Quando a literatura diz o que arde
Ella Dominici: ‘Quando a literatura diz o que arde’


às 17:53 PM
Dizia René Char, em seus cadernos da resistência: “Aquilo que vem ao mundo para nada perturbar, não merece respeito nem paciência.” E com isso, fincava sua bandeira na linguagem como campo de combate. Seus versos, aforismos, cartas e até seus silêncios, feriam com a delicadeza de quem sabia: é possível lutar com o verbo. É possível incendiar sem barulho.
Arthur Rimbaud, por outro lado, reinventou a subversão com tinta crua. Adolescente dilacerado e lúcido, lançou-se contra os muros da moral e da estética. Sua obra não suplicava espaço — ela invadia. Era um manifesto contra a ordem que adormece. Sua poesia não pedia entendimento — pedia combustão. E por isso, ainda hoje, incomoda.
No Brasil, Carlos Drummond de Andrade soube unir o aço da crítica ao veludo da sensibilidade. Seus versos trazem a “pedra no meio do caminho” — mas não para impedir, e sim para lembrar que o caminho é feito também de tropeços, de obstáculos que nos forjam. Drummond ensinou que se pode ser lírico e ácido, humano e incômodo. Sua poesia é faca embainhada em ternura.
Clarice Lispector, por sua vez, escrevia como quem escutava os segredos do universo em silêncio. Suas epifanias brotavam como relâmpagos calmos. A palavra em Clarice não serve para explicar, mas para tocar o que escapa. Sua literatura é resistência feminina, sensorial e espiritual. É recusa ao raso. É combate íntimo. É a própria dignidade do pensamento que se nega a ser controlado.
A censura teme essas vozes porque elas não precisam gritar.
Elas apenas existem — e existir já é insubordinação suficiente.
Não me peça palavras de acordo,
me nascem do avesso,
me doem de tanto querer ser inteiras.
Esses poetas nos ensinaram que não há revolução maior que o verbo sentido. O leitor que se entrega a eles não sai como entrou. Sai deslocado — e nesse deslocamento começa a liberdade. Porque a literatura, quando verdadeira, não forma militantes nem seguidores. Forma consciências.
E o que é consciência, senão
um poema que acordou do coma?
A censura não mata o pensamento — mas o adormece com sedativos morais, estéticos, sociais. Cabe à poesia acordá-lo. E não com gritos, mas com toques precisos de insubmissão afetiva. Essa é a dignidade que se esconde, mas nunca morre. A literatura, em sua essência, é esse gesto de fé na linguagem: a de que um mundo mais digno começa quando alguém ousa dizer o indizível com beleza.
Diz o que te arde,
mesmo que o mundo não ouça.
Talvez só assim
ele aprenda a escutar.
Ella Dominici