A composição musical “Explode Coração”, letra e música do cantor e compositor Gonzaguinha, que também foi gravada pela cantora Maria Betânia, a qual foi lançada no ano de 1979, em análise mais direta, reflete um confronto entre um sentimento avassalador de amor existente e a necessidade de explanar esse amor escondido no mais profundo do seu ser.
O autor vê se aproximar o momento de jorrar e explanar para todos o amor sofrido e sentido por alguém que não enxerga esse belo sentimento.
A pressão é forte e ele não suporta mais não ser visto e sentido seu imenso amor. Não deseja mais segurar e seu coração explode de emoção sentida e seu amor emerge com todas as suas forças e desejos de amar e ser amado.
Entretanto, a música também ao meu ver, reflete, sem sombra de dúvida, momentos tristes do autor aliado ao imenso amor, possivelmente platônico dedicado a alguém que não o enxerga e que o deixa amargurado, melancólico, triste e delambido por causa desse amor impossível, mas ele é forte e ao explodir seu amor para todos é uma maneira de tentar vencer as adversidades do momento desse seu profundo amor.
Em sentido bem mais amplo, a música pode ter sua letra analisada de forma subjetiva, e percebe-se que é um grito de liberdade da sociedade que já não suportava e não aguentava mais a opressão da ditadura e o amor oprimido representava o povo brasileiro e seu desejo de liberdade e a anistia, geral, ampla e irrestrita que o governo concedeu no citado período que a música foi lançada.
É, sem sombras de dúvidas, o ‘explode coração’, é a voz do povo que se faz ouvir em busca da liberdade, após tantas prisões, torturas e assassinatos.
Vejo e sinto nessa belíssima composição uma forma mais que sutil do poeta Gonzaguinha falar para o povo brasileiro sobre a conjuntura política reinante em sua época, sem explicitar diretamente a situação.
Somente quem analisou com olhar mais escorreito é que pode perceber essa comparação entre a música ‘Explode Coração’ e o grito de liberdade com a chegada da anistia.
Foi assim que eu analisei, e sei que, porventura, poderá haver outras análises.
Bruna Rosalem: 'Uma experiência soco no estômago: falando do longa-metragem Miss Violence'
COLUNA: PSICANÁLISE E COTIDIANO
Uma experiência soco no estômago: falando do longa-metragem Miss Violence
Miss Violence parece nos mostrar a face obscura e perversa do ser humano.
Apesar do nome do filme conter “violence”, não se trata de violência explícita com cenas banhadas a sangue e entranhas. Vai muito mais além e, me parece, ser pior: a provocação e o desconforto gerados psicologicamente. Isso sim não sai da cabeça. Quem quiser experimentar assistir o longa, fica um alerta, a incômoda e impactante trama permanecerá em seus pensamentos por muitos dias.
Miss Violence é um filme de origem grega dirigido por Alexandro Avranas. Premiado no Festival de Veneza de 2013, conta a história de uma família pouco convencional formada por avô e avó, filhas, netas e um neto. A película começa com a festa de aniversário de 11 anos de Aggeliki, e logo é perceptível o quanto a situação em certos momentos parece ser incômoda. Todos ali, por algum motivo, se mostram desconfortáveis, ora entregues à diversão, ora manifestam receio. O baque inicial se dá quando a neta aniversariante se suicida, defenestrando-se pela janela. Saberemos a motivação deste ato mais no decorrer do longa.
O filme todo é angustiante. De ritmo lento e linear, praticamente não há trilha sonora, a fotografia é composta por uma paleta de cores apagadas e sem vida, são poucos diálogos e atuações propositadamente contidas. Isso só faz aumentar no espectador a sensação de que algo muito ruim está acontecendo, porém fica nas entrelinhas, no não dito, nas sutilezas dos movimentos e atitudes daquelas pessoas imersas em sua estranha rotina.
Vamos acompanhando o pai (avô) e a filha mais velha numa espécie de acordo velado em suas diversas saídas para visitar potenciais clientes. O diretor do longa opta por não nos mostrar, num primeiro momento, o que de fato eles faziam nestas visitas. No entanto, gradativamente, tudo vai sendo relevado de maneira fria e dolorosa: o patriarca submetia suas filhas e netas a serviço da prostituição. Em troca, quando bem entendesse, ele as repassava algum dinheiro ou banqueteava a família com guloseimas como pizzas, doces, ou ainda, uma mesa farta no almoço.
As cenas envolvendo as moças são perturbadoras, não por mostrarem explicitamente os atos, mas justamente por deixar à imaginação do espectador o que acontecia na casa daqueles clientes.
Numa jogada de ângulos, a experiência se torna ainda mais nauseante. E o pior ainda estava por vir: a neta mais nova, uma criança, seria a próxima a ser usava como mercadoria. Confesso que esta cena do filme me causou verdadeiro estrago. Nunca havia sentido tamanho desalento. Tive vontade de resgatar aquela menina das mãos traiçoeiras do perverso avó ao entregar aquele frágil ser a um desconhecido. Neste momento, o diretor faz questão de fixar por uns instantes a porta do quarto onde eles estavam, elevando às alturas o nervosismo provocado por aquela situação.
Num diálogo no carro entre a neta do meio e seu avó, após a menina cumprir “seu serviço”, ela revela a motivação do suicídio de Aggeliki. Após ter tomado conhecimento de que inevitavelmente ela participaria deste enredo aterrador, sabia que não haveria chances daquela realidade ser modificada. Para qualquer lado que pudesse ir, seu destino seria trágico, então restava-lhe apenas acabar logo com isso.
Caminhando mais adiante, a película vai nos revelando uma avó e esposa apática, violentada e sempre muito doente, acamada. Parecia não estar a par dos acontecimentos que enredavam aquela família. No entanto, mais ao final do filme, nos certificamos que ela sabia o tempo todo o que se passava naquela casa. E a gota d’água acontece quando a sua netinha volta “do serviço” aos prantos, traumatizada, sem entender nada, perdida em suas emoções, olhando, em súplica, por ajuda para a sua mãe que nada fez. Se analisarmos, a mãe também era só mais uma vítima.
Cabe mencionar, antes de chegarmos ao ato final, que o neto, um pré-adolescente, era constantemente humilhado pelo avó. Por vezes deixava o menino sem comer, obrigando-o a olhar os outros se alimentarem e submetia-o a agressões. Em resumo, todos ali estavam expostos a abusos físicos e psicológicas, deixando um rastro de destruição em suas almas.
O desfecho surpreende o espectador. A inerte matriarca, cansada de sustentar aquela fachada de família feliz, decide colocar um fim àquela torturante vida: numa manhã a filha mais velha se depara com o pai morto na cama. O diretor nos leva imediatamente à esposa como a autora, ou, quem sabe, a grande salvadora! Ao ver a imagem, a filha manifesta uma alucinada gargalhada. Um misto de prazer e medo. Contentamento e dúvida.
Miss Violence parece nos mostrar a face obscura e perversa do ser humano. Que laços familiares nem sempre significam amor, e que, muitas vezes, pode ser algo devastador.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
Orlando Rafael Ukuakukula: "O questionamento dos ganhos da independência de Angola na narrativa ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso"
O questionamento dos ganhos da independência de Angola na narrativa ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso
Noites de Vigília é, felizmente, a obra que, até nesta data, mais me cria prazer de sobre ela abordar. Sinto-me condenado a fazê-lo. Tem sido prova, por me despertar em relação às várias situações do país, do adágio segundo o qual “quem lê um livro não é a mesma pessoa”. Cardoso transformou minha forma de ver Angola pela brilhante realidade ficcionada do imaginário que cria na sua obra. Desta vez, a condenação da minha análise estará voltada nas marcas que demonstram uma INDEPENDÊNCIA FALHADA, a começar a análise nos paratextos que, com todo conjunto textual, justificam o título da obra.
Considero, em relação à literatura, mais especificamente obras literárias, que nela tudo merece atenção, inclusive um simples risco que possa aparecer na capa. E é exatamente na capa da obra Noites de Vigília que começaremos a nossa análise, como sinônimo de respeito, pedir licença antes de entrar (no texto).
“A etmologia da palavra «paratexto» remete-nos para aquilo que acompanha o texto (para = junto a); ou seja, assinala a direção, intenção e objectivo de atingir um destinatário: o texto” (Matos, 2012).
O paratexto é, então, todo elemento que vai aparecer antes do próprio texto da narrativa. Assim, a capa, a lombada e a contracapa são locais, por excelência, onde se encontram os paratextos, aqui, vamos nos focar na capa.
Três cores, essencialmente, se destacam na capa de “Noites de Vigília”: vermelho, amarelo e preto. Não é mera coincidência que isso represente a bandeira de Angola ou, se quisermos, como nos confundem, a bandeira do MPLA, o que implica que, com isso, o autor nos situa, como espaço, o país onde decorreu todo o evento da narrativa e sobre o que narra, bem como ajuda a entender a razão de eu ter delimitado, como o nome “Angola”, no título que ofereci a esta análise. Além disso, o paratexto icónico (imagem), exibido na capa, é de três indivíduos, representando o povo, com as mãos ao ar e pedra, formando o punho, representando uma reivindicação. Aliás, o próprio título da obra é convidativo. “Noite”, indicando trevas ou escuridão e “Vigília” indicando insónia, ou seja, privação do sono durante a noite. Quão é bom e suave dormir quando há sossego! quando a noite chega! Por que não pode o povo dormir depois de alcançar a independência? Significa que, no meu entender, o autor nos chama a despertar, a questionar, a reivindicar o que costumam, em vários corredores, a chamar de independência. Isso é confirmado, agora entrando no texto, nas falas das personagens e do próprio narrador.
“Quinito olhava vagarosamente para as mercadorias expostas, latas de leite em pó, de conservas, de refrigerantes e cerveja, garrafas de vinho, de uísque, detergentes de várias marcas, comparava os preços e concluía rapidamente que o dinheiro que tinha era um nada que não dava para nonadinha” (Cardoso, 2013).
O parágrafo acima perde lógica se não explicarmos que Quinito, na narrativa, era um antigo combatente, mutilado por causa disso, que lutou para a libertação e independência de Angola, que derramou sangue e que, aliás, lutou no lado do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), actualmente, o governo no poder. Quinito não conseguia comprar nem leite em pó, mesmo depois da independência, que na narrativa, reza o autor, nessa altura, já ter passado vinte e sete anos, desde 1975 a 2003, como confirma o tempo da narrativa.
– um pouco mais animados, passaram então em revista o que a ambos acontecera durante os cerca de vinte e sete anos em que tinham deixado de se ver. Na corrente do tempo, passava o ano de 2003 (pág10).
Independência significa liberdade, autonomia. Carácter de pessoa independente (Tavares at al, 347).
É assim que, no meu ponto de vista, independência traz, consigo, uma nova forma de pensar e ver o país; o desenvolvimento. Traz um “homem novo”, como está marcado no hino nacional. Significa que desde a data que se proclama, todos, independentemente da origem étnica, raça, cor, tribo ou, até mesmo, grupos partidários, começam a sair beneficiados. Todavia, é diferente do que se constata nas falas das personagens em Noites de Vigília, uma narrativa atemporal, histórica, que se diga.
– (…) arrependido, mil vezes arrependido de me ter metido numa luta sem glória (pág 17).
Ou seja, aquele povo do paratexto, na capa, a ser representado por Quinito e Siundo, no texto, porém uma metonimia do todo, arrepende-se, mil vezes, de ter lutado para a libertação e independência: uma consequência. Pois, quem se arrependeria duma luta com ganho? Quem se arrependeria depois de estar livre? Ou será que exite um grupo dos beneficiados e outro dos não beneficiados? O nosso objecto de análise, que é a obra, responde por ela mesma:
– Quinito, lá perto de Viana onde que morava, vivia numa barraca de papelão que ele próprio tinha construído (pág 19).
– (…) os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais miseráveis (pág 18)
Volvidos 46 anos de independência de Angola, quase meio século, os problemas que Quinito e Saiundo enfrentam continuam, daí metonimicamente representarem todo povo sofredor que, culpa das lutas político-partidárias, orgulho, egoísmo, falta de amor ao próximo, sede e centralização do poder, desunião, rivalidade, continuam a sofrer.
– (…) o nosso sofrimento não tem cor partidária. O que nos une neste momento é o facto de nos sentirmos excluídos da sociedade (pág 30).
Portanto, Noites de Vigília, através das falas das personagens e do próprio narrador, questiona os ganhos da independência, na medida em que relata, depois de consegui-la, ainda assim, o sofre de um povo que se vê distante de usufruir dos sonhos preconizados, quando confirmado, outra vez, na fala de Quinito:
– “se pressentia que a mudança estava para acontecer, que os sonhos que tínhamos sonhado um dia iam se transformar em realidade, que a canção da liberdade ia ser cantada de mãos dadas por todos nós, os filhos desta terra” (pág 24). A obra nos ajuda a perceber que não há ganho algum com a Angola independente, mas que se há, só alguns usufruem disso. É por isso que, e não menos importante:
– A sociedade tem deveres para connosco. É inadimissível que depois de termos dado o corpo ao manifesto, ninguém nos ligue nenhuma. TEMOS, POIS, DE NOS ORGANIZAR PARA QUE POSSAMOS, JUNTO DO GOVERNO, AGIR EM BUSCA DE SOLUÇÕES CONCRETAS PARA O NOSSO CASO (pág 30). E isso tem liança, diriamos intertextualidade, com que Ukuakukula, na sua obra “Dias de Expiação” através de Costa, expõe: “NINGUÉM FALA POR NÓS. NOSSO PROBLEMA É DO TAMANHO DO NOSSO MEDO; SUA SOLUÇÃO É DO TAMANHO DA NOSSA CORAGEM(…)” (Pag 36).
Orlando Ukuakukula
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cardoso, B. (2013). Noites de Vigília. Luanda: Texto editores.
Matos, J. C. (2012). Gramática Moderna da Língua Portuguesa. Lisboa: Escolar Editora.
Tavares, A. C. (s.d.). o nosso dicionário. Luanda: Plátono Editora.
Ukuakukula, Orlando (2022) Dias de Expiação. Crearte Editora. Sorocaba, São Paulo-Brasil
Bruna Rosalem: "Um menino que quer ser menina: uma análise do filme belga 'Minha vida em cor de rosa'”
COLUNA: PSICANÁLISE E COTIDIANO
Um menino que quer ser menina: uma análise do filme belga ‘Minha vida em cor de rosa
E quem estaria certo ou errado? Não cabe a nenhum de nós julgar
A sexualidade humana sempre foi tema de grandes debates, divergências, tabus, interpretações e entendimentos. No longa metragem belga lançado em 1997, “Minha vida em cor de rosa”, não é diferente, ele carrega consigo a narrativa de como a sexualidade, ou melhor dizendo, as sexualidades podem ser um terreno fértil de discussões e embates. O filme conta a história de Ludovic, um garoto que, aos sete anos de idade, começa a se perceber como uma menina e passa a se vestir e se comportar como tal.
Sua família era bem relacionada com toda a vizinhança, composta pela mãe Hanna, seu pai Pierre, uma irmã e dois irmãos. Os pais ficavam confusos com as atitudes de Ludovic: ora o repreendiam por usar o vestido de uma amiga, ora o permitiam que fosse de saia a uma festa aos arredores do bairro.
Certa vez, na festa de aniversário de Ludovic, seus familiares e amigos o aguardavam no quintal de casa, quando então ele surge usando vestido rosa, maquiagem, brincos e salto alto. O susto de todos que estavam presentes foi imediato. A situação vai ganhando novos contornos quando Ludovic persiste nessa identificação feminina, questionando até o que significaria ser um garoto e reivindicando casar-se com Jerome, seu colega de classe. Em sua inocência de criança, acreditava que um dia se tornaria uma menina, que seria apenas uma questão de tempo. Enquanto aguardava, vivia fantasiando uma linda amizade com uma fada chamada Pam, uma personagem de propagandas de televisão, muito semelhante à boneca americana Barbie.
Diante dos acontecimentos, a família de Ludovic toma uma série de providências acreditando que o menino pudesse abandonar estes comportamentos, então o leva ao psiquiatra, conversa com o garoto sobre a impossibilidade de se casar com meninos e corta o seu cabelo. Neste ensejo, os pais começam uma discussão buscando compreender onde eles erraram na criação do menino. A mãe aponta que a figura do pai era ausente, pois dizia que a falta de um referencial masculino leva à homossexualidade dos filhos meninos. A solução proposta pela família foi fazer Ludovic ficar mais próximo de seu pai, então começa a jogar futebol e fazer só “coisas de menino”, o que quer que isso signifique.
Um momento bem marcante que o filme nos traz é como Ludovic, em seu entendimento de criança, interpreta o que aconteceu com ele: ao ouvir de sua irmã explicações biológicas sobre as diferenças entre meninos e meninas, ele conclui que Deus pretendia que ele nascesse menina, mas um dos seus cromossomos X ao invés de passar pela chaminé de sua casa, quando vindos do céu, o X bateu e caiu para fora, portanto se perdera pelo caminho, ficando então XY. No pensamento do menino, algum dia esse erro seria concertado. Esta singela explicação fazia todo o sentido na cabeça de Ludovic, que a considerava “puramente científica”. Assim, ele se dizia um “menino-menina”, aguardando ansiosamente as suas cólicas menstruais, sinais de que ele estaria se tornando uma “menina de verdade”. De fato, a esperança era tanta que, diante da primeira dor de barriga, Ludovic já saia feliz pela casa.
Durante o desenrolar do longa, é possível refletir o quanto a persistência de Ludovic em construir sua identidade enquanto menina gera conflitos em todos. A família não compreende, a vizinhança, os colegas e a comunidade escolar lançam olhares de reprovação e julgamento, as singularidades (criança ou adulto) são colocadas à prova o tempo todo, e lidar com a diversidade e as formas de sexualidade não é nada trivial.
A relação entre psicanálise e homossexualidade dificilmente pode ser considerada estável. Freud, muito à frente de seu tempo, já dizia que a homossexualidade não é motivo de vergonha, não é uma degradação, não é um vício e não pode ser considerada uma doença. Apesar disso, durante décadas as instituições psicanalíticas promoveram uma visão moralizante da conduta sexual, preconizando a heterossexualidade reprodutiva como destino de uma sexualidade supostamente normal.
Antes mesmos de nascermos, ainda no útero, Freud já propunha o conceito de bissexualidade estrutural para todo ser humano. Não sabemos para qual será nosso objeto de desejo até então. Portanto, a origem da homossexualidade não pode ser taxativa, atribuída a um ou outro fator, como por exemplo, ausência da figura paterna, como pregava a família de Ludovic. Tanto a homo quanto a heterossexualidade se apresentam de maneira polideterminada, seja de natureza biológica, sociocultural, psicológica, e assim por diante.
Diante dessa discussão, é interessante refletir o quanto o ser humano apresenta singularidades com relação ao seu desejo, e considerar essa característica é crucial para uma ética pautada nos desejos, objeto da psicanálise. Nesse sentido, David Zimerman, médico psiquiatra e psicanalista, sugere que o termo seja tratado enquanto “homossexualidades” pois leva em consideração à diversidade do ser humano e de suas manifestações, longe de qualquer tentativa de normalização. Contudo, estes fenômenos, sejam naturais ou patológicos, são igualmente complexos, e buscar simplificá-los ou reduzi-los a explicações momentâneas e rasas, perde-se importantes conteúdos de escuta.
As sexualidades se estruturam para além de classificações sexológicas convencionais, como a distinção entre hetero, homo e bissexualidade e, portanto, cada vez mais o trabalho de investigação analítica se faz uma constante para desnudar os nossos mais multifacetados desejos e emoções. No caso da família de Ludovic, seria interessante escutá-los como sujeitos, pois cada membro tem suas próprias convicções, visão de mundo, interpretações.
E quem estaria certo ou errado? Não cabe a nenhum de nós julgar.
A vida de Ludovic pode ser cor de rosa, como diz o título do filme, mas a minha pode ser roxa, a sua azul, a do colega amarela, a da vizinha verde. E está tudo bem.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
Bruna Rosalem: 'Os desafios da análise em crianças e adolescentes'
COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Os desafios da análise em crianças e adolescentes
Antes dos adultos procurarem um diagnóstico para
os seus filhos, procurem eles um analista.
O campo da psicanálise é em si um grande desafio para quem deseja seguir com o ofício de analista. Mais ainda, podemos dizer, quando esta técnica é aplicada ao público infantil e adolescente, pois nesses dois casos, o analista terá que adentrar no universo simbólico, fantástico dos conteúdos e seus significantes, muitas vezes se utilizando de dramatizações e técnicas envolvendo ludoterapia, desenhos, jogos e brincadeiras.
Em 1909, Freud analisou o pequeno Hans, caso muito conhecido em seus escritos, e teve grande importância para demonstrar que os métodos psicanalíticos também podem ser aplicados em crianças. Naquela época Freud já dizia que a estrutura da psique dos menores é diferente dos adultos, pois ainda não possui um superego (instância das leis, do julgamento, da interdição) totalmente estruturado. As resistências internas, tão presentes nos adultos, ficam substituídas nas crianças por dificuldades em expressar seus conflitos através de palavras. A análise em crianças e adolescentes foi ganhando cada vez mais força com os trabalhos dos pós-freudianos Donald Woods Winnicott e Melanie Klein.
Jogos e brincadeiras têm uma função de extrema importância no setting analítico. É através destes atos que a criança cria mecanismos de interação com o objeto e estabelece associações livres que vão sendo desenvolvidas neste mundo de fantasias que ela mesma cria. Para Melanie Klein, a fantasia funciona como uma descarga, assim como no adulto seria através da fala livre, dos relatos, da narrativa dos sonhos, na criança o jogo possibilita a associação livre de ideias, das fantasias inconscientes, do manifestar das angústias, sintomas, inibições, medos, receios, mecanismos de defesa, ansiedades.
Já no adolescente, as associações livres de ideias poderão ser desenvolvidas pelo método da escuta, no entanto uma escuta mais sensibilizada por parte do analista. Diferente da criança, o adolescente já é capaz de se utilizar do recurso da fala, mesmo que esta ainda não esteja totalmente desenvolvida e refinada. O próprio silêncio do adolescente no setting analítico é algo muito presente e importante para o analista voltar a sua atenção flutuante, pois por trás deste silêncio há uma mente em ebulição, fervilhante, criativa e pulsante.
Embora a fala como matéria-prima para as investigações do inconsciente esteja presente no processo terapêutico em crianças e adolescentes em estágios diferentes, esta ferramenta precisa ser adaptada constantemente durante a análise. É fundamental destacar que se trata de uma dificuldade natural de expressão verbal para estas faixas etárias. No caso do adolescente, há ainda um certo grau de superficialidade, um jogo teatral muitas vezes, como mecanismo de defesa, que resulta em percalços no processo de transferência. Cria-se uma separação, resistência, um muro entre o analista e o analisante. Quando isso ocorre, caberá ao psicanalista se reorganizar para vencer essas barreiras criadas pelo sujeito e se utilizar de demais ferramentas de linguagem e canais de comunicação que estejam adequados às condições psíquicas do adolescente para que o trabalho terapêutico se desenvolva.
Conforme ocorre a maturação física e psíquica, corpo e mente vão se modificando. O período de latência (6 aos 11 anos), de acordo com a teoria freudiana, é regulador transitório da tensão sexual, pois as relações objetais vão sendo substituídas por identificações. Isto permite que a criança destine seus impulsos sexuais em outras atividades, tenha outros interesses como os estudos, esportes, arte, faça amizades, crie relações, ou seja, sublime todo o conteúdo libidinal, adquirindo conhecimento e cultura.
Decorrendo deste estágio, a adolescência vai se configurando como um período de constantes modificações físicas e reorganização psíquica. O conteúdo sexual latente agora vai ganhar cada vez mais força em sintonia com o desenvolvimento hormonal mais aflorado e evidente nas características corporais dos meninos e das meninas.
Interessante refletir que, segundo Freud, há três lutos vivenciados pelo adolescente: o abandono de seu corpo infantil, de sua identidade de criança e dos pais de sua infância. Ele precisará estabelecer novas relações com estes objetos, o seu ego será desorganizado e reorganizado e se sobreporá ao superego. Seus ideais e valores agora serão outros e assim conseguirá certa gratificação pulsional que o manterá em equilíbrio psíquico.
Na era pós-moderna na qual nos encontramos hoje, crianças e adolescentes são acometidos constantemente por estímulos de todos os lados que muitas vezes substituem a realidade. O uso excessivo de dispositivos eletrônicos como celulares, tabletes, computadores, acesso à internet em vários lugares e de modo atemporal, excesso de informações, superficialidade nas relações comunicativas e corporais sempre mediadas por redes sociais, aplicativos de conversa, de encontros, entre outros, estão cada vez mais presentes na vida cotidiana dos jovens, como um submundo virtual, e tem gerado uma série de complicações comportamentais e emocionais, como por exemplo, neo-sexualidades, vício em álcool, drogadição, transtornos de ansiedade, de humor, bulimia, anorexia, patologias narcísicas. Todos estes elementos têm provocado significativas dificuldades no público jovem em se posicionar diante dos desafios diários, escolares, profissionais e com relação ao modo como estes sujeitos se veem no mundo.
Não há como duvidar que diante desta problemática muitos pais se sentem perdidos. Vão então buscar ajuda para os seus filhos, não somente quanto às questões relacionadas a convivência diária, mas também como criar e educar estes sujeitos, estreitar os laços familiares, ou até mesmo, em casos extremos, como construir vínculos afetivos ou retomar as relações paternais e as figuras de autoridade que outrora foram se dissipando.
Embora os pais venham a ter a iniciativa de procurar ajuda profissional para os seus filhos, quando a criança ou o adolescente está imerso em um ambiente igualmente adoecido, o trabalho de análise precisa contemplar toda a família. Se a família não se organiza como um ambiente facilitador, o jovem pode buscar um apoio em seus pares, fato que não ocorre sem consequências, pois seus pares não são referenciais para estabelecer valores éticos, morais, sociais e psíquicos. O púbere então ficará à mercê de suas pulsões.
Diante disso, é possível inferir que não haveria uma maneira de pensar em um encaminhamento terapêutico isolado da família da criança ou do adolescente, pois sabemos que eles são fruto de toda uma construção ambiental, cultural, social e psíquica.
Crianças e adolescentes ao embarcarem na terapia passarão por processos dolorosos, ainda que libertadores e (re) significantes. E as figuras materna e paterna – independente de quem estiver assumindo estes papéis – tão seguidamente (ou mesmo simultaneamente), também necessitam perpassar por este caminho de sofrimento e, de possível, transformação.
Aqui vale dizer: antes dos adultos procurarem um diagnóstico para os seus filhos, procurem eles um analista.