O Português que a África fala
Fidel Fernando: Artigo ‘O Português que a África fala’


às 23:33 PM
A língua é muito mais do que um instrumento de comunicação: é um campo de disputas simbólicas, culturais e políticas. No contexto afro-brasileiro (e, por extensão, no angolano), ela revela marcas profundas de uma história racializada, feita de resistências e ressignificações.
Ao analisarmos o português falado no Brasil e em Angola, torna-se evidente que a herança linguística vai além da simples influência colonial lusitana. A oralidade, os sotaques, as escolhas lexicais e as estruturas gramaticais são testemunhos vivos de um passado de opressão e de um presente ainda marcado por desigualdades. Nas ruas, nas igrejas, nas famílias e nas salas de aula, o modo de falar continua a ser vigiado, corrigido e, muitas vezes, estigmatizado.
Essa vigilância está directamente relacionada ao preconceito linguístico, que, na prática, opera como uma forma velada de racismo. Desde os primeiros contactos entre os africanos escravizados e o português europeu, houve uma imposição violenta da língua do colonizador. Contudo, essa assimilação nunca foi completa. O português, tal como é falado hoje no Brasil e em Angola, carrega traços linguísticos de línguas africanas, sobretudo das línguas bantu, como o kimbundu, o umbundu e o kikongo.
Exemplos dessa influência abundam. Mendonça (1933, apud Severo, 2019) destaca o impacto da pronúncia de origem africana em formas como ‘foya’ por ‘folha’, ou ‘cafezá’ por ‘cafezal’. Entre os fenómenos mais relevantes está o rotacismo: a troca do som [l] por [r], como em ‘frecha’ por ‘flecha’. Segundo Cambolo (2025), isso ocorre por partilharem o mesmo ponto de articulação. É uma adaptação oral legítima, mas frequentemente ridicularizada.
Em Angola, essas ocorrências também são comuns. O caso de ‘sarsicha’ por ‘salsicha’, ‘sorta’ em vez de ‘solta’, ‘barde’ no lugar de ‘balde’, ‘sardo’ por ‘saldo’ são vários exemplos ilustrativos. No entanto, em vez de serem reconhecidas como heranças linguísticas, essas variações são, muitas vezes, tratadas como ‘erros’, especialmente no ambiente escolar.
Outro fenómeno recorrente é a aférese, tal como em ‘mor’ por ‘amor’ ou ‘nhado’ por ‘cunhado’. Estas formas são naturais em contextos familiares, mas tornam-se alvo de correcções quando atravessam para espaços escolares elitizados. O que se observa aqui é a tensão entre o português da vivência e o português do poder, onde quem define o que é “correcto” define também quem pode ser incluído socialmente.
A questão do plural também exemplifica a influência bantu. Como explica Domingos (2024), construções como “as casa grande” derivam da lógica gramatical das línguas bantu, que usam prefixos e não sufixos para indicar número. O que se interpreta como erro de concordância é, na verdade, uma estrutura coerente com outra lógica linguística.
O preconceito linguístico afecta especialmente as crianças negras. Quando são corrigidas com desprezo por falarem como os seus avós ou vizinhos, o que está em causa não é apenas a língua, mas a própria identidade. A isso soma-se a dimensão de género: as mulheres negras são as mais vigiadas, corrigidas e silenciadas. Gonzáles (1984) evidencia esta dupla opressão ao lembrar o papel social das mulheres negras historicamente subordinadas e a forma como a sua fala é tratada.
Neste contexto, a escola desempenha um papel crucial. Pode perpetuar o preconceito ao impor uma norma-padrão afastada da realidade dos alunos, ou pode tornar-se espaço de valorização das múltiplas formas de falar português. A minha experiência como professor mostrou-me que, ao respeitar a oralidade dos alunos, é possível promover maior envolvimento e sucesso académico. Ensinar a norma culta não deve significar apagar as outras formas de falar, mas, sim, ampliar o repertório linguístico com consciência crítica.
O português que se fala no Brasil é fruto de séculos de convivência, imposição, resistência e criatividade. Como afirma Andrade (2020), os sons, a melodia e o vocabulário foram moldados por vozes africanas. Essa herança está viva, mesmo quando disfarçada de “erro”.
Em última análise, aceitar a diversidade linguística é aceitar a pluralidade do povo que compõe o Brasil e Angola. É reconhecer que a língua do poder foi, sim, transformada pela força e pelo saber dos povos africanos. E é, sobretudo, recusar a ideia de que há uma única forma legítima de falar português. Nesta hora, lembramo-nos do questionamento de Gonzáles (1984), “quem que é o ignorante?”




