Ella Dominici