Elaine dos Santos: Artigo ‘Tempo de lutas, de conquistas e de mortes’
Era Finados novamente e a família de Pedro Terra estava no pequeno cemitério de Santa Fé para honrar os seus mortos. Agachada, Bibiana acendia velas. De repente, como um gavião, Rodrigo Cambará circundou-a; ainda que o fizesse pelo lado de fora do ‘campo santo’, ambos podiam enxergar-se por completo. A moça encabulou, ele deliciou-se.
Bibiana era filha de Pedro e Arminda Terra. Bibiana era neta de Ana Terra e Pedro Missioneiro. Bibiana trazia o sangue dos tropeiros paulistas, do bisavô, pai de Ana, o velho Maneco Terra, mas trazia também o sangue guarani, o sangue dos Sete Povos das Missões, que lhe legara o avô, Pedro Missioneiro, ‘el hijo de la Vírgen’.
Rodrigo vinha de outras guerras e, como todo o gaúcho daqueles tempos, trazia um dólmã militar ao peito, bota e bombachas para garantir-lhe a máxima gauchesca: militar em tempo de guerra, peão em tempo de paz.
Contrariado, uma noite, Pedro Terra concedeu a mão da filha, Bibiana, a Rodrigo Cambará: emergia, no pampa, a lendária família Terra Cambará, sustentáculo da narrativa de ‘O tempo e o vento‘, de Erico Verissimo.
O casal teve três filhos: Bolívar, Leonor e Anita, a ‘coitadinha’, que morreu numa noite fria e chuvosa, enquanto o pai jogava cartas e bebia num ‘bolicho‘ qualquer.
A vida matrimonial de Bibiana e Rodrigo foi assim, cheia de altos baixos, amavam-se loucamente, mas ele traia obstinadamente. Demorava-se na estrada quando ia a Rio Pardo para comprar suprimentos para a venda que estabelecera com o cunhado Juvenal ou enrabichava-se por alguma mulher na própria vila.
Bibiana, em casa, sofria. Bibiana, em casa, cuidava dos filhos. Bibiana, em casa, esperava pelo marido. Um dia, Rodrigo chegou com um brilho matreiro nos olhos, soubera que estourara uma nova guerra, Bento Gonçalves e outros fazendeiros haviam declarado oposição ao Império do Brasil – General Neto a República Rio-Grandense, era o fim da Monarquia, da escravidão.
Em solo sul-riograndense, de um lado, gaúchos lutando pela causa dos farroupilhas, revoltosos; de outro lado, gaúchos lutando pela causa do Império. Irmãos contra irmãos. Ideais contra ideais. Rodrigo seguiu em busca das batalhas, das refregas, dos embates.
Noticiou-se, na Vila de Santa Fé (vila fictícia em que se desenvolve o romance de Erico), que os revoltosos estavam em volta, haviam cercado a vila. Bibiana sabia que Rodrigo estava próximo. Preparou-se para recebê-lo e ele veio. Amaram-se sofregamente e ele partiu, prometeu que tomaria o casarão da família Amaral e voltaria. Não voltou.
Em 20 de setembro de 1835 iniciou-se a chamada Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos, movimento organizado pela elite estancieira gaúcha contra o Império brasileiro, entre outros motivos pela preferência do governo central em relação ao charque uruguaio, preterindo, portanto, o produto produzido no Rio Grande do Sul.
Além disso, os gaúchos reclamavam a sua condição de ‘estaleiro do Império’ – durante as guerras contra os inimigos de origem castelhana/espanhola: uruguaios, argentinos ou mesmo paraguaios, o Rio Grande do Sul fornecia tropas, gado para alimentação e cavalos, sem receber indenização do Império, desorganizando a sua economia.
Os combates duraram dez anos, encerrando-se em 1845, com a chamada Paz de Ponche Verde. O dia 20 de setembro é feriado no Rio Grande do Sul, dia de desfile de cavalarianos e prendas, representando os seus CTGs. Por sua vez, a chamada Guerra dos Farrapos tem sido tema da literatura produzida no estado desde 1849, com o romance ‘O corsário’, de José Antonio do Vale Caldre e Fião.
Contudo, aos olhos do leitor, certamente, a figura mais emblemática da prosa romanesca sul-riograndense que participa, ficcionalmente, dos combates durante a Revolução Farroupilha é Rodrigo Cambará, um dos grandes nomes do romance ‘O tempo e o vento’, de Erico Verissimo, sobre o qual se assentam as principais características da figura do gaúcho.