O frio que nos une
Clayton Alexandre Zocarato: ‘O frio que nos une’


às 17:02 PM
Era uma manhã gelada de agosto. Dessas em que o Sol tenta existir, mas só serve pra dourar a paisagem — não pra aquecer. O vento soprava como quem avisa: hoje ninguém vai escapar da solidão.
As ruas estavam vazias, ou quase.
Uma senhora encurvada arrastava um carrinho de feira vazio. Um cachorro tremia embaixo de uma marquise.
E eu, com as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos, descia a rua como quem não sabe bem pra onde vai, mas sente que ficar em casa seria ainda mais gélido.
Há algo no frio que revela o que somos por dentro.
No calor, tudo parece mais fácil: os corpos se encontram, os risos se espalham, as janelas se abrem. Mas no frio…
No frio a gente se fecha. No frio, até a alma parece querer um cobertor. A verdade é que, quando a temperatura cai, a gente se dá conta de que sente falta do calor humano mais do que casacos: sente falta de abraços suculentos e beijos molhados.
Já reparou como o frio e a solidão caminham juntos?
Como o vento gelado tem o poder de lembrar a ausência de alguém?
É no frio que mais se pensa em quem já partiu, em quem nunca chegou, em quem poderia estar ao lado dividindo o café, ou simplesmente no silêncio.
Talvez por isso tanta gente escreva sobre inverno com tanta melancolia — porque o frio é um convite à introspecção, mas também um espelho da carência.
Lembro-me de uma frase que ouvi certa vez: “A solidão é a ausência de um calor específico”.
Na época, achei poética demais, dessas que se penduram em legendas de fotos tristes. Mas hoje, com o nariz vermelho e a alma encurvada, ela me parece perfeita. Porque solidão não é estar sozinho — é não ter com quem dividir o frio.
É curioso: quanto mais o mundo avança, mais parece esfriar. Temos aquecedores, cobertores térmicos, casacos inteligentes.
Mas não temos mais aquele calor de estar junto.
Mandamos mensagens, emojis, áudios com voz de saudade. Mas nem sempre conseguimos estar presentes.
E a solidão virou um frio que não se cura com tecnologia.
No entanto, há um paradoxo bonito nisso tudo. Porque o frio, quando compartilhado, vira outro bicho.
O mesmo vento que gela a espinha vira motivo pra se aninhar. O mesmo céu cinza que entristece, vira pretexto pra chamar alguém pra perto.
O frio, em sua dureza, cria o desejo de encontro.
Pense nas lareiras, nos vinhos, nos filmes vistos a dois debaixo de uma manta. Pense nas mãos dadas nos bolsos dos casacos.
Pense nas conversas longas só porque lá fora está frio demais pra sair de casa. O frio nos empurra pra dentro — e dentro pode ser um lugar cheio de gente, se a gente deixar.
Solidão, portanto, não é sentença. É estado. E como todo estado, pode mudar. Às vezes, tudo que alguém precisa é de um gesto, uma ligação, um olhar mais demorado. Às vezes, o que falta não é um amor de cinema, mas uma presença de verdade. Um “como você está?”, dito com vontade de ouvir a resposta. Porque a solidão, essa sim, tem pavor de ser escutada.
Hoje cedo, naquele caminho frio e vazio, vi uma cena simples: um casal de velhinhos, de mãos dadas, caminhando devagar.
Ela tremia.
Ele parou, tirou o cachecol e enrolou no pescoço dela. Depois, seguiram os dois, juntos, em silêncio. Aquilo foi a coisa mais quente que vi o dia todo.
Talvez seja isso. O frio é inevitável. A solidão, em certa medida, também. Mas a vontade de estar perto, essa sim, é que nos salva.
No fim, somos todos feitos do mesmo sopro gelado, esperando por uma brisa de afeto. E basta um toque, um gesto, uma companhia — mesmo silenciosa — pra fazer da solidão apenas uma pausa, e não um destino.
Que neste inverno — literal ou metafórico — a gente seja o calor um do outro.