Folk horror, folie à plusieurs

CINEMA & PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:

Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar’

Flyer da coluna Cinema & Psicaálise. 'Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar'
Flyer da coluna Cinema & Psicaálise.Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar’

“Sentiu-se novamente incluído no círculo dos homens…”
Kafka, A Metamorfose

Um aspecto interessante que parece nos atravessar cotidianamente é uma espécie de duplo: quando alguma coisa é capaz de ser estranha, obscura, inquietante e oculta, ao mesmo tempo que têm características familiares. Trata-se de algo que, por um lado, reconhecemos como íntimo e conhecido, mas, por outro lado, percebemos o fenômeno enquanto desconhecido. Isso traz ressonâncias e reverberações bastante ambíguas que nos instigam a querer saber mais, mesmo que esta busca possa nos causar incômodos ou sensações do tipo: ‘isso é perturbadoramente belo’ ou ‘é estranhamente fascinante’. 

É possível dizer que, por esta e outras razões, revela-se pronunciado furor pelo entretenimento de terror, suspense, mistério, além do ímpeto em assistir ou ouvir notícias mórbidas e sensacionalistas. No Brasil dos anos 60 a 90, o já extinto jornal ´Notícias Populares´, similar aos tabloides americanos de qualidade e procedência questionáveis, enfeitiçava a atenção de seus leitores, além do famoso telejornal de notícias com forte apelo popular, ‘Aqui Agora’. Na atualidade, ainda temos este mesmo formato de telejornal com notícias, muitas vezes, em tempo real, de evidente apelo midiático, como ‘Cidade Alerta’ e ‘Balanço Geral’, perpetrando verdadeiras ânsias nos espectadores em consumir tais conteúdos. E, no universo das artes e expressão humana, não se vislumbra tendência contrária. A poética do sobrenatural e do gótico, sejam nas artes visuais ou literárias, emerge como fator de alcance de consumo, marcando obras atemporais comumente citadas e que permeiam o imaginário popular. 

Na indústria do entretenimento, a exibição de conteúdos diversos, sejam eles apelativos ou nem tanto, além de uma forma de arte, o cinema é um nicho extremamente lucrativo para isso, cite-se aquele denominado ‘de exploração’ ou exploitation. Alguns exemplos seriam os filmes ‘B’ realizados na Oceania, Ozploitation; Bikersploitation, filmes de motocicleta; Zumbis e Canibais; Blaxploitation, traduzindo elementos, como gírias e estereótipos da cultura negra; Anuxploitation, películas ‘B’ canadenses; Carsploitation, filmes usando carros com corrida, batidas e explosões; Chambara films, aventuras de samurai; Nazisploitation, sobre campos de concentração nazistas; Nudist films, inseridos numa lista prolífica.

Não raro a miscelânea de subgêneros se entrelaça ou minimamente se toca em alguns pontos, o filme de terror ‘Alucarda,(1977)’, de viés sobrenatural, poderia facilmente ser inserido naqueles denominados nunsploitations, filmes eróticos de freiras, contemporâneos à derivação dos chamados ‘WIP – Women in Prison’ (mulheres na prisão). No entanto, o cinema deve ser apreciado, não qualificado, pelo menos quando não inserido no contexto acadêmico. 

Tratam-se de produções rápidas e relativamente baratas, com o objetivo de lucro imediato sem grande apreço, salvo exceções casuísticas, pelos desdobramentos estéticos e artísticos da película. Observa-se nesse panorama, um reflexo evidenciado pela demanda mercadológica. No Brasil, de modo similar, verifica-se tal fenômeno no cinema produzido na chamada ‘Boca do Lixo’ paulistana, quando a partir dos anos 80, as errônea e genericamente rotuladas de pornochanchadas, deram espaço ao cinema explícito. 

Como se sabe, revela-se uma inclinação atual à rotulação e  criação de constantes definições, tais como subtítulos ou subgêneros muitas vezes inócuos. Contudo, em meio a esta ‘sopa de letrinhas’, como o porn torture (‘O Albergue, 2005’), ou o found footage (‘A Bruxa de Blair’, 1999), voltemos a atenção para aquela chamada de folk horror, com representativos pontuais, principalmente a partir dos anos 60, ainda que não denominados inicialmente como tal, pois o termo é relativamente recente, aplicado a partir dos anos 2000.

O terror folclórico, em verdade, se apropria de características regionais ou elementos de folclore, oral ou escrito, a fim de criar os aspectos secundários de suspense, ou mesmo, alinhavar a estrutura de toda a trama, de maior relevo no cinema britânico a partir dos anos 60. Desde clássicos como ‘O Homem de Palha’, (1973), com destaque para a atuação instigante de Christopher Lee, e sua problemática refilmagem de 2006, até celebrados títulos recentes como ‘A Bruxa’ (2015), ‘A lenda do Cavaleiro Sem Cabeça’ (1999) e, finalmente, ‘Midsommar’ (2019).

Na trama de ‘Midsommar’, do aclamado diretor Ari Aster (também do amado e odiado ‘Hereditário’, 2018), temos elementos de roteiro e cinematografia que não só encantam pela sua belíssima fotografia diurna em tons e nuances em vermelho, azul e branco, remetendo ao contexto da seita, como também as questões históricas dos rituais, das tradições ancestrais e da cultura do remoto vilarejo sueco. Acompanhamos um grupo de estudantes que viaja a este lugar ermo na tentativa de estudar o grupo e seus costumes.

Inicialmente, a viagem é marcada por uma tragédia envolvendo a família de Dani (Florence Pugh), então a contragosto de seu distante namorado, Christian (Jack Reynor), embarca junto a ele e seus amigos para o pequeno vilarejo. Lá, a medida em que eles vão se envolvendo no cotidiano daquele grupo, paulatinamente, vão se afastando uns dos outros, caindo nas graças sedutoras da comunidade que oferece acolhimento e pertencimento, amor e cuidado, porém mediante renúncias éticas e morais, ainda que inicialmente não percebidas como tais.

Falando em sedução e grupo, experimentamos na história, verdadeiras figuras performáticas que captaram significativa quantidade de admiradores/seguidores/serviçais que cegamente envolvidas numa espécie de encantamento, aceitaram se submeter aos mais insanos rituais em nome do amor, desde assassinatos em série a suicídio coletivo. São os casos de extrema repercussão de Charles Milles Manson, década de 60, Califórnia, EUA e Jim Jones, década de 70, Jonestown, Guiana. Se olharmos mais criteriosamente, em tempos atuais, assistimos a teatrais líderes religiosos que conduzem gigantescas massas em nome de supostas salvação e prosperidade eternas ao preço do fiel entregar algo que não tem. Evidentemente, não apontando nenhuma denominação religiosa ou doutrina em si, mas indivíduos e episódios que destoam da instituição, num verdadeiro contexto de indulgência e simonia contemporâneos. 

Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud ao explorar fenômenos sociais e coletivos e a dinâmica dos grupos humanos, observa a influência destes grupos no comportamento do sujeito que parece se transformar inconscientemente quando está inserido na massa. O laço grupal e a alienação direcionada aos ritos ou a um líder em comum, o Pai, um Outro, representante da autoridade máxima, instância da lei e grande gozador, faz com que o sujeito perca sua singularidade em meio à identificação coletiva. Ademais, o grupo enquanto espelho que estrutura o sujeito que está imerso nesta trama, tenciona um jogo entre atender a demanda de amor do sujeito ao mesmo tempo que o convoca a renunciar seus princípios e valores para continuar pertencendo à ‘família’. O cerne disso tudo poderia ser: sou amado e, portanto, permito-me também amar, e por que não, gozar disso tudo.

A personagem Dani, parece ter encontrado naquele colorido e acolhedor vilarejo, a possibilidade de novamente ser amada e amar o outro. A morte de sua família orquestrada pela irmã de maneira terrível, que logo investe contra sua própria vida, deixa um grande vazio. Ao encontrar aquele agrupamento, mesmo vivenciando sacrifícios e atividades ritualísticas brutais, inclusive, de forma dúbia, entre aceitação e rejeição, onde até seu namorado é sacrificado, nesse momento, Dani percebe que é necessário cumprir certos mandamentos da comunidade para manter-se enlaçada e completa.

Paradoxalmente, é condição humana o sentimento de desamparo e incompletude desde o nascimento, quando somos arrancados do terno e seguro útero. No entanto, para vivenciarmos a ilusória condição de liberdade que faz parte do crescimento e da experiência de viver, é necessário se desvencilhar daquilo que oferece conforto e segurança. Portanto, pagamos o preço continuamente entre pertencer, ser amado e poder amar, renunciando ao querer. Cabe aqui a velha máxima ‘Não é possível ter tudo’. A boa notícia é que a falta gera desejo, e desejo é vida em movimento.

É certo que todos os elementos clássicos compõem de maneira periférica a escaleta do suspense a partir da construção lenta e o desenvolver não apenas do roteiro, mas das peculiaridades dos personagens. A tensão, num primeiro momento não é óbvia, pois sinaliza ao espectador que algo não é o que parece. E, realmente, nada é evidente quando somos surpreendidos por cenas gráficas que não apenas constroem o terror rural a partir de crenças arraigadas, mas a partir de um caminho inelutável quanto a dramaticidade que orquestra o fim derradeiro. Retornando ao famoso ‘Homem de Palha’, a cena final, (a qual cabe ao leitor descobrir), flerta com a euforia em contraposição à pretensa racionalidade e os meandros mais obscuros da capacidade humana, quando guiada/criada de forma errônea. Todavia, novamente o que é errôneo a partir da visão sociológica e antropológica lançada de forma horizontal à evolução histórica?

Em Midsommar, Dani ao ser acolhida naquelas estranhas e bizarras condições impostas pelo grupo, temos uma perturbadora sensação de que aquilo é possível e aceitável. O subgênero do terror tem o tom de subversão já no início quando os aspectos sinistros envolvendo as danças, os diálogos, os olhares, os ritos acontecem à luz do dia. Deparamo-nos com o sublime dos cenários e o visceral das mortes regadas a muito sangue em vibrante vermelho e desvario contagiante. Ao final, o filme impulsiona a reflexão sobre nossa pequenez diante da finitude, da fragilidade dos corpos diante da solidão e do quanto demandamos do próximo para sentirmos vivos.

Constantemente citado como um dos grandes títulos do horror nos últimos anos, a obra de Ari Aster, justamente por afastar-se dos estereótipos do horror que remanescem pré-concebidos nos espectadores, evoca a possibilidade do terror cotidiano e inesperado. Os cenários lúgubres dos estúdios britânicos Hammer, ou as trevosas locações do suspense gótico italiano, dão lugar à luminosidade do dia e das paisagens, lembrando que o assombro e o medo podem ser alvos como o branco ou cintilante, o azul celeste ou o vermelho sangue. 

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

Marcus Hemerly

Bruna Rosalem

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Parasita

CINEMA & PSICANÁLISE

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

‘Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis.
Ser, não-ser e o nada’

Card da coluna Cinema & Psicanálise. ''Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis. 
Ser, não-ser e o nada'
Card da coluna Cinema & Psicanálise. ”Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis.
Ser, não-ser e o nada’

“Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas costumam ser
inumeravelmente mais complexas e diversas do que depois sempre as
explicamos, e raramente se delineiam de maneira definida.”
Fiódor M. Dostoiévski

Quanto se pensa em cinema asiático, inicialmente, a tendência precípua é lembrar das produções japonesas mais populares no ocidente. Evidentemente, não se afasta o mérito da festejada obra de Akira Kurosawa, a título de exemplo, responsável por paralelizar o sucesso comercial a criações de viés extremamente artístico, desde situações contemporâneas até adaptações shakespearianas transpostas ao Japão feudal. Impossível não citar sua versão para ‘Rei Lear’ (Ran, 1985) e ‘Macbeth’ (Trono Manchado de Sangue, 1957), as quais retratam os mais densos e complexos dramas humanos. Indubitavelmente, seu astro recorrente, o expressivo Toshiro Mifune, teria o status de estrela hollywoodiana. 

Kurosawa ainda assentaria seu nome no novo mundo a partir do seu trabalho mais conhecido, ‘Os Sete Samurais’, (1954) – alguns referem como sua obra-prima – que inspiraria outro clássico dos westerns estadunidenses, ‘Sete homens e um destino’, (1960), popularizando-se com um elenco estelar, com nomes como Yul Brynner, Charles Bronson e Steve McQueen. No entanto, a vertente da sétima arte em testilha não é lembrada tão somente pela ilha japonesa. 

O cinema chinês já era extremamente popular quando de sua roupagem muda nos primórdios da imagem em movimento. Imperioso lembrar, o cinema falado surge em 1927 com o filme ‘O cantor de jazz’. Seja a partir de histórias mais sofisticadas em seus contornos teatrais e existencialistas, ou mesmo, derivando as feições de terror voltadas ao sobrenatural das lendas nipônicas e ao body horror, ainda nos anos 50, o tom flagrantemente experimental perpassa a criação asiática desde seus primórdios.

Nas últimas duas décadas, países como Tailândia e Coreia, de modo relevante, têm inovado com realizações que flertam com o horror mais gráfico de violência extreme, que descendem do cinema exploitation dos anos 70 e 80. Produções policiais consagradas que foram elevados ao título de clássicos modernos, como a festejada trilogia ‘Infernal Affairs’ que serviu de inspiração ao filme. ‘Os Infiltrados’, de Martin Scorsese; cita-se ainda, o intenso e visceral filme de serial killer ‘Eu vi o diabo’ de 2010.

No plano internacional, assim como o cinema produzido na Espanha e Argentina, os roteiros altamente inventivos e pouco ortodoxos daquele continente conquistam o gosto de novas audiências. No início do novo milênio, o mundo encantado por toda a poesia do filme ‘O tigre e o dragão’, do tailandês Ang Lee, que já havia alcançado notoriedade desde os anos 90, inclusive adaptando brilhantemente a obra de Jane Austen, com o sucesso de crítica ‘Razão e Sensibilidade’, (1995).  

Traçado esse pequeno parâmetro, alcançamos a grande surpresa do Oscar de 2020, o longa ‘Parasita’. A despeito da merecida expectativa em torno do drama cômico sul coreano, a partir do imediato sucesso nos festivais, o filme literalmente ‘roubou a cena’, arrebatando quatro estatuetas em premiações chave da cerimônia, tais como roteiro original, direção e entrou para a história como a primeira obra fílmica não falada em língua inglesa a vencer como Melhor Filme.  

No roteiro de Bong Joon Ho, que também dirige a trama, a família de Ki-Taek, subempregada e, posteriormente, desempregada, vive em condições precárias num porão sujo de Seul. Quando o filho adolescente da família começa a ministrar aulas de inglês a uma moça de família rica, os Park, a partir de meios dúbios, aos poucos, os Kim se infiltram no staff da família privilegiada. Valendo-se das mais engenhosas conspirações, gradativamente, vão tomando o lugar dos empregados antigos, e, ao mesmo tempo, se imiscuem de forma indissociável à rotina de seus empregadores. 

Aliado a inúmeros questionamentos de ordem sociológica e política subjacentes às diferenciações gritantes de classe econômica, a película suscita situações pouco usuais gerando respostas ainda menos convencionais. As relações grupais que ali se desenham são complexas e um tanto duvidosas. Deparamo-nos, aos poucos, com uma família passível de cometer atos ilegais tentando fugir da extrema pobreza que gera ansiedade com vistas a um futuro incerto e, possivelmente, desesperador.

Na história americana, vemos inúmeros relatos de pessoas que coabitam casas de maneira parasitária, ou seja, se formos tomar o título do filme, parasita, segundo a definição biológica: organismo que vive dentro de outro, usufruindo de moradia e alimentação de forma danosa ao hospedeiro. Pessoas que vivem atrás de portas, paredes, entradas escondidas ou em uma espécie de alojamento subterrâneo como se fosse duas casas em uma. A família ‘original’ que reside no lugar desconhece a existência de outras pessoas. Estas últimas buscam alimento quando os moradores estão dormindo ou ausentes. Assim passam a viver por algum tempo desta maneira, parasitando o outro, sugando seus recursos e tirando proveito dos pertences alheios. A produção ‘A espreita do mal’, (2019), retrata bem este estilo de vida.

O termo para esta prática é definido por phrogging, palavra inglesa derivada de frog, sapo em português. Isto é, viver ‘pulando’ de imóvel em imóvel. Há dois motivos para isso: a busca por uma vivência fora dos padrões normais, observando sorrateiramente a vida alheia, seus costumes e intimidade. E o outro motivo é a necessidade de hospedagem e alimento. Muitos jovens americanos são considerados phroggers. Em 2013, estudantes de uma universidade de Ohio descobriram um morador habitando no porão da escola. No Japão, em 2008, uma família descobriu que uma mulher estava morando no porão de sua casa.

Em ‘Parasita’ esta situação nos leva a reflexões que vão muito mais além da questão da falta de recursos para viver minimamente bem. O ponto excruciante que a família Kim demonstra ao longo da trama parece ser a insuportabilidade de estar na miséria sabendo que existe diante de seus olhos um fantástico mundo de fartura, conforto e ostentação logo adiante. Um admirável mundo novo diametralmente oposto à sua existência neste universo. E este fato é inconcebível.

No contemporâneo livro do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, ‘Sociedade do Cansaço’, discute questões como a corrida pela alta performance, a realização concomitante de várias atividades em um curto período de tempo, a dificuldade de contemplação, afinal é preciso agir imediatamente de maneira performática e sempre eficaz em diversos ramos seja trabalho, esporte, arte, mercado financeiro, acadêmico, onde não haveria espaço para reflexões, apenas positividade e produção a qualquer custo. 

Byung-Chul Han retrata uma sociedade cansada deste ritmo, porém longe de pensar outras possibilidades para isso, afinal o que importa é o acúmulo e não mais a experiência. Pessoas se tornam carrascas de si mesmas, incorporando cobranças incessantes, um ‘ideial de eu’ inalcançável, seguindo a premissa do ‘eu consigo’, ‘yes, we can’. E assim qualquer conquista é possível. Basta querer. Temos então uma sociedade depressiva, transtornada, constantemente inconformada, insuficiente, hiperativa e doente. 

Neste meandro, podemos traçar que mesmo sendo evidente que os Kim vivem em condições extremamente precárias, a realidade escancara-se na impossibilidade de possuir o que é do outro e viver nos mesmos moldes. Ou seja, na sociedade performática a qualquer custo, muitas vezes sem escrúpulos de Byung-Chul Han, a saída para a família Kim é infiltrar-se, incorporando os Park quase que por osmose, sem impor limites, condutas e regras. É manipulando, mentindo, trapaceando e usurpando que os Kim poderiam viver aquele sonho. Não importam os meios, mas sim os fins. Ou seja, ‘é porque quero, que conquisto’. Simples assim.

No entanto, o plano macabro escorre por água abaixo. O que presenciamos ao final, é o filho imerso em seus delírios agora comprando a casa e obtendo ‘o que é de dele por direito’. Um recurso defensivo para lidar com a situação caótica que se configurou e sua cruel realidade, difícil de ingerir, já que é privado aos Kim herdar, comprar ou possuir qualquer fragmento da vida dos Park. Aquela vida luxuosa e vencedora aos moldes da sociedade do sucesso, da produtividade e da alta performance não lhe pertence. E jamais pertencerá. Seu delírio é refúgio.

É notório que existem verdades e versões, para Nietzsche, “a verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde”. Nesse sentido, a busca pelo que se deduz de direito, muitas vezes, amolda um caleidoscópio de indistinção entre a figura do indivíduo e do rebanho (coletividade). Não raro, sem amarras ortodoxas do julgamento, fazendo com que o conceito de justiça social, que é dinâmico, a depender do período histórico, seja buscado sem qualquer pudor, e em ‘Parasita’ isso é gritante. Em meio aos percalços dos Kim e dos Park, a pergunta que assoma poderia ser: o quanto a invisibilidade de uns é motivação/fundamentação para arruinar o outro, reduzi-lo a nada? Afinal, para os Kim, ao se amalgamar a casa, os Park poderiam nunca ter existido.

Realmente, a linguagem cinematográfica nos instiga a tamanha provocação.

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

Bruna Rosalem

Marcus Hemerly

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