Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade

CINEMA & PSICANÁLISE

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly:

‘Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade’

Card da Coluna Cinema & Psicanálise: 'Nomaland: uma reflexão sobre a transitoriedade'
Card da Coluna Cinema & Psicanálise: ‘Nomaland: uma reflexão sobre a transitoriedade’

“Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer
mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo afora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e
esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias”.
Fernando Pessoa

No meio selvagem, é sabido que diversas espécies lidam com seus iminentes predadores a partir de sua capacidade de camuflagem e adaptação, seja a partir de suas próprias características orgânicas e fisiológicas, seja por peculiaridades comportamentais. O fenômeno é observado na alteração de matiz das borboletas e camaleões, ou mesmo no período de hibernação dos ursos e migração das aves. E quanto ao ser humano, é possível fazer aproximações neste viés? Seríamos uma espécie que se adapta às situações ou criamos dispositivos para lidar com as contingências da vida?

A despeito do sujeito ser atravessado ao longo de sua jornada por situações inusitadas, muitas vezes, necessita criar mecanismos para sustentar tais situações específicas ou, ainda, vivenciar ‘jogos narcísicos’ entre ora ceder a algo ou alguém, ora enfrentar a todos, na tentativa de preservar certa ordem cultural e social, além de manter os laços grupais nas mais diversas esferas como laborais, familiares e amorosas; o ser humano, não raro, necessita transpassar uma odisseia, tantas vezes, desbussolada.

O tema é retratado de forma bastante sensível no filme ‘Nomadland’, 2020, em livre tradução, ‘Terra de nômades’, ilustrando uma recorrência contemporânea pela qual pessoas resolvem (ou, talvez, lhes é imposta) uma nova realidade de sobrevivência: a vida na estrada, quase que sem um rumo determinado, passando a viver com poucos recursos e, na maior parte do tempo, sozinhas.

O título, dirigido por Chloé Zhao, vencedora do Oscar de melhor filme no ano de 2021, apresenta a personagem de Fern, vivida pela sempre versátil Frances McDormand, também vencedora do Oscar na categoria de melhor atriz, que captou a atenção do público e crítica desde os aclamados clássicos modernos Gosto de Sangue, 1985 e Fargo, 1995. Destaque também de Frances McDormand pela escrita e direção, além de uma forte entrega no filme policial Três anúncios para um crime (2017).

Fern, sexagenária, diante da crise econômica que assola sua cidade em Nevada, segue a vida, após perder o marido de forma dramática, cuidando-o até a doença o levar de vez. Dirigindo uma espécie de van, para manter-se na estrada, busca vários tipos de trabalhos sazonais em fábricas, indústria de alimentos, como empacotadora, entre outros. Cruzando o país, depara-se, conforme desbrava longas estradas, com outras pessoas na mesma condição de nômades, porém cada qual com suas motivações, histórias de vida, projetos e perspectivas.

Em sua nova rotina, ela conhece um acampamento que provê assistência a outros nômades modernos, e, até mesmo, se permite flertar romanticamente em meio à sua nada convencional realidade. Vemos na produção o quanto esta maneira de viver destoa de sua família. Este aspecto fica claro quando Fern vai, forçosamente, à casa da irmã, devido a um problema mecânico em sua van, pedir dinheiro emprestado a ela. Acompanhamos um diálogo bastante interessante ao ouvir da irmã de Fern, o quanto estar na estrada, viver enquanto homeless, algo como uma “sem-teto”, era muito melhor do que estar em companhia da família. Ao anoitecer, Fern parece não suportar dormir na cama confortável do quarto de hóspedes, prefere retornar ao veículo e deitar no pequeno espaço que lhe convém. Ali é mais seguro. É, de fato, seu lar.

O filme é baseado no livro ‘Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century’ da jornalista Jessica Bruder, lançado em 2017, que estuda o fenômeno identificado no território estadunidense de pessoais mais idosas que se deslocam pelo país em busca de trabalho, de forma mais recorrente, após a recessão econômica de 2007/2009. O tema já foi brilhantemente trabalhado na literatura a partir do livro ‘As Vinhas da Ira’, de John Steinbeck, posteriormente adaptado ao cinema por John Ford, (1940). Assim como em Nomadland, a família Joad, após perder suas terras em meio à grande depressão dos anos 30, cruza o país a procura de trabalho, num cenário totalmente avesso à sua origem primeva, de, literalmente, raízes agrárias.

Em um olhar mais superficial, o espectador poderia classificar Nomaland como um road movie, subclassificação de filmes que são desenvolvidos na estrada, desdobrando-se nos mais variados gêneros e períodos, tais como Thelma & Louise (1991), Sem Destino (1969), Central do Brasil (1998), Na Natureza Selvagem (2007), Kalifórnia (1993), entre inúmeras festejadas produções. No entanto, as feições quase documentais exaltam o realismo e pertinência da problemática sociológica trazida à baila. Não raro, a imersão de um personagem em uma jornada, concomitantemente interior, é um instrumento de autodescoberta ou reinvenção de si próprio e sua interação com o meio que o circunda. Todavia, a jornada de Fern, a despeito da característica resoluta que apresenta força à personagem, não se põe a uma marcha existencial, ainda que eventualmente, possa ganhar tais contornos, na medida em que a rotina e novas interações a estimulam – ou provocam – ainda que indiretamente.

Conforme adiantado, trata-se de uma súbita e imposta realidade com a qual ela precisa andar de mãos dadas, ainda que não voluntariamente. O ponto de interesse, contudo, também repousa no limiar entre a aceitação como um cenário transitório, ou o acalentar de um novo comum que começa a sorrir em feições serenas, afinal ela não está sozinha, há outros sujeitos no decorrer das histórias que se cruzam, provando o quanto estar na estrada e vagar de lugar em lugar, entre sentimentos e sensações, pode ser uma experiência fantástica. O filme nos convida a refletir sobre a transitoriedade, uma capacidade formidavelmente humana.

Em seus escritos sobre este tema, Freud (1915) dialoga com um poeta enquanto ambos caminhavam, e, segundo o poeta, dizia estar triste pela constatação de que toda a exuberância daquela paisagem natural que observava, assim como toda a beleza criada pelos humanos, estaria fadada à extinção, à finitude. Neste passo, é inevitável que a sensação de desamparo tão fundamental para o entendimento e constituição do sujeito, nos atravesse. Desde os primórdios do nascimento, estamos lidando com o fenômeno de presença e ausência. Ora somos nutridos, acolhidos, tendo nossas demandas supridas, ora deparamo-nos com a espera por algo, a demora, mesmo que ainda a noção de tempo não esteja simbolizada, é evidente que sentimos na carne os efeitos da ausência, seja o alimento que não vem a contento, o carinho das presenças materna e paterna, uma dor que não cessa, um mal-estar não apalavrado.

Segue o poeta dizendo que tudo aquilo que um dia foi amado e admirado ao longo de sua vida parecia-lhe desprovido de valor por estar fadado à transitoriedade. Freud então contesta esta afirmação colocando que justamente pelas coisas não serem eternas é que as fazem privilegiadas. Atribuímos mais valor àquilo que um dia deixará de existir.

Por serem efêmeros, os objetos e as relações objetais que estabelecemos durante a complexa jornada da existência, podem se tornar valiosos. É, muitas vezes na contingência que reside o belo, o surpreendente, o admirável. Freud nos traz a relação da transitoriedade com a escassez do tempo; a possibilidade do fim eleva o valor da fruição.

Nomadland, além de trabalhar muito bem o estilo de vida de pessoas que por diversos motivos se tornaram nômades, transitando entre cidades e atividades laborais para se manterem na estrada, é um filme que aponta o quanto pode ser exuberante a simplicidade da vida, desde contemplar o anoitecer ou o clarear do dia, admirar as aves e seus trajetos, o som do mar chocando-se com as rochas, a presença constante de animais selvagens cruzando o caminho dos viajantes, o contato com a natureza que traz frescor e leveza à alma.

A produção ainda nos remete a pensar sobre o sentido que cada personagem dá a sua vida. Que realmente a pergunta existencial, “Qual o sentido da vida?” que insistimos em fazer, não tem uma resposta única e verdadeira. Viver não é uma ciência exata, mas uma experiência passageira. E por que não, incrível? Uma das viajantes que cruza o caminho de Fern conta que sua jornada em breve findará devido ao avanço de um tumor cerebral. Porém o que esta personagem nos aponta é que este fato, por mais triste que seja, não invalida suas belíssimas vivências. Ou seja, somos atravessados constantemente pelos saberes que construímos ao longo do tempo. Isto traz significação à vida, aos moldes e estilos de cada sujeito. A ideia da transitoriedade tem seu valor por sabiamente nos advertir que nada é para sempre. O que fica impresso são os efeitos trazidos pelos ensinamentos.

Novos lugares, novas histórias, dramas e enredos, possibilidades e experimentações. Fern aprende com o outro, seja oferecendo uma escuta à dor, seja compartilhando alegrias e conquistas. A vida pode ser mais, ir além. Não um além frenético, paranoico, a busca pela tal felicidade (ilusória, diga-se de passagem), mas, um além possível, significativo, precioso, terno e pacífico.

Ao final, a inquietude que, num primeiro momento lhe causa estranheza e insatisfação, passa de algoz a companheira. Essa imersão, revela novas formas de versatilidade até então desconhecidas, e assim como Diógenes em seu barril, vagando à procura de um par honesto. Se ‘perdendo’ é que Fern realmente se encontra. Poucos se entregariam a tal jornada.

Bruna Rosalem e Marcus Vinicius

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