O triste ancião
Evani Rocha: Conto ‘O triste ancião’


às 09:30 PM
Era uma enorme casa, daquelas feitas sobrado, com janelões de madeira e coloridos vitrais.
Era uma casa grande, dessas que já moraram muita gente…
Com seus largos corredores e seu piso antigo de peroba rosa. “Bons tempos aqueles…” diria o triste ancião sentado à varanda, sobre a velha cadeira de balanço, a qual rangia melancolicamente a cada movimento do homem: para frente, para trás, para frente, para trás…
Até parecia um gemido de dor, como se a cadeira lesse os pensamentos saudosos do pobre velho. Na mão direita o cachimbo de cabo feito de osso, seu único companheiro. Esse era levado aos lábios de minuto a minuto, sugava a fumaça e soltava em grossas nuvens retorcidas. Com o dedo indicador já calejado, ajeitava o fumo na boca do cachimbo. Os olhos anuviados ainda conseguiam enxergar a beleza da paisagem à frente, aquela mesma que estivera consigo por mais de meio século. Não fazia mal não enxergar os detalhes, pois estes estavam gravados em sua memória.
“Ohhhhh!” – resmungava baixinho o ancião. Ele via-se sobre o lombo da égua Serena, animal dócil, sagaz e inteligente. – pensava: “Branca feito plumas de algodão.” Lembrava-se que podia montá-la à pelo, agarrar a sua volumosa crina e cavalgar pelas veredas e banhados à cata da boiada.
Enquanto o Sol entrava preguiçoso, deitando seus raios por detrás das serras, a penumbra da noite ia invadindo o vasto terreiro de chão batido. Voltava o ancião seu pensamento para um passado ausente. Numa época em que eram um jovem casal com meia dúzia de filhos. Recorda-se do jardim que tomava conta de toda frente do casarão. Das roseiras brancas com seus copiosos cachos de rosa. Da algazarra das crianças correndo no gramado, ao entardecer…
Viu nos fundos da casa, vultos a balançar, por certo seriam os galhos das fruteiras, ao sabor do vento. Mas o velho quase atreveu-se a levantar para recolher as roupas. Lembrou-se que ali não havia mais o varal de arame liso, feito por ele, bem amarrado ao tronco das mangueiras. Eram ordens de sua esposa. “Mulher caprichosa!” – murmurou novamente. Num piscar lento de suas pálpebras cansadas, viu o varal cheinho de roupas a secar, tão alvas feito as nuvens em dias de verão.
“Se foram todos eles! Por certo andam cuidando de suas vidas, nesse mundão de meu Deus!”. Agora, deixou escapar uma voz baixinha e rouca, que saiu acompanhada de mais uma baforada de fumaça. A esposa morrera, há anos. Os filhos cresceram e tomaram seus destinos, murmura o ancião: “Pudera! O que haveriam de fazer aqui nesse sertão, isolado de tudo?”. No fundo ele se conforma com a solidão: “É o destino, o que há de se fazer?”. Até a cadela Estrela, partira, logo após a morte de sua senhora.
Ultimamente, quase não abre mais as janelas. Locomove-se lentamente com o apoio da bengala. Muitos já lhe propuseram a compra da casa. “Ora! Se queres me dar uma pechincha! Aqui está depositado o suor de toda uma vida de laboro!” Tentam convencê-lo a ir para o lar dos idosos. Mas sem sucesso. A resposta do velho é sempre a mesma: “Daqui só saio depois de morto!”
A poeira e a fuligem cobrem as telhas antigas de cerâmica. As paredes de adob, demonstram o desgaste do tempo. Os móveis surrados, de madeira, guardam a história de uma grande família. Parece que são esses detalhes que ainda o mantêm vivo.
Um vento gelado chegou juntamente com a noite. Do ombro da cadeira, o homem puxa um blusão de lá grossa e o joga sobre as costas. Deposita o cachimbo no tamborete ao lado. Risca o isqueiro e acende a lamparina de querosene. O vento que entra na varanda faz a chama dançar de um lado a outro, e quase a apaga. O escuro gelado do inverno entra casarão a dentro. Nas matas ao fundo, o urutau solta um assovio penoso. “O silêncio da noite é mais doído”, – pensa o velho homem.
Aos poucos as estrelas vão apontando no céu. Os fachos de luz deixam as folhas das árvores prateadas. Só há um triste ancião, a lamparina e o zunido em coro das cigarras…
Deita a cabeça no encosto. Suas mãos trêmulas se soltam dos braços da poltrona, escorregam lentamente e caem. A luz da lamparina se apaga. Cessou-se o vai e vem da cadeira. A Lua despontou no céu…
O que diria o ancião, a respeito daquela bonita noite de luar, se a ele tivessem sido acrescidas algumas horas a mais de lucidez?