A narcisista ingênua
Virgínia Assunção: ‘A narcisista ingênua’
A fila da padaria estava devagar, e minha paciência por um fio. Diante de mim, uma mulher falava ao celular, e era impossível não ouvir a conversa. Em um misto de curiosidade e cansaço, comecei a ouvi-la atentamente.
– “Não, eu não sou como a Sônia, ” dizia ela, com uma voz carregada de indignação. – “Você sabe, ela é uma dessas que adora se mostrar. Vive postando foto em rede social, sempre querendo chamar atenção. Uma egocêntrica de primeira, nunca vi igual! ”
Olhei de relance para a cesta de compras dela: uma variedade de produtos cuidadosamente escolhidos, queijo, presunto, brioches, ovos, vinho e pão. A mulher, muito bem vestida e ostentando um relógio brilhante, continuava sua crítica severa e mordaz sobre a tal Sônia.
– “E a pior parte é que ela nunca admite que erra, ” – continuou a mulher, alheia à fila que começava a se impacientar atrás de nós. -“Eu, tenho certeza, sou humilde o suficiente para reconhecer meus defeitos. Mas ela, não! Nunca assume responsabilidade por nada. ”
À medida que ela falava, mais claro se tornava que a tal Sônia talvez fosse um reflexo distorcido da própria mulher no celular. Seus gestos altissonantes e a forma como olhava ao redor, certificando-se de que todos prestavam atenção, revelavam mais do que ela pretendia.
-“O que mais me irrita é essa necessidade de aprovação que ela tem, ” prosseguiu, enquanto ajeitava o cabelo olhando o reflexo na porta do refrigerador próximo. – “Eu nunca precisei disso. Sou autossuficiente. ”
Naquele momento, não pude deixar de esboçar um sorriso. A narcisista que não se reconhece como tal é uma figura quase trágica, se não fosse cômica, perdida em sua própria contradição. Ela acusava a amiga Sônia de comportamentos que, visivelmente, eram seus. E, ao acusá-la, revelava mais sobre si do que qualquer confissão direta.
Enfim, chegou sua vez no caixa. Ela finalizou a ligação com um ar de superioridade e um – “eu ligo depois, isso aqui está uma bagunça. ” Enquanto a moça do caixa registrava suas compras, a mulher ainda fez questão de comentar: – “Essas filas são um absurdo, não é? Parece que ninguém aqui sabe organizar as coisas. ”
Eu, logo atrás dela, não pude deixar de refletir sobre a ironia daquela cena. Muitas vezes, as palavras que usamos para descrever os outros são espelhos que revelam, de fato, nossa verdadeira imagem. Naquela padaria, a narcisista estava, sem perceber, despida de suas máscaras, subestimando a todos, enquanto deixava transparecer suas próprias fraquezas falando dos defeitos alheios.
Fui para casa pensando na complexidade humana, e em como somos cegos para nossas próprias falhas, enquanto as vemos com a maior clareza nos outros. E, em meio a essa reflexão, pensei comigo mesma em tentar, ao menos, de alguma maneira, ser diferente. Afinal, reconhecer-se é um passo para entender o mundo ao nosso redor, e, provavelmente, julgarmos menos as pessoas.
Virgínia Assunção