Versões diferentes: Quem estará com a razão?
Francisco Evandro de Oliveira:
‘Versões diferentes: Quem estará com a razão?’
Em um dia de verão maravilhoso eu estava curtindo um pouco de Sol no parque da cidade quando, ao olhar para um dos cantos do parque, vi uma aglomeração e um carro de polícia. Logo à frente, dois policiais continham os exaltados que desejavam linchar um jovem rapaz, com cerca de 18 anos.
Ao me aproximar vi um senhor, aparentando uns 65 anos, que jazia no solo. Um filete de sangue escorria de seu peito. Resolvi, por mera curiosidade, analisar as diversas versões sobre o caso e vocês poderão tirar suas próprias conclusões.
1 ― Versão do revólver
Eu sou um revólver e, como sempre, fico bem quieto e vivo guardado na cintura de meus senhores. Alguns deles, às vezes, gostam de se exibir e quando o fazem geralmente acontece algo de ruim às outras pessoas. Foi o que aconteceu naquele dia.
Sábado passado, estava bem tranquilo com meu senhor, passeando no parque da cidade. Eu estava quietinho em sua cintura, mas assistia a uma constante troca de farpas e acusações entre ele e outro cavalheiro, a quem ele chamava de pai.
Eles se digladiavam com palavras e ofensas morais. Fatos de suas vidas vinham à tona e à medida que discutiam, o clima ia se tornando mais e mais quente. Repentinamente, o opositor mais idoso sacou um de meus inúmeros primos e atirou. Porém, meu dono foi bem mais rápido. Sacou-me e disparou em sentido contrário. Mas foi atingido de raspão.
Em compensação, seu opositor levou um tiro à queima roupa, bem no centro do coração, vindo a falecer instantaneamente. Por causa disso, fui parar em uma delegacia junto com meu senhor. Lá eles me colocaram em um saco plástico, lacrado, de onde só saí algum tempo depois, para ser exibido como uma espécie de troféu, em uma sala decorada. Ali também estavam: o meu senhor, sua mãe, os policiais que o acusavam e muitas outras pessoas que eu não conhecia.
Durante mais de 12 horas, as pessoas presentes eram chamadas para sentar-se nas acomodações do tribunal, destinadas às testemunhas que iriam falar sobre o ocorrido.
De repente, um homem todo de preto mandou que todos se levantassem. Disse algumas palavras e, ao final delas, muitas pessoas foram cumprimentar meu senhor. Finalmente, foram todos embora para casa e eu voltei a ficar na sua cintura.
2 ― Versão dos policiais
Nós estávamos de serviço fazendo a ronda pelo parque da cidade, porque ali costuma haver pequenos delitos praticados por menos e desocupados que praticam alguns furtos. Há também alguns incautos que costumam passear em locais perigosos do parque.
Tudo estava tranquilo, quando, de repente, ouvimos dois disparos efetuados seguidamente. Pelo som pudemos perceber de imediato que se tratava de armas diferentes.
Ligamos a sirene e chegamos ao local o mais rápido possível. Deparamos com um senhor que jazia no solo. Já estava formando uma aglomeração em torno dele e do possível assassino, um jovem que se encontrava atônito, segurando um revólver na mão esquerda.
As pessoas queriam a todo custo linchá-lo e, se não usássemos nossa autoridade, com certeza ele sairia dali com o mesmo destino do ancião. De imediato lhe demos voz de prisão e o conduzimos à delegacia mais próxima a fim de lavrar o boletim de ocorrência.
Lá, ele narrou que fora em legítima defesa. A pessoa que matara era seu próprio pai, que atirara primeiro. Quando ia efetuar o segundo disparo, ele foi mais rápido e o acertou no coração. Declarou que o motivo do crime fora o excesso de sofrimento e humilhação que vinha sofrendo desde criança e que o pai já o havia ameaçado outras vezes. Só não consumara as ameaças porque sua mãe ou vizinhos sempre evitavam.
Havia muito ressentimento contra o pai por causa dos maus tratos sofridos por ele, bem como pelos irmãos.
O delegado conseguiu apurar que o falecido era um homem violento, segundo a versão do assassino. E que também não se relacionava bem com seus familiares nem com outros vizinhos.
O rapaz, depois de ouvido, foi autuado e conduzido à carceragem. Após prestarmos o nosso depoimento, voltamos à nossa costumeira ronda que, por sinal, já estava a terminar.
3 ― Versão de um frequentador
Estávamos em um dia de Sol maravilhoso e aquela manhã estava convidativa para um passeio pelo parque. Foi o que fiz.
Caminhei até o parque da cidade, para sentir o prazer do ar puro e sentir o perfume das flores que por lá são cultivadas e tratadas com muito carinho.
Comprei um saco de milho de três quilos e assim que comecei a alimentar os pombos que estão sempre naquela área, minha atenção se voltou para duas pessoas que discutiam em alto e bom som, até com palavras de baixo calão.
Instalou-se a desarmonia no parque. As pessoas que caminhavam e corriam, logo começaram a parar, a fim de assistir ao desfecho, que, por sinal, foi trágico.
Em certo momento a pessoa mais idosa sacou sua arma, disparou contra o jovem e, mal engatilhava sua arma para efetuar novo disparo, recebeu à queima roupa um tiro certeiro no coração, que o fez cair fulminado.
Os caminhantes, que não tinham entendido a princípio o motivo do assassinato, queriam a todo custo linchar o rapaz. Só que não o fizeram porque ele ainda estava segurando sua arma. Além disso, uma patrulhinha rapidamente chegou ao local e prendeu o jovem, que não ofereceu resistência.
O passeio acabou para mim, porque fiquei pensativo sobre a causa daquele insano assassinato que não fazia sentido, já que se tratava de pai e filho.
4 ― Versão do irmão de Faustino
Faustino sempre foi uma pessoa problemática e desde criança nos causa grandes transtornos. Nosso pai cansou de ir à escola para resolver problemas que ele criava, mas Faustino não tomou juízo ao longo dos anos.
Lembro-me de que, certa vez, nosso pai foi chamado por um motivo muito grave: Faustino enfiara um lápis na garganta de um dos alunos. A diretora o suspendeu por oito dias e ameaçou expulsá-lo.
Mas ele continuou aprontando e quando se tornou rapaz passou a desrespeitar o nosso pai. Quase sempre ficavam discutindo em nossa casa ou no campo de futebol em que meu irmão jogava bola. Às vezes, chegavam ao ponto de realizar cenas de pugilato familiar. Aí, minha mãe entrava em cena e apaziguava os ânimos que estavam exaltados.
Ambos gostavam de andar armados e Faustino, depois que passou no concurso da polícia, começou a praticar tiro ao alvo constantemente. Daí, talvez inconscientemente, tenha atirado, por causa das idas constantes ao estante de tiro. Sei bem sei que os dois não se misturavam. Eram como azeite e água.
Todavia, a bem da verdade, sou forçado a dizer que Faustino tinha bom coração. A despeito de seus problemas, todos no bairro gostavam muito dele, principalmente do seu futebol.
5 ― Versão da mãe de Faustino
Meu filho sempre foi um amor de pessoa. Todos gostavam dele e não sei como uma tragédia dessas pode ter acontecido, principalmente com ele. As pessoas que invejavam seu futebol é que sempre estavam arrumando confusão, culpando-o por tudo.
Seu pai não gostava muito dele porque desejava que ele fosse advogado, porém Faustino resolveu fazer concurso para ser oficial da PM. Desde que passou no concurso ele tem praticado tiro ao alvo e esses fatos, o concurso e a prática de tiro, fizeram meu marido revoltar-se contra ele. Desde então, eles têm se estranhado e por diversas vezes fui obrigada a intervir em suas discussões.
Realmente foi uma lástima e um fato bastante triste esse que aconteceu esta manhã em nossa família. Sinceramente não sei o que vou fazer para tentar esquecer esse acontecimento. Que Deus me dê forças, principalmente para perdoar meu querido filho.
6 ― Versão do delegado
Naquele dia, mal cheguei à delegacia e o escrivão veio me informar que eu necessitava tomar o depoimento de um jovem que assassinara o pai no parque da cidade e tal ocorrência havia sido meia hora atrás. Então, me encaminhei para minha sala e determinei que o rapaz fosse trazido a minha presença, se possível com as testemunhas do assassinato.
Depois de feitas as observações iniciais, comecei a ouvir o jovem. Disse que se chamava Faustino José de Britto, solteiro, aspirante oficial da PM e que morava com os pais.
Faustino relatou-me que há muito se desentendia com o seu pai e que o motivo principal fora sua entrada para a PM em lugar do concurso de Medicina. Relatou-me que, constantemente, eles viviam se agredindo verbalmente, Todavia, nunca havia acontecido qualquer espécie de agressão física entre os dois. Ele assassinara o pai por necessidade de autodefesa, já que o pai sacara e disparara primeiro, em sua direção. Não lhe restara alternativa, senão fazer uso de sua arma para defender-se. E foi o que, de fato, havia feito.
Faustino também declarou que o fato fora presenciado por alguns transeuntes e que eu poderia ouvir sua principal testemunha, um senhor de 38 anos, chamado André Paulo dos Santos.
Lida a declaração, devidamente assinada pelo acusado, encaminhei Faustino à carceragem e continuei a ouvir as testemunhas que apareceram para depor.
Após três dias enviei o processo para a Justiça se pronunciar e fazer a sua parte. Em termos de delegacia, dei o caso como encerrado.
7 ― Versão do magistrado
Eu sou um magistrado e, na qualidade de juiz, fui designado para ser o responsável para julgar um caso de assassinato que ocorreu em dezembro passado, no parque da cidade. Foi um caso inusitado, porque o próprio filho matara o pai. Os autos estavam contraditórios, com algumas peças favoráveis ao réu e outras ao Ministério Público.
Os autos do processo foram inicialmente lidos e, depois de ouvir e acarear algumas das testemunhas sob o crivo do contraditório, solicitei que os jurados se reunissem e fizessem a sua apreciação face às perguntas que previamente eu lhes dera para responder.
Após duas horas, eles voltaram e então eu pude ler e lavrar a sentença, que foi favorável ao réu. O júri considerou-o inocente, devido ao depoimento de uma testemunha chave, que anteriormente me relatara o seguinte: encontrava-se alimentando os pombos a menos de cinco metros do local do assassinato; pudera ouvir desde o início toda a discussão; vira o homem mais velho ter sacado e atirado abruptamente em direção ao acusado; segundo ele, não restara alternativa ao acusado, senão se defender atirando contra o próprio pai.
Mediante tal fato, os jurados decidiram inocentar o réu da acusação de assassinato devidamente qualificado para assassinato em legítima defesa. Em seguida mandei lavrar o alvará de soltura para o réu, que foi imediatamente cumprimentado por seus amigos e pôde contemplar mais uma vez o sabor da liberdade, o bem maior de todo cidadão.
Dei por encerrada a sessão e todos se retiraram da sala do tribunal. Mais uma vez pude verificar a lisura da Justiça quando se trabalha com ética e desprovido de ambições.
Francisco Evandro de Oliveira