Onde moram os inícios

Ella Dominici: Poema ‘Onde moram os inícios’

Ella Dominici
Ella Dominici
Imagem criada por IA do Bing
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I
O princípio escapa à compreensão.
antes de nós, já se movia; depois de nós, seguirá.
não há fronteiras de tempo. Há apenas o instante,
que nos atravessa como flecha.
nós o pressentimos, como quem escuta de longe o mar
sem jamais tocá-lo, tentando capturar a dimensão que nos escapa.

II
Existimos tentando prender a centelha desse sopro.
o instante se faz passado antes que o nomeemos.
Tudo o que guardamos é fragmento
insuficiente
mas na insuficiência há aprendizado.
na incompletude mora a sabedoria
que nos afina para o mistério do existir.

III
Do alfa ao ômega divino caminhamos,
Sim, o caminho é sensor do amar
não há começo nem fim
somos discípulos da travessia,
aprendendo a nascer a cada aurora
e a morrer em cada ocaso.

IV
O existir nos convida a essa valsa infinita,
em que ser é repetir sem
cessar o primeiro gesto da vida.
quando perguntamos onde moram os inícios
a resposta não se veste de palavra.
a resposta é silêncio. Pois:

“Todas as coisas principiam em silêncio,
e o silêncio é a casa do princípio.”

Ella Dominici

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A repetição no texto académico

Fidel Fernando

‘A repetição no texto académico: recurso ou ruptura?’

Fidel Fernando
Fidel Fernando
Imagem gerada por IA do Bing – 03 de Julho de 2025,
às 13:41 AM

Algumas palavras da língua portuguesa apresentam muitos sinónimos, o que permite a expressão de ideias de maneiras distintas. Não é em vão que a repetição de palavras em textos académicos é, frequentemente, vista como um sinal de pobreza lexical, uma vez que pode comprometer a clareza e a fluidez da escrita.

Nos textos académicos, a repetição excessiva pode ser um obstáculo à compreensão. Ao revisar textos de candidatos a licenciados, mestres e doutores, é comum encontrar passagens que evidenciam essa problemática. Por exemplo, a frase: “…para ser professor, é necessário que seja ‘munido’ de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘munido’ de conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos”, revela uma repetição desnecessária da palavra ‘munido’. Uma reescrita mais eficaz poderia substituir o segundo uso por ‘possuir’ ou ‘ter’, como em: “…para ser professor, é necessário que seja munido de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘possuir’ conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos.” Essa simples alteração (será simples?) não só enriquece o texto, mas também mantém a ideia original intacta.

A música contemporânea angolana frequentemente utiliza a repetição como recurso estilístico para enfatizar emoções e criar um impacto memorável. Por exemplo, na canção ‘Nossas Coisas’, de Ary e C4 Pedro, ouve-se “Minha razão quando a razão não dá razão pra ninguém, eh”. Aqui, a repetição de ‘razão’ serve para reforçar sentimentos de amor, criando uma ressonância emocional que cativa o ouvinte. Essa técnica, embora contrária à norma dos textos académicos, cumpre um propósito distinto: a criação de uma experiência estética rica.

Na literatura de expressão portuguesa, Carlos Drummond de Andrade, em 1928, publicou, na Revista de Antropofagia, um poema rico em repetição: “No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho”. A repetição, nesse contexto, não é uma falha, mas, sim, uma estratégia estilística que enriquece a obra literária, focando nos problemas (pedras) que as pessoas encontram na vida.

Contrapõe-se a isso a abordagem dos textos académicos, onde a repetição pode ser vista como um sinal de falta de rigor. Em passagens como: “A pesquisa foi realizada em três etapas fundamentais: A primeira ‘consistiu’ em averiguar, com a instituição, o índice de reprovação; a segunda etapa ‘consistiu’ em averiguar os prováveis factores no fracasso da aprendizagem escolar; a terceira etapa ‘consistiu’ em fazer um cruzamento entre os questionários aos alunos e professores…”, o autor poderia optar por sinónimos como ‘visou’, ‘objectivou’, ‘prendeu-se’, ‘teve finalidade de’ para evitar a repetição da palavra ‘consistiu’. Essa prática não só melhora a clareza do texto, mas também demonstra um domínio mais profundo da língua.

Além disso, frases como: “A formação específica é, absolutamente, necessária para quem ensina, mas, ‘de maneira alguma’, suficiente para o exercício da profissão. O professor que carrega apenas esta componente, ‘de maneira alguma’, contribui para o sucesso académico dos seus alunos”, mostram como a repetição de expressões pode ser evitada. O autor poderia substituir ‘de maneira alguma’ por “de jeito algum” ou mesmo ‘não’, o que não apenas diversifica a linguagem, mas também mantém a força do argumento.

Outro exemplo que sugere uma pobreza vocabular e uma falta de domínio sobre as possibilidades da língua: “Essas condições prévias gerais são impossíveis de serem criadas em pouco tempo e tem logicamente que ‘se relacionar’ com as condições prévias específicas e com todo trabalho a fim de ‘se relacionar’ também com a disciplina”. A adopção de palavras sinónimas, tais como ‘ligar-se’, ‘correlacionar-se’ ‘associar-se’ não alteraria o sentido e elevaria, evidentemente, a qualidade do texto.

Em linhas gerais, a variação lexical é crucial para a eficácia da comunicação em textos académicos. Enquanto nas obras literárias e musicais a repetição pode servir para propósitos estilísticos, nos textos científicos/académicos, deve ser evitada sempre que possível. A capacidade de substituir palavras repetidas por sinónimos não apenas demonstra um domínio mais amplo da língua, mas também enriquece a experiência do leitor.

Assim, é fundamental que os autores sejam encorajados a explorar a riqueza da língua portuguesa, utilizando-a de forma criativa e consciente. Ao aprender a distinguir entre os diferentes tipos textuais e a utilizar a repetição de forma adequada, podemos contribuir para uma escrita académica mais clara, envolvente e eficaz.

Fidel Fernando

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Completando as deficiências

Paulo Siuves: Crônica ‘Completando as deficiências’

Paulo Siuves
Paulo Siuves
A harmonia no lar
A harmonia no lar
Imagem grada com IA do Bing ∙ 7 de setembro de 2024 às 9:33 AM

Ontem à noite, minha esposa acidentalmente deixou uma taça de vinho cair, espalhando cacos de vidro pela cozinha. Eu não vi o acidente, mas ouvi o som do vidro se estilhaçando. Imediatamente, ela se ajoelhou para limpar tudo, recolhendo cuidadosamente os pedaços antes de ir para a cama, exausta depois de um longo dia.

Mais tarde, no meio da noite, levantei-me para ir ao banheiro. Ao passar pela cozinha, meus pés pararam de repente. Sob a luz suave do corredor, vi pequenos fragmentos de vidro ainda espalhados pelo chão. Senti uma irritação crescente; como ela não percebeu aqueles pedaços? Pensei no nosso filho, que poderia acordar e pisar em um fragmento. Meu aborrecimento aumentou.

Então, uma voz interior sussurrou: “Você é o suporte dela, não é?” Essa pergunta ecoou na minha mente, lembrando-me do dia pesado que ela teve. Ela confiou em mim ao se deitar, deixando que eu cuidasse do que ela, naquele momento de cansaço, não conseguiu ver. Ela havia saído da casa do pai, onde sempre teve tudo, para construir uma vida ao meu lado, depositando em mim toda a sua confiança.

O pensamento me acalmou. Eu deveria estar agradecido por estar ali, para corrigir o que ela, exausta, não pôde. Peguei a vassoura e comecei a varrer com cuidado. À medida que movia as coisas, encontrei mais pedaços de vidro escondidos. Eu os recolhi, pensando no nosso filho, mas, muito mais, na mulher incrível que dormia no quarto ao lado, confiando em mim para preencher suas lacunas, como ela fazia com as minhas.

Esse é o casamento. Nenhum de nós acerta sempre, mesmo com as melhores intenções. Mas, quando um erra, o outro está lá, pronto para preencher as deficiências. Nem sempre é hora de reclamar; às vezes, é a hora de completar.

Paulo Siuves 

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