Entre o céu e o fuzil

Clayton Alexandre Zocarato: ‘Entre o céu e o fuzil’

Clayton Alexandre Zocarato
Clayton A. Zocarato
Imagem criada por IA do Grok
Imagem criada por IA do Grok

O sol nasce cedo demais no alto do morro. A luz bate nas lajes como quem cutuca um ferido que ainda dorme.

Lá embaixo, a cidade desperta com café passado e trânsito engarrafado; aqui em cima, o dia começa com o eco metálico do primeiro tiro da manhã. 

Ninguém se espanta. A vizinhança aprendeu a distinguir o calibre pelo som.

Na viela da Dona Juraci, o portão ainda guarda as marcas de bala da semana passada. Ela varre o chão como quem reza.

Diz que limpar o sangue do menino Caíque foi o pior trabalho da vida — e olha que ela já trabalhou em casa de madame, limpando sujeira de festa e de culpa. 

Agora, o pó é outro: não o do tapete, mas o que corre pelas veias dos meninos do beco, embalado em sacolés de cinquenta.

O cheiro de café se mistura ao da pólvora. 

Na birosca do Zeca, a televisão fala de política e de corrupção — palavras grandes demais pra quem vive espremido entre o morro e o esquecimento.

O problema do Brasil é a violência, diz o âncora, engomado e seguro atrás do vidro. Aqui, a frase soa como piada. 

A violência não é o problema — é o ar que se respira. O problema é não poder parar de respirar.

As crianças jogam bola no campinho de terra. 

A trave é de cano velho, a bola, remendada com fita isolante. Lá em cima, dois homens observam. Estão armados, mas parecem entediados.

Um deles, de apelido Muringa, mastiga um chiclete e diz que queria ter sido jogador também. 

O outro ri, dizendo que no morro, quem chuta bola demais acaba chutado pela vida. 

Eles guardam o território, o ‘movimento’, a fronteira invisível que separa o asfalto do abismo.

E é curioso: aqui, as fronteiras são feitas de medo, não de muros. Todo mundo sabe até onde pode ir. A linha entre o ‘deles’ e o nosso é mais sagrada que mandamento.

Cruzar o beco errado é cometer pecado mortal. Mas, diferentemente da Bíblia, aqui o perdão não vem depois da confissão — vem com chumbo.

No domingo, o bar do Valdir enche.

O samba come solto, o churrasco fumaça o ar e, por um instante, o morro esquece que está sitiado. 

Dona Lúcia dança, o pequeno Jonatas brinca de vender cerveja, e o riso corre solto. Até que o rádio chiado de um dos rapazes estala.

Uma mensagem curta, sussurrada no chiado das ondas: “Avisaram que o caveirão tá subindo”. O samba morre no mesmo acorde.

O silêncio que segue é pesado como caixão. 

Cada um corre pra sua toca, cada olhar procura refúgio. 

Os traficantes recolhem os fuzis e as garrafas, num balé ensaiado. O morro se transforma em trincheira. E o menino Jonatas, aquele da cerveja, fica ali, perdido, sem saber pra onde correr.

Quando o primeiro estampido vem, ele se joga no chão, instintivamente. E aprende — cedo demais — que no morro a vida se mede em segundos de reação.

Depois do tiroteio, o cheiro de gás lacrimogêneo desce como névoa. Os helicópteros ainda rondam, cuspindo luz sobre telhados.

O locutor do rádio, no asfalto, diz que a operação foi um sucesso. Aqui, o sucesso tem outro nome: sobreviver.

Na segunda-feira, o comércio reabre. Zeca limpa a vitrine, ajeita os engradados, finge normalidade. 

A normalidade é uma armadura — quem tira, morre.

As crianças voltam à escola, mas o professor falta. Dizem que ficou preso na Linha Amarela, por causa da operação.

A aula vira recreio improvisado. Uma menina desenha o céu, mas o pinta de cinza.

– Por quê, Clara – pergunta Zeca, curioso.

– Porque azul não existe mais – responde ela, sem levantar os olhos.

O azul virou lenda. O morro vive em tons de concreto, ferrugem e medo. 

O céu, quando não está coberto de fumaça, parece longe demais, quase uma ofensa.

E é nesse cenário que o cotidiano insiste em florescer. Dona Juraci continua vendendo quentinha — arroz, feijão, carne moída e esperança. 

O gás acabou, mas ela dá um jeito. Muringa passa na porta, armado, e compra uma. Diz bom dia com um sorriso tímido, como se pedisse desculpa por existir. 

E talvez peça mesmo. Aqui, todo mundo deve alguma coisa a alguém — e ninguém sabe exatamente o quê.

De vez em quando, um corpo desce o morro, enrolado em lençol. 

A TV não mostra, o jornal não imprime. Só quem carrega o peso é o povo, que segue o cortejo em silêncio, enquanto o funk de algum barraco explode alto — não por desrespeito, mas por sobrevivência. 

O som alto é o escudo contra o choro.

À noite, o morro se ilumina com luzes trêmulas: lâmpadas penduradas em fios roubados, velas acesas em altares improvisados, cigarros brilhando nas sombras.

Lá de cima, a cidade brilha como um outro planeta, inacessível. 

O contraste é cruel: o luxo iluminado pela miséria. 

E, ainda assim, há vida — pulsando, teimosa, quente.

Dona Juraci reza. Pede paz, mas já nem sabe o que isso quer dizer. Muringa observa o horizonte e pensa se um dia vai poder andar na praia sem medo de ser preso. O menino Jonatas dorme abraçado num carrinho de brinquedo — o único que sobrou inteiro. E o som dos tiros, mesmo quando cessam, continuam ecoando dentro de cada um.

No dia seguinte, o noticiário fala de mais uma operação bem-sucedida. A cidade aplaude, aplaude de longe, de longe onde o sangue não salpica.

Bandido bom é bandido morto, dizem. Mas esquecem que, aqui no morro, bandido e vítima moram na mesma casa, dividem o mesmo prato, o mesmo sobrenome.

Porque o que chamam de ‘violência’ é, muitas vezes, o nome que dão à pobreza quando ela resolve gritar.

E o morro grita, sim. Grita com funk, com tiro, com prece, com festa. 

Grita pra não ser apagado. Grita porque o silêncio seria o fim.

No fim da tarde, o sol se põe devagar sobre o Rio, tingindo o céu de vermelho. O mesmo vermelho que mancha o chão do beco, o mesmo que tinge a bandeira da esperança.

A cidade é linda — dizem os cartões-postais. Mas ninguém tira foto do lado de cá.

E se tirasse, talvez não coubesse em moldura: uma cidade partida, onde o fuzil é rei, o medo é súdito e a vida, mera sobrevivência.

Mas há algo que resiste — teimoso, desobediente — entre os becos e as balas.

É o amor, aquele mesmo, clandestino e corajoso. 

Aquele que faz nascer criança em meio à guerra, que faz mãe lutar, que faz o morro inteiro dançar mesmo quando o ‘caveirão’ ronda.

Talvez seja isso que o asfalto nunca entenda: que o morro, apesar de tudo, não é só tragédia. 

É também vida, barulho, cor, improviso e fé. 

É o território onde o impossível se acostumou a existir.

No fim da noite, quando o silêncio finalmente pousa, o vento traz o som distante de um tamborim. E alguém canta, baixinho, lá no alto:

Enquanto houver sol, haverá esperança.

A música sobe e desce pelas vielas, como um recado.

E o morro, cansado, mas vivo, responde com um sopro: “A gente ainda tá aqui.”

Clayton Alexandre Zocarato

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