Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação

CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly: ‘Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação’

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“Sou um quase não louco.”
John Cassavetes

“Esse programa pode não ser uma janela para o mundo, mas é certamente um periscópio sobre um oceano do social”, assim era iniciado o programa ‘Provocações’ quando comandado pelo entrevistador Antônio Abujamra. Se, de um lado, o saudoso apresentador, ator e diretor se enveredava por uma constante busca por extrair o máximo de seus entrevistados, não raro, de forma não ortodoxa, daí a ‘provocação’ que intitulava o semanal, o veterano diretor novaiorquino fez algo similar em seus filmes. 

A longeva carreira de Allan Stewart Konigsberg, ou ‘Woody Allen’, é marcada por sucessos que o levaram a premiações do Oscar e de Cannes, mas também o foi por escândalos.  Como sua turbulenta separação da companheira e atriz de mais de uma dúzia de suas produções, Mia Farrow, em decorrência do caso do ator com a filha adotiva do casal, a temática de suas obras, recorrentemente, se preocupa sobre as complexas questões psicológicas. 

Aliás, Allen foi adepto fiel da análise por várias décadas, refletindo uma visão social e psicanalítica do homem moderno inserido na sociedade estadunidense. Suas neuroses, paranoias, estilística e desvios, intercalam tramas mais densas sob o viés comportamental e de crítica social/sociológica – não política, ele faz questão de pontuar – e roteiros de formatação cômica mais acentuada. E, como consequência, de apelo comercial mais atrativo, pois é sabido que em determinados períodos, houve um decréscimo de público em seu próprio país.

É notório que Woody já foi considerado a maior mente cômica no cenário norte-americano, aspecto que remonta à sua atuação em shows de stand up, ainda em seus primórdios. Multiartista, é sempre o responsável pela roteirização de sua impreterível produção anual, que fatalmente recebe o título provisório de “filme de Woody Allen do outono”, estação na qual sempre começa as filmagens de seus longas.  É possível dizer que a própria evolução da sociedade Americana foi paralelizada em termos de mutação de costumes no universo Woodiano. Seu humor ácido, ágil, irônico e sagaz, inúmeras vezes foi encenado pelo próprio diretor, que transpôs, durante seu amadurecimento como realizador, um verdadeiro alter ego às telas, inserindo em seus roteiros, personagem que é sua cópia fiel, formatando-o em contextualização de acordo com cada argumento, mas mantendo seus maneirismos e peculiaridades. 

Decerto, os fãs mais ardorosos até mesmo se ressentem quando Woody não atua em seu projeto anual, inclusive, sua ausência tem sido mais recorrente nas últimas produções, que segundo os críticos, a partir dos anos 2000, retomou um diálogo, mas simples, remetendo às comédias pastelão dos anos 70, num raio de alcance maior de público. A crítica de cinema Neusa Barbosa (Gente de Cinema – Woody Allen, 2002, pag. 190), pondera “A alternância, em sua carreira, de obras de tons mais som- brios e mais leves, culminando na fase mais recente, em que parece ter definitivamente abraçado o objetivo de divertir o seu público, revela que em seu espírito convivem ao menos dois Woody Allens, um é de câmara, outro de vaudeville. Os críticos e o público podem preferir um ou outro, mas o fato é que os dois coexistem na poderosa imaginação do diretor, trocando figurinhas o tempo todo. Que um predomine sobre o outro pode ser apenas uma questão de momento”.

Dentre a evolução de seu cinema, destacamos o título Zelig, de 1983, que gira em torno de um verdadeiro camaleão humano, no qual o personagem que intitula a trama, Leonard Zelig, muda em termos de personalidade e. até mesmo, corporalmente, quando interage com as pessoas a seu derredor.  Num momento, enquanto confabula com cantores de jazz muda a pigmentação de sua pele, se conversa com um obeso, imediatamente adota proporções mais robustos numa simetria em tom de rapport não consciente.  Acompanhamos a trajetória do personagem tratado pela psiquiatra interpretada por Mia Farrow – fase pré-escândalo – que tenta decifrar e até mesmo curar o enigma que o homem sem passado e, possivelmente sem futuro, revela em sua passagem por fatos da história, de maneira muito inventiva que seria posteriormente levada a efeito em filmes como Forrest Gump. 

De vilão a herói, a trajetória de Zelig é contada em forma de documentário fictício, subgênero batizado de mocumentário, do inglês to mock (zombar), em um dos filmes mais criativos e esmerados da carreira do diretor. Neste título em específico, inolvidável tracejar questionamentos que encapsulam proposições pertinentes e identificáveis na sociedade contemporânea, tais como a ânsia pela aceitação até o ponto da auto sabotagem e anulação em temor à detração e repúdio do grupo. Dentre os números filmes questionam o sentido da vida numa abordagem mais existencial, impossível não remetermos à obra de Bergman, fonte inspiradora indissociável da fase mais autoral de Allen, tema por ele explorado no percurso de suas quatro décadas de criação. 

Em que pese a mácula sobre sua popularidade e decréscimo de apoio popular e da classe artística após as acusações de abuso sexual nos anos 90, é sabido que suas produções mais filosoficamente apuradas sempre receberam ardorosa recepção no universo europeu. Certamente, herança da nouvelle vague e cultura de valorização ao cinema de autor, que apresentam profundas raízes naquele país. Não é por acaso que Allen, devotadamente apaixonado por Nova York a ponto de fazê-la coadjuvante recorrente em sua obra, ama Paris como a sua segunda cidade favorita. 

Seu mais recente filme, ‘Coup de Chance’, (2023), rodado na Cidade Luz, e em língua francesa, é provavelmente o último de sua carreira na sétima arte, pois o diretor manifestou seu interesse em dedicar-se à literatura e música, é uma declaração de amor não apenas ao cinema, mas a seus apoiadores constantes. Singelo, direto e eficiente, como nos antecedentes ‘Scoop’ e ‘Match Point’.  Não obstante a tendência ao ostracismo dos últimos anos, Woody Allen permanece como um dos mais importantes realizadores vivos. 

Marcus Hemerly

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A substância

COLUNA CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly:

“A substância: ‘A matéria de que os sonhos são feitos?'”

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Card da coluna Cinema em Tela – “A substância: ‘A matéria de que os sonhos são feitos?’‘”

Ao final do clássico Noir de 1941, ‘O Falcão Maltês’, o detetive Sam Spade (Humphrey Bogart), tem em suas mãos a estatueta responsável por mortes, ganância e dor, e ao ser indagado a respeito do artefato, responde: “É a matéria de que os sonhos são feitos”. Dinheiro? Poder? A resposta é intuitiva, a ilusão. Inquestionável que as pessoas, não raro, vivem se mãos dadas a ela. Nos últimos tempos, algumas produções têm sido distribuídas nos circuitos de cinema e streaming com forte hype nas redes sociais, fazendo até mesmo, que os títulos sejam julgados ou criticados pelos espectadores antes da sessão.

O filme ‘A Substância’, lançado recentemente, foi recebido com antecipação pelo público, prometendo uma roupagem diferente do que vem sendo produzido, causando controversas nas várias mostras na qual foi exibido.

O título inovador, ao mesmo tempo, rememora o conhecido, entrelaçando de maneira extremamente eficaz os vieses psicológicos e mais gráficos. E, quando se menciona o body horror, ou terror corporal, comumente o diretor canadense

é lembrado, não sem razão de ser, tendo em vista que o realizador foi responsável por filmes icônicos como ‘A Mosca’, ‘Rabid – Enraivecida na Fúria do Sexo’, ‘The Brood, Filhos do Medo’ e ‘Videodrome’.

No entanto, não se olvida de que as manifestações corporais mais chocantes em tom de coadjuvação à trama remontam, até mesmo, ao cinema mudo francês e produções das décadas de vinte e trinta, perpassando a aura japonesa do sobrenatural, de forma mais relavada nos anos sessenta. A partir dos anos 2000, uma redescoberta de estilos e subgêneros, inclusive no panorama nacional, tem revitalizado o cinema contemporâneo, não há de se negar.

Em substância, dirigido e roteirizado por Coralie Fargeat (de Vingança), Demi Moore vive a estrela veterana Elisabeth Sparkle, que ao ver sua carreira em declínio e ante a dificuldade em aceitar o envelhecimento, faz uso de uma droga experimental que lhe traz novamente a beleza e o corpo jovem, o que é descrito como a versão melhorada de si mesma. Como já é esperado, o preço a pagar é alto. Transformando-se em sua formatação mais jovem, a modelo Sue (Margaret Qualley), logo conquista a fama fazendo com que ela retome o seu lugar na TV, ainda que por meio de sua “versão” em tom de alter ego.

A partir dessa premissa, algumas questões são trazidas à tona, ainda que indiretamente. Deparamos com o fato de que Sue/Elisabeth está disposta a atrair e trair a todos a fim de firmar-se no estrelato, consumindo de maneira mais desbragada a energia de sua criadora, cuja escalada atinge seu ápice no momento que esta traição passa a ser dirigida a si própria. 

A par disso, a linha tênue do limite em relação à ditadura do corpo, da moda, do tempo e da suposta adaptabilidade humana são questionados. No longa, as realizações da estrela já não mais em ascensão, são por ela anuladas, ao passo que trava lutas diárias com a passagem do tempo, cenário intensificado exponencialmente pela indústria do entretenimento que monopoliza a juventude, ameaçando sua sobrevivência social, tal como se enxerga em relação ao seu derredor. O corpo não é o mesmo de quando teve seu nome gravado na calçada da fama em Los Angeles, até que num acaso cotidiano, se depara com a substância que intitula a história. Ao ser injetada, um novo ser irrompe, literalmente, de seu interior, fazendo com que possa novamente galgar um lugar ao sol artificial dos holofotes da fama. 

À frente do antigo programa de sua versão original, Sue conquista com sua popularidade, formas e carisma. Por óbvio, assim como os toxicômanos atingem um limite de prazer que não mais pode ser ultrapassado e que coexiste à constante abstinência, desenha-se um momento em que as exigências de sua nova realidade cobram o pedágio. Ciente de tais provocações, as constantes mutações e momentos chocantes de terror corporal não impressionam tanto quanto a mensagem por debaixo casca/pele.

Decerto, uma sociedade a cada dia mais doente e dependente de medicações, indissociável da terapia, são elementos que assomam à mente do espectador de forma frenética. Pertinente ainda traçar um paralelo com a famosa de história de Robert Louis Stevenson, ‘O médico e o Monstro’, pois assim como o Dr Jekyll não mais pode diferenciar a si próprio do pérfido Mr. Hyde, a partir de qual estágio – talvez irreversível – a personagem não consegue, ao mirar o espelho, saber a real identidade daquela que lhe encara de volta?

A filosofia socrática suscita a famosa ideia do conhece-te a ti mesmo, como fonte inseparável do ser, evidenciando sua relevância na manutenção do equilíbrio (inclusive citado de forma relevante no filme). Catena já cantou que “narciso acha o feio o que não é espelho”. O final catártico de Elisabeth/Sue reafirma tal proposição.

Marcus Hemerly

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Saudosa Maloca: O cotidiano em verso e anverso

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Marcus Hemerly:

‘Saudosa Maloca: O cotidiano em verso e anverso’

Cinema em Tela: 'Saudosa Maloca: O cotidiano em verso e anverso'
Cinema em Tela: ‘Saudosa Maloca: O cotidiano em verso e anverso’

É sabido que a poética está vinculada à arte em todas as suas vertentes. Há de se diferenciar a figura do ‘poema’ forma textual concreta e identificável, da ‘poesia’ em sentida genérico, tratando-se do vetor etéreo e instigante das reações emotivas daquele que a aprecia. O saudoso cantor e compositor Adoniram Barbosa (1912 -1982), ou João Rubinato, traduziu como ninguém a junção da arte e cotidiano, retratando desde a sofrida vida dos migrantes, parcelas marginalizadas e sofrimentos idílicos em suas canções.

 Acima de tudo, a cidade de São Paulo é transpirada e suspirada em cada verso das composições, pois as diversas regiões da capital paulista serviram não apenas como pano de fundo às estrofes, mas à própria tradução da vivência de Rubinato, como uma personagem autônoma.

Após breve exibição em circuito restrito de cinemas, recentemente chegou aos serviços de streaming o filme ‘Saudosa Maloca’, baseado na vida do sambista, inclusive valendo-se do título de uma de suas canções mais famosas. Trata-se de película inspirada em alguns eventos da vida do cantor, não se desvelando como uma cinebiografia mais acurada de sua trajetória.

Gravado de forma criativa na recentemente restaurada Vila Itororó, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, antigo cortiço bem ao estilo da juventude de Adoniram, o atual centro cultural, foi ainda ponto de instalação da primeira piscina pública da cidade, coadjuvando em tom aprazível as desventuras e conquistas do sambista e sua malta. 

Nos deparamos com uma atuação bastante devotada do cantor e ator Paulo Miklos no papel principal, entregando performance eficiente que é esmerada pela sua função precípua no universo musical. Entre um lindamente retratado Bixiga dos anos trinta e quarenta, a trama é pontuada por episódios de famosas letras, ainda que de forma indireta, seja na voz do malandro galanteador que precisa pegar o ‘trem das onze’, a ordem de despejo da ‘saudosa maloca’, o fatídico samba na casa do ‘Arnesto’, até a sorte de ‘Iracema’. 

A despeito de eventual lacuna no roteiro, lembremos que não é a intenção do diretor Pedro Serrano exaurir a longa e versátil presença do artista nos palcos do teatro, TV e cinema, mas, de forma singela, delinear sua trajetória inicial no rádio, veículo de maior projeção na época, cotejando criações da obra musical do cantor, que também se destacou como compositor até o final da carreira, já debilitado por doenças pulmonares e exímio artesão nas horas vagas. 

O resultado, é a reafirmação de que o cinema nacional desde a retomada nos anos 2000, vem delineando produções que flertam com os mais diversificados vieses criativos, desde o true crime, super produções que alçaram voos internacionais e realizações independentes de terror. No caso de ‘Saudosa Maloca’, a vivência do homem comum em seu espaço, canta a cada verso exaltado nas ruas da metrópole e a vida única de seus habitantes. O filme encontra-se disponível nas plataformas Google Play Movies & TV, Apple Tv, YouTube e myfamily cinema, e vem encantando público e crítica, numa redescoberta de um dos grandes artistas brasileiros. 

Marcus Hemerly

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Lucio Fulci, o horror e sua derivações

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Marcus Hemerly: ‘Lucio Fulci, o horror e sua derivações’

Flyer Cinema m Tela: 'Lucio Fulci, o horror e sua derivações'
Flyer Cinema m Tela: ‘Lucio Fulci, o horror e sua derivações

Conhecido como o maestro ou poeta do macabro pelos famosos títulos de terror desdobrando icônicas cenas de gore a partir de sofisticados efeitos práticos, o diretor italiano Lucio Fulci (1927 – 1996), assimila como particularidade a versatilidade temática de sua filmografia. Desde suas primeiras realizações, foram explorados gêneros tais como a comédia, romance, faroeste, documental, e, finalmente, teve sua consagração internacional como um dos principais expoentes do horror no século XX.

Após uma desilusão amorosa e já havendo desistido de continuar o curso de Medicina, iniciou seus estudos de cinema no Centro Sperimentale di Roma, após trabalhar como crítico nos periódicos Gazzetta delle Arti e Il Messaggero, posteriormente tendo contato direto com nomes do calibre de Fellini, Antonioni, Vittorio de Sica, entre outros contemporâneos.

Inclusive, em entrevistas, mormente no famoso registro ‘Fulci Talks’, gravado em 1993, três anos antes de seu falecimento, revelou sua amizade próxima com Federico Fellini, dizendo que nos momentos de intimidade, conversavam sobre “paixões antigas e cachorros”, não necessariamente diluindo a cinefilia como tópico mandatório, a despeito de permear suas existências de maneira constante. Aliás, para o diretor, o cinema como razão de viver era um instrumento não só de expressão artística, mas de comunicação com o mundo, os sentimentos mais animalescos e os mais nobres traduzidos à tela a partir de sua esmerada regência. 

Ainda que frequentemente associado ao subgênero Giallo, junto a realizadores como Dario Argento e Mario Bava, é lembrado devido a produções de horror mais gráfico, seja por conhecidas cenas envolvendo ruptura de globos oculares, seja por regurgitações sanguinolentas, em filmes como ‘Zumbi 2’ e ‘O Estripador de Nova York’. Sua obra, todavia, não destoou do viés humano, intimista e, até mesmo, cósmico. Decerto, não é inaudito que tal desdobramento pode ser mais aterrorizante do que mortos-vivos e assombrações.

Importante lembrar que o cineasta captou o olhar de público e crítica, ainda que de forma controversa, a partir do drama histórico ‘Beatrice Cenci’, e o suspense policial ‘Uma sobre a Outra’, ambos de 1969, este último rodado e ambientado em São Francisco. Inclusive, a transposição de tramas à América, a exemplo dos western spaghetti, não seria algo pouco usual ao período, até como forma de divulgação.

Por um lado, se os gialli – modalidade de slasher com estilística própria e marcante – foram inaugurados por Maria Bava na produção ‘A moça que Sabia Demais’ (1963), este foi responsável de forma mais relevada na formatação de horror gótico, contudo, Fulci se destacou em ambas as vertentes.  A famosa ‘Trilogia das Portas do Inferno’, composta por ‘Terror nas Trevas’, ‘Pavor na Cidade dos Zumbis’ e ‘A casa do Cemitério’, desborda tanto eventuais close ups extremos sobre eviscerações, como cenas de suspense complexamente montadas, sobrepostas por trilhas sonoras marcantes. Constantemente, objeto de inspiração a criações nas décadas seguintes, valorizando um tom artesanal quando ainda não se conhecia o CGI. 

Por óbvio, seria inviável e até desrespeitoso, tentar exaurir impressões acerca do mestre em poucas linhas. Temas correlatos às motivações subjacentes de vários argumentos, suas funções como roteirista, produtor, além de ator em suas películas merecem objeto de dissertação mais verticalizadas. Seria, no mesmo tom, impossível cerrar os olhos às divas que aformosearam de modo igualmente intenso, não apenas as segmentações de Fulci, mas o cinema Italiano dos anos 60 a 80, precipuamente, as talentosas Barbara Bouchet, Edwige Fenech, Carroll Baker, star system similarmente formatado no Brasil, na época das produções da Boca do Cinema, em São Paulo. 

Suas últimas obras foram relegadas como títulos sem entusiasmo e carecendo do brilho vinculado ao início da carreira, que já era numerosa como roteirista e assistente de direção, muito antes de ‘Uma Sobre a Outra’ e os fabulosos ‘Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher’ e ‘O Mistério do Bosque dos Sonhos’, ambos estrelados pela brasileira Florinda Bolkan e sucesso mundial. No entanto, filmes como ‘Vozes das Profundezas’ e ‘Porta Para o Silêncio’ de 1991, guardam não apenas o estilo de Fulci, replicado em toda sua filmografia, como novos toques experimentais. O cineasta já havia transposto um brilhante panorama de metalinguagem no impressionante ‘Um Gato no Cérebro”, um ano antes, no qual interpreta a si mesmo, pois o trabalho do artista, como cediço, é inovar dentro do tradicional. Aliás, o clássico é perene, não sem justa motivação. 

FILMOGRAFIA SELECIONADA

1953 – O Homem, a Besta e a Virtude – L´uomo, La Bestia, La Vírtu (Roteiro)

1954 – Um Americano em Roma – Un americano a Roma (Roteiro)

I ladri (1959)

1959 – Rock, Twist e Doce Vida – I ragazzi del juke box

Urlatori alla sbarra (1960)

Colpo gobbo all’italiana (1962)

I due della legione (1962)

Le massaggiatrici (1962)

Uno strano tipo (1963)

Gli imbroglioni (1963)

I maniaci (The Maniacs, 1964)

I due evasi di Sing Sing (1964)

I due pericoli pubblici (1964)

002 agenti segretissimi (1964)

Come inguaiammo l’esercito (1965)

002 operazione Luna (1965)

I due parà (1965)

Come svaligiammo la Banca d’Italia (1966)

Le colte cantarono a morte e fu… tempo di massacro (Massacre Time, 1966)

Come rubammo la bomba atomica (1967)

Il lungo, il corto, il gatto (The Long, the short, and the Cat) (1967)

1967 – Operação São Pedro (1967)

1969 – Uma Sobre a Outra – Una Sull’Altra

Beatrice Cenci (The Conspiracy of Torture, 1969)

1971 – Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher – Una Lucertola con la Pelle di Donna

1972 – O Deputado Erótico – All’onorevole piacciono le donne (Nonostante le apparenze e purché la Nazione non lo sappia…)

1972 – O Segredo do Bosque dos Sonhos / O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos – Non si sevizia un paperino

1973 – Presas Brancas / Desafio ao Lobo Branco – White Fang

The Challenge to White Fang (1974)

Il cavaliere Costante Nicosia demoniaco… ovvero Dracula in Brianza (Young Dracula/Dracula in the Provinces (1975)

1975 – Os Quatro do Apocalipse – The Four of the Apocalypse

La pretora (1976)

1977 – Premonição – Sette Note in Nero (Seven Notes in Black, The Psychic)

1978 – Sela de Prata – Silver Saddle

1979 – Zombie A volta dos Mortos – Zombi 2 (Zombie Flesh Eaters, Zombie, 1979)

Contraband (1980)

1980 – Pavor na Cidade dos Zumbis – Paura nella Ciittà dei Morti Viventi (The Gates of Hell)

1981 – O Gato Negro – Il Gatto Nero

1981 – Terror nas Trevas – …E tu Vivrai nel Terrore! L’Aldilà (Seven Doors of Death)

1981 – A Casa do Cemitério – Quella Villa Accanto al Cimitero

1982 – O Estripador de Nova York – The New York Ripper

Manhattan Baby (1982)

Conquest (1983)

I guerrieri dell’anno 2072 (The New Gladiators/Rome 2033 – The Fighter Centurions, 1984)

Murder-Rock (1984)

O Mel do Diabo – The Devil’s Honey (1986)

Aenigma (1987)

Zombi 3 (1988)

When Alice Broke the Mirror (também conhecido como Touch of Death, 1988)

Sodoma’s Ghost (também conhecido como The Ghosts of Sodom, 1988)

The Sweet House of Horrors (1989, TV)

The House of Clocks (1989, TV)

Demonia (1990)

Um gato no Cérebro – A Cat in the Brain (Nightmare Concert, 1990)

Vozes das Profundezas – Voices From Beyond (1991)

Porta Para o Silêncio – Door to Silence (1991)

Marcus Hemerly

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Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a imagética do medo

CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly

Artigo: ‘Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a

imagética do medo’

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'Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski:  a  imagética do medo'
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‘Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a imagética do medo’

“…Tudo que aos olhos se interpõe,
  É um sonho dentro de um sonho…”

Edgar Allan Poe

As cidades, assim como toda urbe, são emaranhados de vivências, aspectos únicos, subjetivos, e ao mesmo tempo coletivos de uma cultura organizacional que, sincronicamente, erige e desconstrói. Indivíduos em seus recortes pessoais são retratados em carne e osso, bem como em celuloide; uma matéria-prima extremamente rica e mutante, e, até mesmo, poder-se-ia asseverar, metamorfosicamente ambulante, para citar o ‘maluco beleza’.

A partir de cores, elucubrações anímicas, relatos e sentimentos, as metrópoles, de forma global e alinhando várias tessituras, desenham contornos não apenas de edificações materiais, mas também a solidez de trilhas individuais, as quais, ulterior e finalisticamente, compõem o coletivo, ao mesmo tempo anônimo e vivaz, cosmopolita e em cotejo a significação emotiva de seus componentes.

O mesmo pode ser dito acerca dos apartamentos, prédios, casas, estruturas que encapsulam a célula subjetiva como peça coadjuvante da alegoria principal. Nesse espaço, as habitações coletivas são recorrentemente tratadas como pano de fundo nas representações artísticas, mormente pela literatura e cinema, ou numa junção adaptativa de ambos.

A chamada Trilogia dos Apartamentos, do diretor polonês Roman Polanski, trabalha esses aspectos de forma robusta e sofisticada ao amalgamar o drama psicológico humano às feições do sobrenatural, ora de forma velada, ora de maneira (quase) explícita. 

A proposição temática que se envereda é deflagrada pelo título ‘Repulsa ao sexo’, (Repulsion,1965), pelo qual o reduzido número de personagens canaliza o suspense na grande performance de Catherine Deneuve, que, de forma progressiva, vai cruzando os umbrais da insânia – ou assim parece ao espectador – entregue a suas divagações oníricas.

Na trama, escrita por Polanski e Gérard Brach, acompanhamos Carole Ledoux, mulher retraída e atormentada que,  deixada sozinha no apartamento que divide com a irmã, inicia uma escalada paranoica permeada por pesadelos e alucinações no momento em que a personagem entra em contato com os homens e, naquele espaço, confrontada por seus desejos a ela canalizados. 

Vislumbra-se uma abordagem indireta sobre transtorno de aversão sexual, representado pela rejeição patológica e persistente a todo tipo de contato genital. O estado mental de Carol e sua deterioração é intensificada e, talvez, adornada, por sua reclusão nas dependências do apartamento, que pode ser até mesmo interpretado como um catalisador da figura masculina em seu inconsciente, num misto de terror psicológico e suspense.

À sombra desse tópico, interessante diferenciar do ponto de vista analítico, as definições de suspense e horror. Ainda que usualmente aludidos como sinônimos, o terror se assimila de forma premente ao medo e angústia não aparente, psicológica. Lado outro, o horror exsurge de contornos mais explícitos, que causam asco e repulsa. Ao mesmo tempo em que um denota o lado de estado mental, o outro suscita a surpresa e efeito mais gráfico e visual. 

No título ‘O bebê de Rosemary’, (Rosemary´s Baby, 1967), seu grande sucesso em terras estadunidenses, adaptado do romance homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde ocorreu o assassinato de John Lennon. Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo. O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount. 

Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma obra rasa como as que inundavam os cinemas no período. 

Rosemary, a partir de pontos distribuídos no decorrer da película, suspeita de que os engajamentos satânicos de seus confrontantes objetivam utilizar seu rebento iminente, em oferenda ao diabo. Seria realmente um conciliábulo de bruxos em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial?  Mais perguntas são entrecortadas por induções, do que respostas são ofertadas durante as duas horas de duração. 

Nos anos 70, após a realização de outro grande sucesso de público e crítica, o noir ‘Chinatown’, estrelado por Jack Nicholson e roteirizado pelo lendário Robert Towne, o diretor teria problemas com a justiça americana, fazendo com que tivesse que fugir do país para evadir-se a um processo criminal, devido ao envolvimento sexual com uma menor de idade.

Polanski já havia também assimilado holofotes por outro drama pessoal ocorrido em 1969, com o assassinato de sua então esposa grávida, a atriz Sharon Tate, pelos discípulos de Charles Manson. A posterior produção do realizador seria voltada ao velho continente, retornando ao ponto de partida de sua carreira, no entanto, não em tom de retrocesso.

O filme ‘O inquilino’, (Le Locataire/The Tenant, 1976), novamente explorando a multitude de relações humanas em um prédio de apartamentos, alinha a história do pacato Trelkovsky, interpretado pelo próprio Polanski,  que a despeito de sua atuação em expressões contínuas e poucos versáteis, traz credibilidade ao confuso e apático personagem que acredita-se vítima de uma conspiração pelos demais moradores do prédio, de modo similar a anterior locatária de seu apartamento, que teria se atirado pela janela. 

Aqui, tal como amoldado em Rosemary e Repulsa, a carga de tensão é construída não pelo que é mostrado, mas repousa naquilo que é presumido ou deduzido a partir de sugestões que podem ou não ser entendidas como tal, lastreando gradualmente o sustentáculo ao clímax derradeiro.

A obsessão do Inquilino Trelkovsky pela mulher, ocupante anterior de sua escabrosa morada, e a certeza da conspiração contra sua higidez, repise-se, física e mental, culmina em numa alucinada entoação acusatória próximo ao final do filme: “Eles querem me transformar em Simone Choule!”.

Esses aspectos desvelam um tecido construído de maneira mais minuciosa e robusta por elementos contínuos inseridos no roteiro. Planos sequência a partir da visão dos personagens e suas fantasias baseadas em elementos empíricos ou imaginários, constroem uma narrativa extremamente eficaz em todos os filmes aqui citados, que guardam peculiaridades no aspecto de construção da tensão e medo incutido ou projetado pelos protagonistas destes distintos city films.

Matizes de ambientes, bem como alternância psicológica dos personagens ajudam a compor as diversas camadas que esmeram a densidade dos roteiros e despertam a crescente inquietude e desconforto àquele que os assiste. 

É sabido que, quando se fala em arte (ou se sente), a noção de relativismo histórico antropológico exsurge de maneira bem forte, seja num olhar individual ou amplificado, pois, assim como a criação de uma obra pelo artista, sua interpretação inexoravelmente indica um troca. Uma miríade, na verdade. Congruentes ou incongruentes, similares ou de harmonia flagrantemente denegada, tal é a complexidade do ser humano sensível, que reage de maneiras distintas a eventos em comum. E, a partir desta visão multifacetada, a cada sessão, novas interpretações e emoções são detectadas, como impressões digitais ou pegadas na areia, antes encobertas, para serem detectadas por um novo olhar apreciativo.

Marcus Hemerly

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A imagética fílmica da obra de Azualdo Candeias

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Marcus Hemerly: ‘A imagética fílmica da obra de Azualdo Candeias’

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“Cinema, enxergar a alma de quem o faz…”

Carlos Reichenbach

Cediço que a fotografia é a tônica da chamada sétima arte. A partir da invenção do cinetoscópio até a viabilização de captação e transmissão mais sofisticada de imagens, a movimentação das formas amolda-se a uma das mais populares expressões artísticas.

Idealizado originalmente de forma rudimentar, com o aprimorado do invento pelos irmãos Auguste e Louis Lumière e a primeira transmissão coletiva em 22 de março de 1895, delineou-se, ainda de forma primitiva, os contornos da concepção atual do cinema; o filme, ‘La Sortie de L’usine Lumière à Lyon’ (A saída da Fábrica Lumière em Lyon), deflagra o vindouro ritual de agrupamento para apreciação cinematográfica.

A partir de tal premissa, imperioso atentar à definição do aludido ‘primitivismo’ e suas derivações analíticas, seja a partir de uma definição de estilo ou um epíteto desabonador. No caso de Ozualdo Ribeiro Candeias, essa qualidade revestiu-se de tom imersivo criativo. 

Nascido provavelmente no ano de 1918, inexiste informação precisa consoante o próprio cineasta voluntariou em diversas entrevistas, foi registrado 1922, em Cajobi, cidade paulista da região de São José do Rio Preto.

De oficial da aeronáutica, caminhoneiro a diretor que se destacou de maneira peculiar no cânone nacional, exsurgindo como figura emblemática, de forma ainda mais relevante ao nicho paulista. Possivelmente, a parir de ‘andanças’ em peregrinação pessoal e profissional, amealhou parte da inspiração a produções de forte viés social que amolda sua filmografia.

Se de um lado, a crítica à problemática econômica, política e social era visitada pelo cinema novo, flagrantemente rotulado como elitizado sobre o ponto de vista intelectual, tais vertentes foram igualmente exploradas no cinema marginal de Candeias e seus contemporâneos.  

Mesmo atuando na chamada Boca do Lixo ou Boca do Cinema, polo da produção Paulista nos anos 60 a 80 localizado na região central da capital, não se deve confundir o dito cinema marginal com aquele rotulado de ‘cinema da boca’.

Não que tal comparação apresente feições pejorativas. Ao revés, grande parte dos títulos lançados no país entre o auge e derrocada da Boca foram ali realizados. Decerto, as produções de teor mais apelativo e sensual da Rua do Trimpho, não cerraram os olhos ao talento artístico, menos comercial, das idealizações de Candeias.

Diante de sua criatividade marcante e extrema versatilidade, o ator e cineasta Adriano Stuart, em depoimento ao Documentário ‘Boca do Lixo: A Bollywood Brasileira’, de Daniel Camargo (2011), asseverou que numa conversa com o diretor, qualquer pessoa poderia assumir sua formação acadêmica na área do colóquio, a respeito da qual dissertaria com autoridade, dada a facilidade com que gravitava em torno dos mais diversos temas. 

Essa peculiaridade é marcante nos roteiros de roupagem extremamente nacional, que replicaram nas terras tupiniquins os Bang Bang Hollywoodianos ou os westerns spaghetti, (aqui, rotulados de Bang Bang Feijoada) a exemplo de ‘Meu Nome é Tonho’, sem destoar, repise-se, da brasilidade e pronunciados desdobramentos experimentais.

O tom harmônico e atento às mazelas do campo e suburbanas, retratando o êxodo e consequentes problemáticas advindas, foram tratadas de forma densa em ‘Zézero‘ e na icônica produção ‘A Margem‘, que encena a vida (ou sobrevivência) nos entornos do Tietê.

A migração desordenada, que contribuiu ao crescimento das comunidades periféricas, as dificuldades do homem do campo, disputas fundiárias, entre outras tragédias humanos e sociais, são aspectos problematizados em olhar sensível e visceral, transgredindo ‘regras’ do storytelling industrial e subvertendo-as numa ótica, e nesse ponto, atentemo-nos, não primária, mas primitivista, ao desenhar os contornos de um cinema da realidade com pronunciada estilística documental. 

A despeito de Candeias renegar o título de cineasta marginal, e, ainda que do ponto de vista histórico comparativo seja possível erigir questionamentos quanto a sua inserção/deflagração no referido movimento underground ou udigrudi paulista, os traços marcantes daquilo que está ‘à margem’, inclusive o título de seu filme mais famoso, contextualizam a imagem da miséria e conflitos como chave de expressão.

Essa característica explorada por vários veteranos da Boca como o lendário José Mojica Marins, que produzia e até mesmo se estimulava, com a falta de recursos, no entanto, para Candeias, ganhava contorno proposital, transpondo à tela, sem retoques ou floreios, a realidade nua e crua. 

A crítica? Ao governo, à sociedade, ao próprios infligidos e afligidos, em ótica pessoal, insurgente, e que viaja pelo contexto histórico político nacional; entre o rotulado ‘milagre econômico’, o ápice da repressão após a instituição do AI-5 até a abertura política e paralelo enfraquecimento do mercado cinematográfico nacional no final dos anos 80 e 90.

Se, de um lado, compara-se o desdobramento cinemanovista à Nouvelle Vague, o olhar de Candeias, assim como os demais diretores marginais, pode ser equiparado ao neorrealismo, mormente diante da mencionado formatação documental e a utilização de atores não profissionais, valorizando o cotejo de tomadas e ângulos inventivos a longas sequências que dialogam com o próprio personagem. 

Assim como a definição expressionista, o poder da imagem é valorizado de forma enlevada, no aspecto de desvelar simbólico ou explícito; da irascibilidade urbana à precariedade de recursos na faina campesina. Em sua brilhante tese de doutorado, intitulada ‘Ozualdo Candeias na Boca do Lixo: A Estética da precariedade no cinema Paulista’, (Fapesp, 2012, pag. 187), Ângela Aparecida Teles disserta: 

“O cinema de Candeias não tem como proposta a fruição descomprometida. Buscando realizar um cinema com dimensões sociais, políticas e culturais, produziu filmes mesclando a narrativa ficcional e a documentária nos formatos curta, média e longa-metragem; em películas 16 mm, 35 mm e em VHS.

Nessa construção da ficção cinematográfica acompanham-se os cruzamentos com a fotografia, o jornal, a oralidade caipira e o diálogo com o cinema. Essas práticas sociais da linguagem trabalhadas e ressignificadas nos filmes de Candeias permitem interpretar mudanças socioculturais daquele contexto, décadas de 1960 a 1980, constituídas numa estética que tem como leitmotiv a mobilidade e a precariedade experimentadas pelos caipiras pobres no campo e na cidade.

Tal processo histórico não diz respeito apenas a questões econômicas ou de mudança geográfica, mas trata do deslocamento cultural, do viver na fronteira, em um processo agonístico de hibridação cultural que permeia a busca por novos territórios e significados para a existência”. 

Após comprar uma câmera 16 mm Keystone, instrumento que o habilitou a compor filmes caseiros, aprendeu a técnica cinematográfica de forma autodidata, fazendo com que se iniciasse na realização de documentários e curtas, como ‘Tambaú’, e ‘Cidade dos Milagres’, época em que frequenta o Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

Atuando como cinegrafista, produz cinerreportagens e filmes institucionais encomendados para o governo do estado de São Paulo, enquanto, concomitantemente à sofisticação de sua visão criativa, se engaja com os realizadores da Boca, amoldando seu impulsionamento mais forte na vertente da ficção. 

Aliás, sua multitude funcional é elencada no site IMDB, (Internet Movie Data Base), tendo em vista que Candeias teria exercido as funções de diretor, roteirista, produtor, ator, diretor de fotografia, cinegrafista, editor, diretor e gerente de produção, desenhista de cenários figurino, diretor de segunda unidade e fotógrafo de cena.

Já foi escrito que os artistas brasileiros, os quais digladiam-se com as carências rotineiras, usam a falta de recursos como elemento de motivação e composição de criação, e, a partir dessa visão, compõe-se uma das principais característica da marginalia fílmica nacional. Ora, a música detinha a paralela Tropicália. 

Taxado de sisudo por alguns, até mesmo ríspido por outros, o amor e sensibilidade pelo cinema são indissociáveis da própria história do realizador.

Os vetores imagéticos dos filmes de Candeias, pode-se dizer, são impulsionados por sua história pretérita como cinejornalista, viés que nunca abandonaria, sendo pertinente lembrar dos famosos curtas e média-metragens, ‘Uma Rua Chamada Triumpho’ e ‘Festa na Boca’ de 1972, pelos quais ‘passeia’ apresentando os protagonistas da locomotiva que era o cinema paulista da época, convivendo em harmonia com a zona de meretrício e criminalidade na região. O crítico de cinema Salvyano de Cavalcanti Paiva, já escreveu:

“Candeias é cineasta intuitivo, original, com raro e forte senso de imagem. A tipologia que cria é do mais absoluto realismo: seu hábito de filmar, a falta de recursos econômicos, levou-o a uma espécie de marginalismo no cinema nacional, pois não usa rebatedor, não usa maquiagem nos atores, prefere trabalhar com gente sem experiências profissionais, enfim, faz filme sem concessão ao bom tempo da época”

À sombra dessa ideia, tendo por norte que as produções idealizadas no polo da Rua do Triumpho podem ser, num primeiro momento, identificadas como um fenômeno ao reverso de um movimento propriamente dito, o cinema marginal ainda que caminhasse não de modo excludente ao cinema novo, teve, renove-se, seus próprios traços marcantes, cujos nomes indissociáveis são o próprio Candeias, Rogério Sganzerla, de ‘O Bandido da luz Vermelha’, e Carlos Reichenbach. 

Em análise linear da evolução histórica das produções brasileiras entre os anos sessenta e setenta, quando o ingresso de cinema se igualava ao preço de uma passagem de metrô e ônibus, verifica-se como admirável a possibilidade quase instintiva de sobrevivência dos títulos menos palatáveis ao grande público, de modo quase amalgamado à dita (e erroneamente taxada) pornochanchada, que arregimentava substancial público às salas de cinema. 

Essa impressão e expressão, é explicada, talvez, pela quase compulsiva retratação e documentação da degradação humana levada a efeito pelo vasto acervo fotográfico atribuído a Candeias, pontualmente, durante suas viagens pela América do Sul, ou pelos registros do submundo na região central de São Paulo.

A dura vida das profissionais do sexo, no âmbito urbano ou rural, do deficiente, do iletrado ingênua e obliterado pela epifania religiosa, religiosidade, instintos primitivos em meio a situações extremas, além das fontes sociológicas do êxodo foram tópicos que protagonizaram sua preocupação artística.

Na icônica obra sobre a relevância do diretor naquele universo, Fábio Raddi Uchôa, (Ozualdo Candeias e o Cinema de Sua Época (1967-83) – Perambulação, Silêncio e Erotismo. Alameda. 2019. pag.187, consigna: 

“Ozualdo Candeias participou de diversas produções da Boca do Lixo, como ator, produtor, roteirista, diretor de fotografia e fotógrafo de cena, estabelecendo muitos contatos e se tornando uma presença frequente na região.

Paralelamente a tais trabalhos, de forma constante e rotineira, realizou um amplo trabalho fotográfico sobre a Boca do Lixo, enfatizando a vida cotidiana, os habitantes, as prostitutas, a arquitetura do bairro da Luz, bem como os trabalha- dores da indústria cinematográfica.

A proximidade era tão grande que, durante os últimos anos de sua vida, o cineasta morou em um apartamento na Av. Rio Branco. Sua peregrinação diária por alguns bares das redondezas tornaram-no uma figura quase onipresente.

Como profissional do cinema, na Boca do Lixo dos anos 1970-80, participou da realização de comédias eróticas e filmes de sexo explícito. Ao longo deste período, acompanhou as transformações sofridas pelo cinema erótico paulista, em termos de gênero e de produção”

Trata-se de um cinema esmerado, não subjugado às amarras do vendável e da pretensão puramente industrial, preocupação importante na época em que as produtoras privadas não caminhavam de mãos dadas com a extinta Embrafilme, após a falência da Vera Cruz e Maristela.

Recentemente, polos culturais, precipuamente do Estado de São Paulo tem realizado mostras e homenagens ao cineasta, que, felizmente, pode receber algumas ainda em vida. Contudo, seus filmes remontam a um período de cinema artesanal, que nas palavras de David Cardoso, importante nome dos anos setenta, não se faz mais.

Em tom epilogal, o choque imagético na retratação que a partir de uma primeira mirada poderia desdobrar algo simplório, em verdade, choca, dentro de sua esfera incisiva e primitiva. Um clamor por atenção a deficiência sociais, e econômicas de construção histórica, que na maioria das vezes, conscientemente é negligenciada. Afinal, se a imagem produz incômodo, fecha-se a janela. Cadeias fez o contrário.

FILMOGRAFIA COMPLETA COMO DIRETOR (Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/candeias/extras/08_01.php)

LONGAS

A MARGEM (1967) (1967)

Ficção, 35 mm, P&B, 96 min

O ACORDO (1968)

(episódio de Trilogia do terror)

Ficção, 35 mm, P&B, 42 min

MEU NOME É TONHO (1969)

Ficção, 35 mm, P&B, 95 min

A HERANÇA (1971)

Ficção, 35 mm, P&B, 90 min

CAÇADA SANGRENTA (1974)

Ficção, 35 mm, Cor, 90 min

A OPÇÃO OU AS ROSAS DA ESTRADA (1981)

Ficção, 35 mm, P&B, 87 min

MANELÃO, O CAÇADOR DE ORELHAS (1982)

Ficção, 35 mm, Cor, 81 min

A FREIRA E A TORTURA (1983)

Ficção, 35 mm, Cor, 85 min

AS BELLAS DA BILLINGS (1987)

Ficção, 35 mm, Cor, 90 min

O VIGILANTE (1992)

Ficção, 35 mm, Cor, 77 min

MÉDIAS

ZÉZERO (1974)

Ficção, 35 mm, P&B, 31 min.

O CANDINHO (1976)

Ficção, 35 mm, P&B, 33 min

CURTAS

TAMBAÚ, CIDADE DOS MILAGRES (1955)

Não-ficção, 14 min, 16 mm, P&B

POLÍCIA FEMININA (1960)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min

ENSINO INDUSTRIAL (1962)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 12 min

RODOVIAS (1962)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min

AMÉRICA DO SUL (1965)

Não-ficção, vídeo, P&B/Cor, 30 min

CASAS ANDRÉ LUIZ (1967)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min

UMA RUA CHAMADA TRIUMPHO 1969/70 (1971)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 11 min

UMA RUA CHAMADA TRIUMPHO 1970/71 (1971)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min

BOCADOLIXOCINEMA OU FESTA NA BOCA (1976)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 12 min

A VISITA DO VELHO SENHOR (1976)

Ficção, 35 mm, P&B, 13 min

SENHOR PAUER (1988)

Ficção, 35 mm, Cor, 15 min

VÍDEOS

O DESCONHECIDO (1972)

Ficção, P&B, 50 min

HISTÓRIA DA ARTE NO BRASIL (1979)

Não-ficção, Cor, 21 episódios de 30 min

LADY VASELINA (1990)

Ficção, Cor, 15 min

CINEMATECA BRASILEIRA (1993)

Não-ficção, Cor, 13 min

OUTROS DOCUMENTÁRIOS REALIZADOS POR CANDEIAS

POÇOS DE CALDAS (1956)

Não-ficção, 35 mm, P&B

Direção: Ozualdo R. Candeias.

Fotografia: Eliseo Fernandes.

Produção: Eliseo Fernandes.

Cia. produtora: SESI.

Documentário institucional sobre as atrações turísticas da cidade de Poços de Caldas.

INTERLÂDIA (déc. 60)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 7 min

Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.

Produção: H. Rangel.

Cia. produtora: Rangel Filmes.

Documentário institucional apresentando as atividades econômicas, religiosas e sociais da cidade de Espírito Santo do Pinhal.

JOGOS NOROESTINOS (déc. 60)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min

Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.

Produção: H. Rangel.

Cia. produtora: Rangel Filmes.

Documentário sobre os VI Jogos Noroestinos, ocorridos em Campo Grande.

MARCHA PARA O OESTE N° 3 (Campo Grande) (déc. 60)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min

Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.

Produção: Michel Saddi.

Cia. produtora: Produções Michel Saddi.

Documentário institucional sobre os progressos da cidade de Campo Grande.

MARCHA PARA O OESTE N° 5 (Corumbá) (déc. 60)

Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min

Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.

Produção: Michel Saddi.

Cia. produtora: Produções Michel Saddi.

Documentário institucional sobre o desenvolvimento econômico da cidade de Corumbá.

BASTIDORES DAS FILMAGENS DE UM PORNÔ – BR, SP – (déc. 90)

Não-ficção, Cor, 13 min

Direção, fotografia e produção: Ozualdo R. Candeias.

Documentário que através das fotografias de Ozualdo Candeias registra de forma irônica a realização de um filme pornográfico

Marcus Hemerly

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São Paulo S.A. –  A construção da obra-prima de Luiz Sergio Person

CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly: Artigo ‘A construção da obra-prima de Luiz Sergio Person’

“recomeçar… recomeçar… mil vezes recomeçar…Recomeçar.”

Walmor Chagas em São Paulo, S/A.

Por um lado, se há o aforismo pelo qual não existe nada perfeito, de outra visão, existem composições artísticas que beiram tal definição. É o caso do longa-metragem de 1965, São Paulo, Sociedade Anônima, estreia de Luiz Sérgio Person na direção.

Analisando os históricos de bastidores, trata-se de uma película na qual não houve qualquer tipo de rusgas, atrasos ou imprevistos durante sua filmagem, demonstrando um cronograma de viés empresarial. Inclusive, uma das peculiaridades assimiladas pelo filme, é justamente o cotejo de qualidade artística e feições autorais ao aspecto comercial, pois o que se desvela é uma fita vendável e palatável a todas as audiências.

Não é sem fundamento sua pronunciada distribuição no exterior, participação em festivais, além do amealhar de estrelas da TV e teatro ainda durante sua pré-produção. Originalmente intitulado de “Agonia”, a partir de um poema de Vinícius de Moraes, conhecemos a história de Carlos, interpretado por Walmor Chagas em seu primeiro papel no cinema, que se relaciona e casa com a jovem Luciana, uma das maiores performances de Eva Wilma.

Perpassando seus conflitos internos numa narrativa não linear extremamente eficiente e inovadora, revelam-se ainda personagens secundários densos e complexos. Numa miríade de nuances e evoluções, acompanhamos o amadurecimento dos personagens transposto à tela por bem esmeradas e detalhadas evoluções de figurino e gestual.

Aspectos minuciosamente orquestrados pela direção precisa e eficaz de Person, que retornava ao Brasil após ter estudado no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, diferenciando-se dentre muitos de seus contemporâneos pelo know how e a visão, repise-se, artística e empreendedora na arte de fazer cinema.

É possível asseverar que o projeto desde a concepção do argumento e roteiro, com a sagaz mudança posterior do título, escolha de elenco a partir de suas potencialidades, (inclusive para fins de publicidade), fazem de “São Paulo, SA” um dos filmes mais bem sucedidos do cinema nacional.

A despeito de críticas conflitantes no Brasil e no plano internacional, até mesmo indicando que o roteiro muito aproximava-se de um folhetim novelesco, é inegável que o dialogar empático com os mais diversos tipos de público, sem destoar da sofisticada forma na qual a cidade é retratada, até mesmo como um personagem autônomo, revelam a arte e precisão da produção.

Desde as externas rodadas em momentos mais lúgubres e cinzentos da capital paulista, estilo de filmar aproximando-se, ora do neorrealismo, ora do Nouvelle Vogue perpassando as cores (ou descolorir) existencialista, o que materializa é um roteiro eficiente e aprazível àqueles que apreciam a boa arte.   

A insatisfação ríspida do protagonista, e, diga-se, quase anti-herói, Carlos, a contraposição da ingênua Luciana e seu posterior despertar do casulo de ingenuidade, o industrial proeminente e trapaceiro interpretado brilhantemente por Otelo Zeloni, se amalgamam à própria cidade que serve de esteio a suas ambições, frustrações e sucessos.

Um retrato fiel de um período, orquestrado de modo lírico por uma história contada com a perfeição na qual todos os desfechos do roteiro são decupados com perícia e entrecortados com simbolismos.

De se dizer ainda, que estampando-a em tom coadjuvante, não raro até mesmo protagonista, renove-se, a cidade de São Paulo é um personagem à parte, na qual a retratação da expansão industrial automobilística em determinados momentos desvela até mesmo um tom documental.

A técnica narrativa é descrita de forma magistral por Ninho Moraes, em sua obra para a Coleção Aplauso, “Radiografia de um Filme”, (p.190), na qual disserta:

“Para ser analisado, São Paulo Sociedade Anônima coloca-se como um desafio entre cenas avulsas intercaladas na construção de um sumário narrativo. A história filmada respeita a história escrita e não propõe sequências que se liguem diretamente.

Poucas ações ocorrem sucessivamente em tempo e lugar definidos. Ao contrário de um romance ou de um filme, que narram uma história com começo, meio e fim, o roteirista- diretor olha o universo dos personagens de fora para dentro, como se fossem lembranças, os tais flashbacks, ou até mesmo um sonho ou sucessão de sonhos”.

Planos e sequências gravadas em grandes montadoras multinacionais, cenas interiores que a partir de cada angulação potencializam a fala e presença de cena dos personagens, além da trilha sonora instigante emolduram uma produção que merecidamente encabeça a lista de melhores filmes realizados em solo brasileiro.

Ressalva-se, por óbvio, impressões diversas, afinal, tal é o papel das artes, instigar sentimentos bem como reflexões/provocações. Na biografia de Walmor Chagas concebida também para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial, Djalma Limongi Batista, (p.47), escreve acerca de tais vertentes:

“Radicalmente, o filme de Luís Sérgio Person expressa a tensão de uma cidade latino-americana prestes a se tornar cosmopolita e megalópolis, em sua explosão industrial- financeiro-demográfica, poderosa e fatal como uma górgona hipnótica, capaz de sugar a alma e petrificar o corpo.  Metrópole a qual se ama e odeia, se quer largar e tem-se sempre que voltar – e recomeçar… Nem a Cidade do México, ou Buenos Aires, Caracas, nem o Rio de Janeiro produziram filme tão impressionantemente identificado com esse momento”.

Segue pontuando, “E, ainda mais raro, a formação de sua classe dominante – assunto tabu numa cinematografia que é sempre aplaudida, internacionalmente, quando expõe (quanto mais brutalmente melhor) a classe pobre e pra lá de oprimida. Nem sendo paulista, Walmor Chagas consegue com sua singular persona, montada quando chega a São Paulo, identificação completa com a cidade e o mais simbiótico de seus filmes”.

Interessante apontar que outra realidade seria transposta em momento ulterior por um dos discípulos de Person da faculdade de cinema da São Luiz, o festejado cineasta marginal Carlos Reichenbach, que dedicaria a ele sua obra-prima, Filme Demência.

Naquele roteiro, numa releitura contemporânea e urbana da lenda de Fausto, Reichenbach demonstraria a derrocada e crise do contexto industrial em meados dos anos 80, ao trabalhar os extremos das promessas econômicas não cumpridas, e podendo com isso, indicar a volatilidade tanto dos seres humanos, de carne e osso, quanto das selvas de pedra que os devoram na forma de leões de concreto, ou os regurgitam em alheio defenestrar.

Poema citado no texto.

Agonia  – Vinícius de Moraes

No teu grande corpo branco depois eu fiquei.

Tinha os olhos lívidos e tive medo.

Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia

Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.

Na minha angústia eu buscava a paisagem calma

Que me havias dado tanto tempo

Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida

E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.

Eu estremecia agonizando e procurava me erguer

Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.

Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma

Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.

Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente

Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.

Link para assistir ao filme pelo you tube: https://www.youtube.com/watch?v=ns-LPKhz_AE

Marcus Hemerly

marcushemerly@gmail.com

WhatsApp: 28/99994-1202

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