Neste momento, não há lugar para poesia nas palavras que estou escrevendo; talvez isso seja um tipo de legado, pois reúne tudo o que possuo… No entanto, é possível que meus herdeiros não venham a existir… Quem poderia se interessar por palavras e sentimentos que, à primeira vista, não parecem ter significado? Em um tempo como o nosso, quem teria a sensibilidade de preservar minhas escritas como verdadeiros tesouros?
Ah, meus caros amigos, será que ainda vale a pena deixar mais preciosidades dispersas pelo ar, em lugares gelados ou mornos? Neste instante, o que me rodeia são incertezas e uma esperança que, atualmente, mantenho em banho-maria. Sinto que não estou me cabendo dentro de mim mesma… E, quem se preocupa com isso? Aqueles que herdaram a essência da mulher poetisa, que transforma a poesia em sua riqueza. A quem caberá encontrar a chave do meu baú de tesouros?
Refletindo sobre minhas crenças, imagino como seria a disputa entre meus possíveis herdeiros. Acredito que alguns deles tentarão se apropriar dos meus versos carregados de melancolia e solidão. Alguns poderão sentir-se mais atraídos pelos meus poemas fervorosos, repletos de paixão, enquanto outros poderão ansiar por reviver a infância em que o doce de coco era infinitamente mais tentador do que os de hoje. Contudo, ninguém será capaz de vivenciar as emoções que eu experimentei, desde a angústia mais intensa até aquelas paixões torcidas que me levaram à loucura.
Ah, meus descendentes! Lembrem-se de compartilhar minha herança com os necessitados de sabedoria, pois tudo o que deixo a vocês, apesar de parecer pouco, foi um presente que recebi um dia, sem pedir, de um poeta que guardou seu valioso legado dentro de mim. Não se tratava de dinheiro, prata ou ouro, mas de um tesouro que poucos desejavam, embora todos os que o possuíram se tornassem ricos, mesmo sem perceber que o verdadeiro herdeiro é aquele que lê.
Multiplico As estrelas do céu por suaves devaneios A ternura feminina pela busca de aconchego As cores das borboletas por poéticos anseios O perfume das flores por afáveis galanteios
Somo O voo da águia-serrana e a vastidão do universo A curiosidade estudantil e os gênios inquietos O molejo próprio do samba e a coragem do afeto A alegria juvenil e a mística que circunda o sexo O chilreio do Curió e a epifania avivada nos versos O brilhante lampejo da ideia e o som de um bolero A magia do trenó e o clarão que traz cura aos cegos A reflexão profunda e o ensejo do diálogo aberto
Subtraio Depressões dissimuladas por ‘emoticons’ e ‘likes’ A aguda dependência por gurus e celebridades Respeitáveis reputações em detrimento da probidade A conversão a ritos sem a ascensão da espiritualidade
Divido A sabedoria rósea, cultivada no solo da experiência, Pelos mistérios dos ventos, em frutos de transcendência A náusea filosófica, na politicagem de conveniência, Pelo magistério dos tempos, em sementes de resiliência
Encontro, como resultado:
A ditosa leveza de uma vivência feliz e plena, Na espiral da quietude, liberdade e outras proezas, Aventuras longas, memoráveis, mágicas, passageiras, Divina, instrutiva, densa, a matemática da PRESENÇA.
Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré
Elaine dos Santos: ‘Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré’
Quando concluí a graduação no curso de Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) https://www.ufsm.br/, no final do século passado, além do estágio em sala de aula, diante dos alunos, foi-nos solicitada uma aula expositiva de 50 minutos sobre um determinado conteúdo diante de nossos colegas de estágio, fazendo, claro, parte da avaliação.
Imediatamente, todos os meus colegas sabiam que eu escolheria o poeta Gregório de Mattos Guerra e os seus poemas satíricos. Naquela época, quando findava o curso de graduação, final do século XX, Gregório, o Boca do Inferno, e Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta português, eram os meus preferidos pela forma totalmente crítica com que viam a sociedade, pela maneira irônica com que manifestavam essas críticas.
Ocorre-me ainda outro texto que sempre teve a minha mais profunda simpatia: ‘Cartas Chilenas‘ https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_Chilenas, do Arcadismo brasileiro, atribuídas a Claudio Manoel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, em que eles narram as estrepolias do governador de Minas Gerais, como se ele fosse o governador chileno. O Brasil sempre foi um território propício para corrupção, propina, governantes despreparados e sátira / ironia escrachada.
Há uma ironia mais requintada, que exige experiência do leitor, que pode ser encontrada nas obras realistas do português Eça de Queiroz e parece-me que o exemplo mais claro está em ‘O crime do Padre Amaro‘, que é uma crítica contundente à sociedade portuguesa: aristocracia e clero. Mas (cá entre nós e o mundo), o Brasil produziu um esplêndido prosador responsável por obras que são primores em ironia – eu, pessoalmente, amo ‘Esaú e Jacó‘.
O autor/prosador que me refiro, claro, é Machado de Assis e, em particular, o romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, em que um narrador-defunto ou um defunto-narrador assume a fala e dedica as suas memórias ao verme que primeiro roeu as suas carnes. Sabemos todos (Erico Verissimo explorou essa máxima muito bem em ‘Incidente em Antares‘ que mortos e loucos não têm credibilidade e eles podem dizer tudo que lhes aprouver. No caso dos mortos, não se pode matá-los. No caso dos loucos, é preciso comprovar que são, de fato, loucos – de resto, é calúnia, difamação, inveja e afins.
Essa reflexão literária, porém, tem um propósito bem real, nada irônico. Recentemente, retornou à pauta, inclusive, pelas redes sociais, mas também em blogs, jornais e revistas, o termo ‘brainrot‘, que se poderia dizer algo equivalente à podridão cerebral, embora não seja um eventual distúrbio reconhecido por psiquiatras ou neurologistas.
Trata-se, na verdade, de uma espécie de vício em conteúdos fúteis/inúteis, consumidos à exaustão em redes sociais – a mera rolagem de postagens, sem aprofundar qualquer assunto, sem aprendizagem, com qualidade duvidosa. Muitas vezes, uma compulsão por eventos negativos: assaltos, acidentes automobilísticos, assassinatos etc. Qual o ganho individual disso?
Por outro lado, estudos têm apontado (e não precisa nem pesquisar muito para ver as grandes celeumas em redes sociais) a dificuldade para escrever e interpretar textos. Em língua portuguesa, usamos a sequência SVC – sujeito, verbo e complemento para produzir uma oração frasal. Quem respeita? E pontuação? Cadê? Em muitos casos, inexiste.
Chego à questão da ironia e da metáfora. Os mesmos estudos, que já mencionei, referem que há pessoas com uma gigantesca incapacidade para compreender duas figuras de linguagem simplórias para quem, por exemplo, assistia ao programa ‘Os trapalhões‘; um pouco mais elaboradas, talvez, em outros programas televisivos já fora do ar.
Cito pesquisas de Astrides Farias de Lima Oliveira, Aretuza Ladeia de Lima e Vanessa Polli, para não me estender. Preocupa-me o caminho que tomamos se uma pessoa não tem vocabulário para expressar-se com clareza e, para além disso, se uma pessoa se sente ofendida porque não compreende uma figura de linguagem que, incrivelmente, fez sucesso sob a pena do Boca do Inferno, de Bocage, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, passados 400, 300, 200 anos. Estamos andando na contramão, desaprendendo a língua portuguesa?
Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias
COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
‘Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias’
“A fome é eterna, como a vida e como a morte”. Machado de Assis
A interação entre indivíduo e seu espaço de vivência já foi tratada de forma recorrente no simulacro das artes. Não raro, o ambiente atua como um personagem coadjuvante que realça as experiências do main character, seja no ponto de intensidade, seja numa provação que delineia um entendimento de si próprio como uma engrenagem a seu derredor. No neorealismo italiano, a abordagem focada na pessoa, realça o matiz dramático impresso pelo cenário; a trilogia dos apartamentos de Roman Polanski tem sua aura de morbidez e insânia a partir dos lúgubres prédios que atuam como pano de fundo, formando um exemplo de densidade quase palpável daquela interação.
Na história do cinema nacional, o viés existencial a partir dessa abordagem foi tratado com peculiar sensibilidade nas obras de Walter Hugo Khouri, muitas vezes comparado ao sueco Ingmar Bergman.
O espectro, repise-se, de coadjuvação do ambiente como uma ferramenta narrativa já foi utilizado belissimamente, inclusive com uma fotografia melancólica e azulada, no cult ‘Cidade Oculta’, (1986), no qual a urbe parece quase voluntariamente guiar as peças de sua engrenagem rumo ao clímax da ação.
No filme ‘Estômago’, de 2007, Nonato, (João Miguel) é um migrante nordestino que chega à cidade de São Paulo como muitos outros desde a explosão industrial dos anos 50 e 60, onde descobre um talento nato pela culinária, inicialmente, trabalhando como cozinheiro em um bar, sendo então descoberto pelo dono de um renomado restaurante. Sua história é contada de forma não linear a partir de uma cela na prisão.
O porquê de sua segregação e o percurso até seu derradeiro destino é intercalado pelo rememorar de descobertas na metrópole, incluindo um dúbio e idealizado relacionamento com a prostituta Íria, interpretada por Fabiula Nascimento. O tom de ingenuidade e quase pureza de Nonato é aos poucos confrontado com as intempéries e conflitos morais e circunstanciais no meio urbano, sempre impassível a seus habitantes naturais assim como os radicados.
A expressão “pegar pelo estômago” parece ser bem explorada nesta produção brasileira que evidencia a todo instante os prazeres e deleites proporcionados por uma refeição bem preparada. Raimundo Nonato, o cozinheiro, nos deixa claro que sabe o que está fazendo. Suas habilidades no preparo das refeições aprendidas, inicialmente, nos fundos de um bar fazendo coxinhas e afins, foi ganhando cada vez mais requintes de cozinha internacional.
Raimundo conhece os ingredientes, sabe como combiná-los no prato, parece ter o poder nas mãos ao misturar os alimentos e fazer surgir preparos “dos deuses”, exalando odores agradáveis, estimulantes na textura e no visual. Cores, formas, disposição, vibração. A refeição é convidativa, provocante, aguça aos olhos e a boca, se faz desejante, tudo o que se quer é devorá-la.
Uma voracidade ardente, muito bem vivenciada pela prostituta Íria, o grande amor de Raimundo. Ela expressa erotismo e sedução através da comilança. A pulsão oral evidenciada pelas cenas de grande prazer envolvendo o devorar das refeições e o ser devorada no ato sexual. Genuinamente, uma das pulsões que mais nos marca é a oral. Desde os primórdios do nascimento procuramos satisfazer a necessidade por alimento. Gradativamente, esta necessidade torna-se demanda de amor. Não buscamos apenas saciar a fome, o que desejamos mesmo é o toque da pele, o afago, o calor, o acalento, a segurança de estar sendo cuidado e mais, os regozijos que este momento proporciona para o corpo e para a mente. Raimundo Nonato “pega pelo estômago” a todos a sua volta.
Ele conquista sabedoria, autonomia, ganhos financeiros melhores, e até arrisca um pedido de casamento a sua amada Íria que, através do cozinheiro, evidencia a boca enquanto zona erógena que a entorpece de prazer. Curiosamente, em alguns momentos do filme, o enquadramento parece focar em outro orifício. Seria algo provocativo do diretor ao sutilmente nos lembrar que “tudo que entra, sai?”. Afinal a analidade também é um fator discutível quando se trata de zonas erógenas, e, propositalmente ou não, tal provocação é induzida a cada foco de câmera, num rememorar conjunto dos “extremos do prazer” e a multitude de estímulos proporcionados pelo corpo e mente.
Certa vez Nonato ouve de seu chefe, dono do restaurante italiano onde trabalhava atualmente, que o filé mignon era como se fosse a nádega da mulher. A melhor parte para se comer. Enquanto ele descrevia este pedaço da carne, apontava a Nonato o lugar exato de onde retirar da peça do boi a verdadeira iguaria. Parece que esta informação fixou como tatuagem no imaginário de Nonato: carne, nádega, melhor parte.
O que acompanhamos nas cenas seguintes é a passagem da metáfora para a coisa em si: Nonato, literalmente, prepara a nádega de Íria como um prato principal. Inconformado com o que presencia numa noite, após sua amada não lhe dar notícias, vê uma das portas do restaurante entreaberta e ao adentrar o local, depara-se com um cenário indigesto: Iria e seu chefe em pleno romance regado a vinhos e muita fartura. Além desta infeliz visão, a prostituta que dizia a Raimundo nunca beijar seus clientes, enlaça sua língua ao do chefe, parecendo torná-la também parte daquela refeição.
Nonato então ceifa a vida daqueles dois traidores nos brindando com a icônica cena na cozinha fritando a iguaria. Na prisão, o cozinheiro passa a fazer verdadeiros milagres com os parcos alimentos ofertados aos presidiários, além da sujidade e imundície do local onde eram servidos. Notadamente, pelas suas habilidades e conhecimentos culinários passa a ser requisitado pelos colegas, conquistando espaço e prestígio. Mais uma vez a máxima “pegos pelo estômago” entra em cena e Raimundo vai ganhando cada vez mais respeito e admiração. Só restava um feito para que o cozinheiro ganhasse sua estrela: eliminar a chefia. Quase uma reprise do que havia feito outrora.
Em um banquete final preparado com muito cuidado e dedicação para os encarcerados, Raimundo Nonato coloca seu tempero especial pondo fim a quem o impedia de alcançar patamares maiores. Pelo estômago mata-se a fome, e também mata-se o corpo. O cozinheiro que antes só sabia fazer coxinhas, hoje desfruta, mesmo que nos limites da cadeia, de um peculiar sentimento de glória. Sua expressão final é de plena satisfação, nos deixando pistas para novos preparos.
O título foi redescoberto pela disponibilização nas plataformas de streaming, que vem servindo inclusive à popularização de filmes então esquecidos ou não destacados de forma merecida quando de seu lançamento, tal como a era das videolocadoras propiciava projeção a fitas cujo sucesso não havia sido expressivo nos cinemas. Recentemente, de forma reversa, uma importante realização nacional recebeu também novos ares a partir de seu relançamento nos cinemas após processo de restauração, ‘A Hora da Estrela’, adaptado da obra de Clarisse Lispector.
Assim como o protagonista, o olhar não fenecido pela dureza da cidade, mas ainda mantido intocado pela dureza da vida sem oportunidades, apresenta ao espectador a história de Macabéa, que de forma similar, é tocada pela indiferença e aspereza da cidade grande, que oferta a promessa ilusória de um aparentemente “dar de mãos” como amoroso receptáculo, mas que cerra os olhos à sorte de seus integrantes.
Tamanho o sucesso das reflexões paralelamente compostas à comicidade, que o longo ganha nova vida também com o lançamento da continuação, que estreia nos cinemas no dia 29 de agosto. Quais serão os novos sabores ou dissabores criados por Nonato?
A saúde integral é um conceito que vai além da ausência de doenças, abrangendo o bem-estar físico, mental, emocional, social e espiritual do indivíduo. Este modelo holístico reconhece que a saúde é influenciada por uma variedade de fatores, incluindo estilo de vida, ambiente, relacionamentos e espiritualidade. Contudo, quando abordamos a saúde integral, nos deparamos com vários paradoxos inerentes à vida moderna. Estes paradoxos refletem as complexidades e contradições que enfrentamos ao tentar alcançar uma vida equilibrada e saudável.
Paradoxo da Conectividade
Em uma era de hiperconectividade, onde a tecnologia nos permite estar em contato constante com outras pessoas, enfrentamos um paradoxo: a solidão. Em breve abordaremos solidão x solitude, Apesar de estarmos mais conectados digitalmente, muitas pessoas sentem-se isoladas emocionalmente. A saúde integral exige não apenas conexões superficiais, mas relações profundas e significativas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre o uso saudável da tecnologia e a manutenção de interações humanas autênticas. É o que chamamos de humanizar o humano.
Paradoxo da Abundância
Vivemos em um mundo de abundância de alimentos e informações. Contudo, essa abundância traz consigo desafios para a saúde integral. O acesso fácil a alimentos ultraprocessados e informações desencontradas pode levar ao excesso de peso, doenças crônicas e desinformação. O paradoxo aqui é que, apesar da abundância, a verdadeira nutrição e o conhecimento confiável são frequentemente negligenciados. Para alcançar a saúde integral, é crucial fazer escolhas conscientes e informadas. Ainda sofremos com as consequências do sobrepeso e da obesidade.
Paradoxo do Tempo
O ritmo acelerado da vida moderna cria o paradoxo do tempo: quanto mais tentamos otimizar nosso tempo para sermos produtivos, menos tempo parece que temos. A busca por eficiência muitas vezes sacrifica o descanso, a reflexão e o autocuidado, essenciais para a saúde mental e emocional. A saúde integral requer uma abordagem equilibrada, onde o tempo para relaxamento e autocuidado é tão valorizado quanto o tempo dedicado ao trabalho e outras responsabilidades. A chave aqui é administrar o tempo.
Paradoxo do Controle
Outro paradoxo na busca pela saúde integral é o desejo de controle versus a necessidade de aceitação. Muitas vezes, procuramos controlar todos os aspectos de nossas vidas para alcançar um ideal de saúde e bem-estar. No entanto, a realidade é que nem tudo está sob nosso controle, como doenças imprevistas ou eventos estressantes. A verdadeira saúde integral envolve a aceitação de nossa vulnerabilidade e a prática da resiliência e da flexibilidade frente às adversidades.
Paradoxo da Felicidade
A busca incessante pela felicidade pode, paradoxalmente, levar ao sofrimento. Na sociedade moderna, existe uma pressão constante para estar sempre feliz, o que pode resultar em negação de emoções negativas e estresse adicional. A saúde integral reconhece a importância de todas as emoções e promove o bem-estar através da aceitação de uma gama completa de experiências emocionais. Isso inclui aprender a lidar com tristeza, frustração e ansiedade de maneira saudável. Felicidades é um estado de espírito.
A saúde integral é uma jornada contínua que envolve o reconhecimento e a navegação dos paradoxos da vida. A chave para alcançar esse estado de bem-estar reside em encontrar um equilíbrio entre as várias dimensões da vida, aceitando as imperfeições e as incertezas que ela apresenta. Ao adotar uma abordagem holística e compassiva para consigo mesmo e para com os outros, é possível viver de maneira mais plena e significativa, mesmo em meio às contradições e desafios da existência humana.
Era noite. Algo ocorria dentro de mim. Eu não era a mesma pessoa. Após tantas letras, alguns números rodeavam minha cabeça. Uma lógica confusa. Meus versos se tornavam além das estruturas – das minhas estruturas. Eu não sabia exatamente o que estava acontecendo.
“Onde estou?”, pensava. Na pracinha do Bairro Peixoto, algo estranho acontecia. Conversei com uma bela moça que me dizia que o destino nos reserva surpresas que só Deus poderia definir. Mais um dia se passava. Fiquei tão tonta que até para hospitais me levavam. Sua presença era como aprender além do que eu poderia aprender. Troquei meus livros favoritos por livros nos quais jamais leria por conta própria. E eram livros interessantíssimos. Meus versos foram mudando de tom, de som, de saudade. E eu estudei matemática mais um pouco.
A noite era estranha. Eu deveria ser feliz ao seu lado, mas eu não te conhecia. Jamais saberia onde encontrá-lo. Meu destino estava traçado com ele. E ele era real, mas você não era. O portal deveria se fechar antes que algo pior acontecesse. Antes que eu enlouquecesse de vez. Como fugir do portal? Você era o professor mais incrível do mundo, o amigo mais fiel, o amor que eu jamais teria. Nos meus sonhos, eu te via em várias dimensões. O tempo era diferente com você. O tempo era só nosso. Enquanto o outro homem, que era destinado para casar comigo, me cobrava de todas as maneiras. Eu não sabia o que fazer.
Na verdade, quando me vi longe daquele portal, senti que precisaria te encontrar. Tive que escolher o destino que deveria seguir. Fiquei tão triste, tão sozinha. Você tinha ido embora. E eu não sabia onde encontrar você. Os seus números se foram, suas músicas estranhas, os bailes de época, nosso bebê. Tudo tinha ido embora. Todas as horas do relógio voltaram a ser as mesmas. Tudo estava no lugar. As equações se apagaram e deram luz ao meu novo livro… tão triste como antes. E eu não sabia onde te achar.
Não pude continuar com isso. Minha vida pacata, minhas lágrimas, minhas dúvidas se fico ou se vou, se te procuro ou se aceito o meu destino chato. Foi quando uma vela se apagou…
Sergio Diniz da Costa: ‘Insônia, Mussorgsky e Dürrenmatt’
Sou um insone inveterado, como já declinei em outra crônica desta revista.* E, como tal, nas infindáveis horas de vigília nas madrugadas, as minhas opções são assistir a filmes ou escrever.
Filmes em geral, porém ─ e infelizmente –, apresentam excesso de violência. Uma péssima companhia para conciliar o sono! E, de violência em violência, gasto as pilhas do meu controle remoto, trocando de canais.
A saída, nesse caso, é buscar algum canal com músicas. Preferentemente, de qualidade. E, na TV paga, deparo-me com o canal Arte 1.
São quase 3h da manhã e uma agradável e saudosa surpresa: no Arte1 In Concert, uma orquestra executa a peça Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, um compositor e militar russo, nascido em 21 de março de 1839, em Toropets, Rússia, e conhecido por suas composições sobre a história da Rússia medieval, que me transporta ─ emocionado ─ para o ano de 1975, quando então, com 18 anos de idade, participava do teatro amador de Sorocaba, sendo membro do Grupo TEMA (Teatro Moderno de Amadores), sob a direção de Moisés Miastkowosky, um dos diretores mais importantes do teatro moderno brasileiro que, infelizmente, em 2014 cumpriu sua missão terrena.
E, nesse transporte temporal, revejo um jovem aprendiz de teatro, encenando a peça A Pane, do autor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (Konolfingen, 5 de janeiro de 1921), um proponente do teatro épico, cujas peças, mais do que propiciarem simples diversão passiva, implicavam um debate teórico. Essa peça, na verdade, um conto, publicado em 1955, apresenta uma alegoria da Justiça como cena teatral e induz a conclusões desorientadoras.
Nele, o carro de um caixeiro-viajante (Alfred Traps) quebra no meio da estrada e ele é obrigado a procurar auxílio num pequeno vilarejo, onde acaba decidindo pernoitar. Como a estalagem está lotada, recorre a um velho juiz aposentado que aluga quartos em sua casa. Durante o jantar, um verdadeiro banquete para o qual também foram convidados três outros velhos amigos do anfitrião, ao caixeiro-viajante é proposto um jogo: participar como réu da encenação de um julgamento em que os quatro velhos aposentados interpretarão as suas antigas funções de juiz, promotor, advogado de defesa e carrasco. E, no meio de uma verdadeira orgia gastronômica, Traps se julga verdadeiramente autor de um crime que não cometera, o que o leva ao suicídio.
A peça, com figurino e cenário riquíssimos, foi emoldurada por Mussorgsky, com Quadros de uma Exposição, uma suíte escrita para piano, em junho de 1874, que descreve, em metáforas, um passeio em uma exposição de quadros, e foi composta como uma homenagem do compositor a um amigo falecido em 1873, o arquiteto e pintor Viktor Hartmann, cujos quadros estavam expostos numa galeria de São Petersburgo.
Essa peça, de certa forma, induziu-me a seguir a carreira advocatícia. E, depois de trabalhar por 12 anos como técnico químico, nela ingressei e permaneci por pouco mais de duas décadas, imaginando que poderia defender muitos Alfred Traps das ciladas que algumas pessoas impõem a outras.
O advogado de Traps – na peça – não conseguiu absolvê-lo, o que o levou ao suicídio. Da minha feita, os anos me fizeram constatar que fui um Dom Quixote, lutando contra os moinhos de uma Justiça excessivamente formal, lenta, desaparelhada. Ao contrário de Traps, todavia, não me suicidei; aposentei-me e encerrei a carreira jurídica para, a partir de então, abraçar, plenamente, a carreira literária.
Hoje, sou outro tipo de Dom Quixote. Todavia, ao contrário do personagem de Cervantes, não luto contra moinhos de vento; luto contra uma tela em branco que, muitas vezes, recusa-se a ser preenchida por letras pretas e ideias coloridas. Até que, de repente, no meio da madrugada, Mussorgsky e Dürrenmatt me livram dessa pane inspiratória e me levam para visitar os quadros de uma exposição.
* O que eu vim fazer neste mundo? Revista Bemporto. Edição de maio/ 2015.