Padre Sérgio

Paulo Siuves: ‘Padre Sérgio’

Paulo Siuves
Paulo Siuves
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Tia Bêa havia chegado do interior recentemente e não abandonara alguns costumes, como frequentar a feira no sábado de manhã com o pretexto de encontrar melhores hortaliças, quando na verdade era algo meio que um acordo velado da confraria das fofoqueiras de plantão para trocar informações sob o sino da igreja. Aliás, esse era outro costume de tia Bêa, ir à missa todo domingo; as manhãs dominicais eram sagradas para ela. Agora descanse em paz ao lado do nosso Senhor, querida tia Beatriz de Castilho.

Tia Bêa tinha ascendência portuguesa e certo orgulho disso. Entender o latim das missas era uma imodesta glória da qual ela não se disfarçava. Vir para a capital mineira e descobrir que as missas estavam sendo realizadas em Português, coitada, foi uma decepção desconcertante, mas nada que a fizesse desanimar de ouvir as missas todos os domingos, fizesse sol ou chuva.

Certo dia, ela ouviu dizer que o padre Sérgio, pároco da cidade onde ela cresceu e construiu quase todas as suas relações sociais, iria visitar uma igreja em Belo Horizonte. Óbvio que ela não poderia deixar passar a oportunidade de rever o pároco da sua cidade natal. Soube que ele estaria celebrando a missa do domingo na paróquia de São Mateus, num bairro da periferia. Tia Bêa colocou seu melhor vestido, fez penteado, unhas e arrumou a maquiagem para essa manhã festiva. O pároco daquela jurisdição fez o anúncio da visita ilustre do padre Sérgio e inteirou que ele iria executar algumas músicas ao órgão que raramente era usado por falta de quem o soubesse tocar. Tia Bêa se impressionou muitíssimo a cerca do talento de padre Sérgio. Ela ouviu com alma enlevada e dizia em voz baixa:

– Que maravilha. Nem sabia que padre Sérgio tinha esse talento… Que maravilha!

Ao fim da missa, ela não se aguentava e dizia:

– Gente, preciso ir dar um abraço no padre Sérgio e dar-lhe os parabéns. Eu estou encantada!

E, no meio da multidão, surge o pároco interiorano. Quando ela o vê, vai chamando em alta voz:

– Padre Sérgio, padre Sérgio… Eu não sabia que o senhor tocava tão bem assim. Que maravilha de músicas. parece realmente coisa do céu. SE O SENHOR SOUBESSE COMO O ÓRGÃO DO SENHOR ME FEZ BEM…

Paulo Siuves

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Bruna Rosalem: Coluna Psicanálise e Cotidiano: "'Foi sem querer, querendo!" Nossos atos falhos de cada dia'

Bruna Rosalem

Coluna Psicanálise e Cotidiano: 

“‘Foi sem querer, querendo!” Nossos atos falhos de cada dia’

Todo ato falho é um discurso bem sucedido (Jacques Lacan)

Lembrando da velha máxima dita pelo personagem da série mexicana Chaves: “Foi sem querer, querendo!”, que intitula este texto, é possível ‘psicanalisar’ acerca dessa constante afirmação do menino que vivia fazendo peraltices e atrapalhando a rotina dos moradores da vila.

Muitas vezes nossas atitudes não correspondem às reais intenções ou pensamentos e, então, assim como o menino Chaves, dizemos aquilo que não queríamos dizer e fazemos aquilo que não queríamos fazer. Logo, criamos um imenso desconforto entre nós e as pessoas atingidas pelos nossos atos e falas, gerando situações desagradáveis e, por vezes, engraçadas. No entanto, podemos indagar: por que fazemos sem querer ou falamos o que não queríamos falar? De onde vem a motivação, o desejo? Seriam eles conscientes ou inconscientes? Nas palavras de Chaves podemos colocar algo assim: foi sem querer (conscientemente falando), querendo (inconscientemente falando).

Segundo Freud, atribuímos essas ações ‘sem querer’ ou mesmo inexplicáveis erros na linguagem (escrita, fala, leitura), erros de memória (esquecimentos, lapsos, substituições) e erros no comportamento (tropeçar, cair, quebrar etc.), ao que ele chamou de atos falhos. Estes atos são causados por pulsões constantes que procuram descarregar de modo aleatório, sem muito trato, os desejos, as emoções, os pensamentos, mesmo que isso vá interferir em nossas ações não submetidas ao recalque (material psíquico inacessível). Algo como uma saída, um escape para resolver a tensão gerada pelas pulsões.

Os atos falhos também podem ser compreendidos enquanto mecanismo de defesa e surgem enquanto irrupções das pulsões do id ou isso (parte mais profunda, abundante e inconsciente do psiquismo). Eles encontram satisfação por uma fresta nas defesas do ego e revelam o desejo inconsciente de quem os comete. São materiais importantes de análise pelo psicanalista, pois são sintomáticos e possuem um valor revelador de inúmeros significados que o paciente procura ocultar.

Em 1901, Freud publicou mais uma obra que viria a se tornar mundialmente conhecida:  A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Após publicar no ano anterior (1900) A Interpretação dos Sonhos, o criador da psicanálise expande a sua tese sobre o inconsciente para englobar os comportamentos do dia a dia. Se até então ele havia comprovado a existência do inconsciente, do desejo e do recalque nos sonhos e nos sintomas dos neuróticos, o seu objetivo com essa obra era mostrar como o inconsciente aparece em erros e falhas cotidianas.

Ainda em seu livro, Freud irá nos detalhar os atos falhos mais evidentes do comportamento humano: erros de linguagem que estão presentes na fala, escrita e leitura. Um exemplo: durante a leitura de um texto a pessoa, em vez de ler ‘ato falho’, ela lê ‘ato fálico’, cuja simbologia deste último é atribuída ao órgão sexual masculino, portanto, um erro na fala que, se formos investigar, podemos encontrar um significado inconsciente para a pessoa que leu de maneira errada.

Outro ato falho passível de análise e interpretação citado por Freud em seu livro está relacionado ao esquecimento. É comum esquecermos objetos que nos fora dado por pessoas das quais não gostamos, ou nos atrasarmos ou errarmos o caminho para algum compromisso ao qual não queríamos ir, ou ainda, esquecermos de ligar para alguém, quando na verdade, se fossemos investigar a fundo a causa do esquecimento, veremos que, inconscientemente, nós não tínhamos realmente a intenção de ligar. Portanto, é possível dizer que o ato falho é um erro, mas também um acerto (do ponto de vista do desejo inconsciente). Nas palavras de Jacques Lacan: “Todo ato falho é um discurso bem sucedido”.

Um outro tipo de ato falho está relacionado com equívocos na ação, os chamados atos falhos de comportamento. São perturbações do controle motor que, se analisados, nos conduzem também a uma formação de compromisso entre o inconsciente e o consciente. O exemplo do menino Chaves do “sem querer, querendo” quando ele bate no Senhor Barriga também pode ser considerado um equívoco na ação que possui um significado. Por um lado, ele realmente não deseja ser tão desastrado, por outro lado, talvez queira bater de verdade no dono da vila, pois sempre que ele chega é recebido com uma bofetada, pancada, entre outras formas de recepção nada agradáveis.

            É importante notar que, apesar das diferenças entre os tipos de atos falhos, eles possuem uma unidade na linguagem. E todos têm intenções duplas, isto é, ao mesmo tempo em que existe o ideal do ego, existe também o desejo do id. Quando nos esquecemos de um nome ao apresentar uma pessoa ou não lembramos de enviar um e-mail, estamos vivenciando um conflito entre dois significantes, um do lado do recalque e o outro do lado do desejo. Já trocou alguma vez o nome de seu cônjuge? Isto pode te colocar em maus lençóis!

Há mais um exemplo muito interessante que Freud nos conta, além de ser um tanto engraçado: um senhor estava conversando com uma jovem sobre como a cidade de Berlim estava lindamente enfeitada para as comemorações da Páscoa. Disse ele: “Viu a loja Wertheim? Está toda decotada. Oh! Quis dizer decorada!” Freud interpreta esse singelo erro do senhor como uma interferência de um pensamento inconsciente relacionado ao decote da moça com quem o homem conversava. Assim, é possível perceber que desde os mais simples enganos até os mais complexos são fruto de um processo inconsciente suprimido e que sua causa pode ser revelada.

Por razões sociais e culturais não podemos fazer e falar aquilo que se tem vontade o tempo todo, porém as pulsões do id nos provocam constantemente e, por isso, os atos falhos acabam sendo essas irrupções abruptas daquele pensamento que tanto resiste com notável força no inconsciente para se fazer ouvir. É como se o material suprimido ‘escapasse’ da vigilância do ego. A célebre frase de Freud já nos alertava: “A voz do inconsciente é sutil, mas não descansa até ser ouvida”.

Uma questão bastante significativa dentro do universo dos atos falhos é o chiste (palavra emprestada do espanhol) ou trocadilho. Nele há o tom da piada, do humor, da inversão do sentido, da surpresa. Em seu livro O chiste e sua relação com o inconsciente de 1905, Freud nos apresenta diferentes estilos de estrutura de chistes que incluem a modificação e fusão de palavras. Cada um usa um método de entrega diferente e, neste caso, tem diferentes intenções por trás deles. Ele ainda distingue dois tipos fundamentais de chistes: inofensivo e tendencioso. Este último subdivide-se em agressivo e obsceno. Ambos – agressivo e obsceno – caracterizam-se enquanto processos catárticos, ou seja, reduzem a tensão. Já os chistes inofensivos, a gratificação é intrínseca, produz um efeito moderado; um nítido sentido de satisfação.

As charges são recursos linguísticos que podem ilustrar como os chistes produzem elaborações que podem ser bastante tendenciosas, no caso aqui, de desejos inconscientes advindos das pulsões libidinais, vejam:

 

A leitura das charges nos leva a compreender como os chistes são elaborações que participam da cotidianidade das pessoas e estão relacionadas com as mais diversas atividades humanas, simples ou complexas. E é a partir dos atos falhos, no caso das duas charges, que o chiste expressa seu propósito: suavizar, descarregar tensões que geram ansiedade, uma vez que o riso é, seja qual for a situação, uma maneira de sobreviver à realidade do presente momento.

Há que se considerar, portanto, que praticamente todo erro de percurso de nossas ações e expressões da fala é significante e passível de interpretação e pode conter significados importantes para a vida psíquica do sujeito.

E você, já reparou em seus atos falhos? O que será que eles estão tentando lhe mostrar quando lhe pegam de surpresa durante uma conversa, no ambiente de trabalho, na sua rotina diária? Quantas vezes você já se atrasou justamente para aquela reunião com seu chefe? Ou, por que você sempre esquece de devolver o objeto que pegou emprestado daquele seu amigo? Já colocou algum alimento no armário em vez da geladeira? Esqueceu de buscar seu filho na escola? Colocou açúcar na comida no lugar do sal? E por aí vai… tudo naturalmente humano!

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

www.psicanaliseecotidiano.com.br