As bonecas

Nilza Murakawa: Conto ‘As bonecas’

Nilza Murakawa
Nilza Murakawa
Imagem criada por IA do Bing - 17 de fevereiro de 2023
 às 09:03 PM
Imagem criada por IA do Bing – 17 de fevereiro de 2023
às 09:03 PM

Vestidos pretos plissados, cobrindo joelhos ralados, em cabidezinhos ambulantes no pátio, davam um ar de elegância e disciplina à mansão que se erguia imponente na Rua Alfred, 666. 

Nos jardins bem zelados, as árvores e flores se perfilavam como soldados em formação, podadas com precisão quase militar. Rente ao chão, a grama curta e sem falhas não acariciava  pés. O portão, com a dureza do ferro, ainda que antigo, abria-se e fechava-se sem um som  sequer. Um caminho de pedras de dolomitas brancas, nas laterais da calçada lisa, conduzia à  porta principal de entrada. 

No interior, o piso de cerâmica fria compunha figuras geométricas de apenas duas cores. Retratos de benfeitores hierárquicos, cujas expressões austeras eram suavizadas por quadros  de paisagens intercalados, adornavam o alongado corredor térreo. A escada de madeira em  caracol aberto, que alcançava o andar superior, também não emitia um único rangido, e seu  corrimão entalhado não guardava digitais de pequenos dedos. 

Três banheiros de cada lado, entre os dormitórios, não incentivavam vaidades. Frases em  latim, gravadas também nas molduras dos espelhos, que mostravam apenas rostos,  lembravam diariamente os valores e princípios que regiam o lugar: superbia vana est, ordo et  disciplina, timor et reverentia, scientia et obedientia, patientia in silentio. As toalhas bege de  felpa baixa, cuidadosamente dispostas nas prateleiras, eram rapidamente corrigidas a  qualquer sinal de desordem. Dispensadores de sabonetes e shampoos, com gotas racionadas,  não exalavam perfumes. 

As camas enfileiradas, encostadas pelas cabeceiras ao longo das paredes cinzas, cheiravam a  meia infância sob lençóis desamassados, colchas dobradas pela metade e travesseiros  expostos sem contos de fadas. Nas janelas altas, com cortinas densas semiabertas, onde  perninhas nas pontas dos pés não alcançavam, mal atravessava-lhes o sol maternal. 

O ar era limpo, e madres vigilantes e madeira nobre muito polidas. As cadeiras, distanciadas a  dois palmos bem medidos entre elas, preenchiam duas mesas compridas e nuas, mantendo a  convivência ordenada. Em silêncio reverente, as refeições eram servidas pontualmente, respeitando as normas e exigindo mãozinhas limpas. 

Raramente mencionada, uma porta trancada a sete chaves levava ao porão. Ali, nas  profundezas da imponência da mansão, residiam os mais bem guardados segredos, certidões  de nascimento e outros documentos tristes, e objetos proibidos de adoração e de luxúria,  envoltos na proteção das sombras e da mudez conventual. 

O tilintar das chaves na cintura, que anunciava com antecedência alguma presença rígida, o coral de vozes miúdas, que promovia autoestima e disciplina, o tradicional e elegante piano de  cauda e o sino de cobre eram os únicos sons que quebravam o silêncio, sempre em horários  religiosamente determinados. 

Blem! Blem! Blem! Às 6 horas, amanheceu, era hora de acordar. Depois, o sino anunciava as  quatro refeições, o início e fim das atividades diárias, os momentos de descanso e quando era  hora de se recolher. 

Pauline, de nove anos, jogada de um lugar para outro, com pais vivos, abastados e distantes,  destacava-se entre as outras na mansão por seus grandes olhos azuis, cachos alourados angelicais, perspicácia e alegria constante, embora às vezes desconexa, que disfarçava para  não ser aborrecida pelas superioras. Ainda assim, suas pequenas travessuras cotidianas e  outras rebeldias eram sempre uma jornada solitária, pois ninguém ousava acompanhá-la por  temor. Bolhas de shampoo e gritinhos felizes, desenhos esquisitos ou agourentos em espelhos e vidros embaçados, brotos de flores esmiuçados, pertences alheios escondidos,  correspondências rasgadas, copos cuspidos, berros e batidas insistentes naquela porta  proibida, chaves furtadas sem êxito ou entortadas rendiam-lhe constantes punições: privação  de sobremesas e recreação, cem vezes uma frase em latim escrita em letras garrafais, acordar  mais cedo para realizar tarefas extras, joelhos nas pedrinhas, olhos postos no canto da parede,  quarto da vergonha e… porão! Vitória: finalmente adentrava o lugar sombrio que tanto a  atraía. 

Saboreando a atenção, a desordem e o jogo da perturbação e reações, ela fazia carinha inofensiva, dissimulava olhos melosos e inocentes, agarrava-se nas barras dos hábitos pretos, pois percebia que havia um despreparo para lidar com ela, e ganhava perdão. 

Nas suas raras tardes livres primaveris, ela costumava arrancar petúnias vermelhas ou rosinhas  espinhentas cor-de-rosa pendentes e levava-as escondidas até o dormitório. À noitinha,  enquanto o sino murmurava um lamento arrastado e quase morto — blem… blem…—, e todas  as luzes e atividades eram encerradas, Pauline emaranhava as flores nas “bonecas” pálidas que  repousavam, ajeitando-lhes delicadamente as mechas de cabelo solto para não acordá-las. Algumas, no entanto, ela sempre cobria de branco da cabeça aos pés, como castigo na certa. Vez ou outra, tirava seu laço de fita permitido do cabelo e amarrava-o nos pescoços dessas pobres, uma a cada dia, apertando-o com força até que as “bonequinhas”, com espinhas arrepiadas, arregalassem os olhos tristes ainda quentes. Abafava-lhes o grito com as mãos,  uma sobre a outra, a sangue frio e visceral, até que os corpinhos frágeis ficassem roxos,  apagando definitivamente os sorrisos amarelos de desdém que tantas vezes a incomodaram,  enquanto sussurrava: “Dorme, dorme, dorme, anjinho…” 

Nos jornais locais, principalmente durante a primavera, pequenas notas semanais preenchiam  a seção de óbitos infantis por causas naturais. E no Orfanato Springfield, na Rua Alfred, 666, à  espera de novos brinquedos ambulantes, Pauline balançava escondida um bercinho ainda  vazio no porão… DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA  — FORTITUDO SOLIT…

Nilza Murakawa

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Quem sou eu?

Evani Rocha: Poema ‘Quem sou eu?’

Evani Rocha
Evani Rocha
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Sou folhagens entre as árvores
Sou gotas a escorrer
Sobre os caules retorcidos
Sobre as folhas do dendê

Sou o vento frio do inverno
O nevoeiro a correr
Sou o cume encoberto
Sou a mão a proteger

Sou as chuvas de verão
O Sol firme a brilhar
Tempestades, furacões
O fruto que a terra dá

Sou o homem, sou a ave
O pé de jacarandá
Os passarinhos nos ninhos
Sou as noites de luar

Sou a águia nas alturas
O Lago Titicaca
O barquinho em dobradura
Sou os gêiseres e as Termais

Sou as roseiras em flor
Os espinhos e a dor
As lágrimas que banham a alma
O peixe e o pescador

Eu sou a brisa do mar
As ondas no vai e vem
As estrofes da poesia
O mar e a maresia

Sou a areia da praia
O oásis e o deserto
Sou o fim que está longe
E o longe que está perto

Sou as folhas de outono
As flores na primavera
O Duomo Di Milano
O pistilo e a antera

Sou o barquinho à vela
E o cargueiro a flutuar
O mundo subterrâneo
A terra mãe no pomar

Sou das rochas, a dureza
Da água, o molejar
No céu todas as estrelas
Na terra o Sol e o ar!

Sou do ‘nada’ a sutileza
A molécula da vida
Do ‘tudo’, sou a pureza
O lirismo e a magia!

Sabes então quem sou eu?
Eu sou a tal natureza!

Evani Rocha

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Outono poético

Virgínia Assunção: Poema ‘Outono poético’

Virgínia Assunção
Virgínia Assunção
Outono poético
Outono poético
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O outono despe

As árvores lentamente

E as folhas

Bailam no ar

O sussurro do vento

Nos envolve

Em um tapete dourado

E o ocaso pinta

Uma tela no céu

Quanta serenidade

Traz o outono

Quanta melancolia

Num suave recolhimento

Ouço a doce melodia

Entre as folhas caídas

Mergulho na beleza

Desses dias

E, invento fantasias

De esperança

De criança

De sonhos

Nas folhas que balançam

E caem.

Virgínia Assunção

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Acumular amor

Pietro Costa: Poema ‘Acumular amor’

Pietro Costa
Pietro Costa
Adotar animais abandonados
“Adotar animais abandonados”
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Apreciar as amizades

Agarrar-se às árvores

Avistar auroras 

Amarelo-alaranjadas

Abundância aflora

Atitudes arrojadas

Acalantos, afagos 

Aglomerar astros 

Alumiados

Adotar animais 

Abandonados

Amealhar afetos 

Alimentar anelos 

Amplexos

Acumular amor 

Pietro Costa

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Onde está sua mão, na pandemia levada?

Ella Dominici:

Poema ‘Onde está tua mão, na pandemia levada’

Ella Dominici
Ella Dominici
Onde está tua mão, na pandemia levada
Onde está tua mão, na pandemia levada
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onde está a mão que me afagava
suave ou apertada
em teus dedos entrelaçada
caminho adentro
abríamos alamedas
entrando no nada levando o tudo
alegria furtada
das árvores enamoradas
nossa Pasárgada

onde estão olhos de um brilhante
entusiasmo apaixonado
de resistir aos solavancos
dos cavalos persas
de sonhos esfuziantes
colados ao meu destino
teu corpo em equinas ancas
ignorando adversas esquinas

onde está o teu falar
ora acalmava ora interpretava
os mais largos puros sorrisos
outrora sussurrava em meus ouvidos
os mais emocionantes alaridos
de amor-prazer sem pausa entoado

vento descortina ruas
faz desérticas folhas
desatinadas são perplexas
na ordem do sopro desvairado
sopro arrasta a vida longamente
ou corta o cordão magistral
que une à terra-mãe-umbilical

ao filho da devassa natureza
foge-lhe visão do natural
surge-lhe imagem incandescente
solta-lhe as mãos entrelaçadas
voltam-se as mãos ao ventre

em posição de origem fetal
Pasárgada já não é mais nem menos
que a almejada e mirada
morada enamorada admirada

onde está a mão que me afagava
afaga-lhe outra mão agora
vou embora pra Pasárgada*

Ella Dominici

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José Henriques Martins: 'O que será que as árvores falam?'

J. H. Martins

O que será que as árvores falam?

Não há como não dividir com você, leitor do Jornal Rol, este maravilhoso poema da poetisa Lee Oliveira. É um poema feito, segundo a autora, em um momento no qual a tarde pintando em uma varanda que tem muitas árvores à volta e ela, ouvindo o farfalhar das folhas, perguntou à amiga: “O que será que as árvores falam?” E, de repente, começou a escrever este maravilhoso poema “ÁRVORES”.

 

ÁRVORES

(Lee Oliveira)

Importantes , todos sabemos.

Fotossíntese

Ar puro

Alimento

Abrigo

 

Baobás

Sequoias

Pinheiros

Toda exuberância de espécies das grandes florestas…

 

Lindas de viver!!!!

 

Mas…

E o farfalhar das folhas?

 

Contam histórias antigas que o vento leva?

Ou as novidades:

– Nasceu uma girafa albina!!

– Um urso acordou !!

– Milhões de borboletas alçaram voo !!

– Jubartes e Orcas no litoral !!

– A migração dos pássaros começou !!

 

Ou talvez…

– Navios vistos na costa…

– A última arara azul  foi levada para cativeiro

– Assassinado o último Sioux

– A floresta Amazônica está em chamas…

Na minha utopia, gostaria que fossem cantos sobre amores verdadeiros, fé,  felicidade e paz…

 

Mas…

O que será que as árvores falam?…