Quando a cidade fala mais alto que a sirene
Paulo Siuves
‘Quando a cidade fala mais alto que a sirene’


Belo Horizonte, outubro de 2025. Há noites em que Belo Horizonte não descansa. Alguns bairros parecem atravessar a madrugada em estado de vigília: O som das motos cortando giros como motosserras cortando futuros, carros de som estremecendo janelas, grupos que se reúnem em esquinas e praças. Para quem observa de fora, é barulho. Para quem vive de dentro, é sobrevivência.
Sou guarda civil municipal, e escuto esses sons não apenas com o ouvido treinado para detectar riscos, mas com a atenção de quem percebe sinais. Porque nem sempre a sirene responde a crimes — às vezes, responde a vazios sociais. Não é só barulho. É sintoma.
É um equívoco pensar que a juventude ocupa as ruas por falta de policiamento ou escassez de atividades culturais. Centros culturais existem, viaturas também. O que não existe, em muitos casos, é a sensação de pertencimento. O espaço público ainda não é, para todos, lugar de encontro e convivência; com frequência, torna-se arena de disputa. O lazer, quando não é tratado como direito, se converte em risco. A cultura, quando não chega como possibilidade, ressurge como ruído.
Vejo de perto a transição quase imperceptível: o instante em que a festa se transforma em tensão, a dança em provocação, o encontro em conflito. Entre manobras perigosas de motocicletas, uso de drogas ilícitas diante de crianças e adolescentes, disparos de arma de fogo em via pública, o que emerge não é apenas o retrato da violência — mas de uma juventude que insiste em existir, mesmo sob condições cada vez mais estreitas.
O que falta ao poder público talvez não seja aparato, mas escuta. O que esses corpos dizem quando se reúnem em ocupações noturnas? O que querem comunicar ao atravessar a cidade em rodas de moto ou em caixas de som improvisadas? Onde há ocupação, há demanda; onde há ruído, há um chamado que não encontra resposta.
Segurança pública não pode ser reduzida a rondas ou operações emergenciais. Precisa dialogar com políticas culturais, de lazer e de pertencimento urbano. Uma cidade só será segura quando oferecer, além da vigilância, horizontes de participação. É preciso transformar espaços de risco em espaços de criação.
Isso exige abandonar a lógica simplista que contrapõe ordem e cultura. Não se trata de escolher entre silêncio e expressão, mas de conciliar o direito ao descanso noturno com o direito à manifestação juvenil. Quando ignoramos essa equação, o resultado é uma ordem imposta pelo medo — e toda ordem baseada no medo já nasce condenada à revolta, porque nada mais é do que violência disfarçada de paz.
Belo Horizonte, como tantas metrópoles brasileiras, fala. Fala alto, muitas vezes mais alto que a sirene. O desafio é interpretar essa fala antes que ela se converta em tragédia.
O futuro da segurança urbana talvez comece por uma frase simples: ouvir é mais difícil que reprimir. Mas é também o único caminho capaz de transformar ruído em diálogo — e barulho em política pública.