O charme da ignorância voluntária

Paulo Siuves

Crônica ‘O charme da ignorância voluntária’

Paulo Siuves
Paulo Siuves
magem criada por IA do Grok
Imagem criada por IA do Grok

Os personagens desta crônica — o Senhor Dupont e a Senhora Lambert — são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais é, como se diz, mero sintoma do tempo em que vivemos.

O Senhor Dupont, homem de hábitos educados e opiniões leves, decidiu há algum tempo que saber demais atrapalha o humor. “A ignorância é uma bênção, meu caro”, costuma dizer, “é um silêncio que ninguém interrompe.” Há algo de poético nessa recusa: ele lê pouco, opina com serenidade e conserva um brilho tranquilo de quem já não se abala com o peso dos fatos.

Mas sua calma tem um preço. A sua é uma ignorância voluntária, cuidadosamente escolhida — um abrigo contra o esforço de pensar. Não é a falta de acesso ao saber, mas a recusa a atravessar o desconforto que o pensamento impõe.

Chamam isso, em certos círculos, de aliteracia: a capacidade de ler sem realmente integrar a leitura à vida. No caso do Senhor Dupont, a palavra ganha um novo sentido — o da incapacidade voluntária de ler o que desafia suas certezas. Ele lê apenas o que confirma o que já acredita. Evita atravessar a fronteira de outro espectro político, outra cultura, outro modo de ver o mundo. “É muito esforço”, diz. E é mesmo. Pensar exige o desconforto de se ver descobrindo.

A Senhora Lambert, ex-professora de História, segue caminho distinto, mas com idêntico propósito. Descobriu que a aparência de simplicidade é um poderoso instrumento de aceitação pública. Fala com doçura e erros calculados, simplifica ideias complexas até que caibam num slogan e aprendeu a transformar o ‘não sei’ em forma de carisma. Sua ‘autenticidade’ é uma estratégia: a encenação da ignorância como prova de pureza moral.
Não é burrice, é cálculo. Um tipo de esperteza que entende o valor de parecer vulnerável num tempo em que pensar virou sinônimo de arrogância.

Entre Dupont e Lambert, a sociedade encontra o equilíbrio perfeito entre o alheamento e a conveniência. Um não quer pensar; a outra lucra por não parecer pensar. E ambos representam algo maior: o triunfo de uma cultura que premia o desinteresse e suspende a responsabilidade de compreender.

Talvez o desafio contemporâneo não seja mais iluminar os que estão no escuro, mas convencer os que se habituaram à penumbra de que vale a pena abrir os olhos. O problema é que, hoje, a escuridão é confortável — e o conforto é politicamente rentável.

A ignorância se tornou uma mercadoria emocional: vende-se como serenidade, compartilha-se como humildade, consome-se como estilo de vida. E o conhecimento, cada vez mais, parece um fardo: quem pensa demais, inquieta; quem lê o que o outro lado escreve, é suspeito; quem duvida, incomoda.

No fim, talvez a verdadeira lucidez esteja em não desistir de pensar — mesmo cansado, mesmo sozinho, mesmo quando o silêncio do mundo parece mais convidativo. Porque se há um luxo que ainda resiste ao tempo, não é o da ignorância tranquila, mas o da consciência desperta.

Paulo Siuves

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