A palavra ‘cousa’

Fidel Fernando

“A palavra ‘cousa’ e o valor da memória linguística”

Fidel Fernando
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Imagem gerada por IA do Bing – 14 de Agosto de 2025, às 21:11 PM
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A língua portuguesa, rica em história e transformações, guarda em si memórias que atravessam séculos. Entre estas, encontram-se palavras que, embora pouco usadas hoje, continuam a ter valor linguístico, literário e cultural. Um exemplo é o vocábulo ‘cousa’, variante de ‘coisa’, cujo uso, embora arcaico, permanece legítimo e digno de reconhecimento.

Compreender e respeitar essas variantes não é apenas uma questão gramatical, mas também um acto de preservação da identidade e da memória colectiva, especialmente no contexto angolano e brasileiro, onde o português se entrelaça com outras heranças culturais e linguísticas.

A alternância entre os ditongos ‘oi’ e ‘ou’ em palavras como ‘coisa’ e ‘cousa’ demonstra que a língua portuguesa não é estática. Essas variações são consagradas pelo uso e convivem nos dicionários e nos registos literários como testemunho da evolução linguística.

A. Tavares Louro, no Portal Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, salienta que tais variações são legítimas dentro da tradição da língua. Além disso, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) reconhece essas formas como válidas.

Em Angola, onde o português convive com línguas bantu como o kikongo, kimbundo e o umbundo, o uso e a variação de palavras é ainda mais significativo. A exposição a registos linguísticos diversos permite à população desenvolver uma consciência mais flexível e aguda da língua.

A presença de palavras como ‘cousa’ em textos escolares ou obras literárias pode parecer estranha para as gerações mais novas, habituadas à forma moderna ‘coisa’, mas conhecer a sua existência é fundamental para uma leitura crítica e informada da literatura lusófona clássica.

Exemplos dessa presença são notórios em autores como Luís Vaz de Camões, cujo verso “Transforma-se o amador na ‘cousa’ amada” mostra como o termo fazia parte do léxico poético de sua época. De maneira semelhante, o ‘Sermão a Santo Antônio’, conhecido como ‘Sermão aos Peixes’, de Padre Antônio Vieira menciona: “A primeira ‘cousa’ que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros”, evidenciando a presença do termo numa obra clássica da literatura de expressão portuguesa.

Além disso, na contemporaneidade, há a canção de Joaquim Manoel da Câmara (2017), onde se canta: “Triste ‘cousa’ é de amar só”.  Esses exemplos mostram que a palavra “cousa” tem sido usada para expressar sentimentos profundos, ideias complexas e mesmo metáforas do quotidiano, demonstrando a sua carga simbólica.

No quotidiano angolano, palavras como ‘coisa’ e expressões similares, como ‘aquele negócio’ – típico do Brasil ou ‘o coiso’, são frequentemente utilizadas para substituir nomes do que não nos lembramos ou não conhecidos no momento da fala. Esta versatilidade reflecte uma característica universal da linguagem: a sua capacidade de adaptação.

Assim, dizer “Passa-me aquele negócio ali em cima da mesa… isso, o que abre garrafa!” ou “Estou a lembrar do coiso… daquilo que estudamos na aula passada… tinha a ver com biologia celular” ou, ainda, “Eu encontrei a coisa, a amiga do João… como é o nome dela mesmo?” revela uma função comunicativa essencial, que não depende da forma correcta do vocábulo, mas, sim, da sua eficácia na comunicação.

Aqui, faço um parêntesis para dizer que essa variação do ditongo ‘ou’ em ‘oi’ não se dá só com as palavras ‘coisa’ e ‘cousa’, há também ‘oiro’ e ‘ouro’, ‘loiro’ e ‘louro’, ‘loiça’ e ‘louça’, ‘oiço’ e ‘ouço’, presentes na língua viva e constam, inclusive, no VOLP.

Voltando à vaca fria, a palavra ‘cousa’ pode ter caído em desuso, mas permanece viva na memória da língua. Como as pessoas, as palavras nascem, crescem e, por vezes, desaparecem, mas a lembrança delas é uma forma de manter viva a nossa história comum.

Assim, lembrar e valorizar formas arcaicas é respeitar o percurso da língua e os seus muitos falantes. Não se trata apenas de reconhecer uma variante: trata-se de compreender que a língua é feita de passados, presentes e futuros. E nesse sentido, a ‘cousa’ tem tanto valor quanto a ‘coisa’.

Fidel Fernando

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