A Finitude das Coisas

Novo livro do baiano Nélio Silzantov, semifinalista do Jabuti de 2023, aborda arte, finitude, memória e o pessimismo de uma geração nos anos 90 

Capa do livro ‘A Finitude das Coisas’,
de Nélio Silzantov

Novo romance do escritor retrata um grupo de adolescentes mergulhados na tríade drogas, sexo e rock’n roll numa Vitória da Conquista longe do imaginário de uma Bahia solar e vibrante

“A finitude das coisas é a Vitória da Conquista (cidade natal do autor) de antes e de agora, talvez a cidade seja a verdadeira protagonista do romance, o cenário que afaga e esmaga. A concretude dessas personagens é celebrada nesse encontro entre a urbanidade e a decadência das possibilidades afetivas. A narradora empurra o leitor para as cavernas de seus traumas e para as luzes de seu estágio endurecido pelo sofrimento e pela característica falta de traquejo da juventude”

D.B. Frattini, na apresentação do livro  

O cenário da contracultura no interior da Bahia nos anos de 1990 é o pano de fundo de ‘A finitude das coisas’ (editora Patuá, 240 pág) , novo livro do escritor Nélio Silzantov (@neliosilzantov). Semifinalista do Prêmio Jabuti de 2023 com “Br2466: ou a pátria que os pariu”, o autor volta a cena literária e apresenta agora ao público a história de quatro amigos vivendo intensamente a juventude passeando pelos submundos da cidade regados a violências e vícios.  O desenrolar da trama evidencia como as personagens tentam desafiar a profecia anunciada por um deles e que dizia que dois não chegariam à vida adulta, um se tornaria religioso e o outro se conformaria com uma vida comum e ordinária. Ao flertar com o romance de formação, o horizonte de uma vida adulta se torna um enigma a ser desvelado. O que o destino reserva ao grupo prende até a última página o leitor, que ganha, além de uma trama engenhosa, uma obra repleta de referências literárias, musicais e filosóficas. 

Para o autor da obra, o livro suscita uma série de temas que permeiam desde questões sociais e relações interpessoais até a violência e a morte, além do binômio Arte-Vida.  “São assuntos que me inquietam desde sempre e costumo problematizar em minha produção acadêmica e literária, sobretudo a condição humana e a arte”, pontua Nélio.

O livro é narrado em primeira pessoa por Jeane (também chamada de Simmons). A única garota do grupo divide a cena com Annibal, Pavarotti e Erick.  A obra é composta por um prólogo e mais três partes intituladas: “Como se fosse ontem”, “A finitude das coisas” e “A decadência dos Deuses”.  Cada capítulo é nomeado com datas, na maior parte do tempo ano, que faz referência a época do que será contado. A narrativa não é linear obedecendo uma lógica imposta pela narradora que é de puxar alguma trama do passado para explicar o presente. 

Um dos méritos de ‘A finitude das coisas’ está justamente nesse quebra-cabeça que vai sendo montado a cada página virada. No início o leitor é apresentado a personagens vorazes, repletos de dramas e traumas, e à medida que a história se descortina inicia o processo de entendimento das motivações e comportamento de cada um.  E nesse ponto, Nélio não alivia para as suas criações, o grupo é formado por subversivos provenientes de famílias disfuncionais —, e o autor não tenta mascarar isso, ao contrário, lhes dá o palco para que mostrem suas verdadeiras faces. Essa escrita crua e sem subterfúgios é mais uma qualidade da obra. 

O livro, que começou a ser escrito em 2019 e levou quatro anos para ser finalizado, é considerado pelo autor como o mais maduro da sua carreira literária. “Em termos estéticos, ele representa uma síntese dos dois romances anteriores e em certa medida solidificou um estilo que vinha construindo, ou tentando encontrar o que alguns chamam de voz autoral”, afirma. 

Para os adolescentes que viveram a intensidade da última década do século 20, com seus quartos repletos de posters de bandas e estantes cheias de discos e CDs dos artistas favoritos, o livro ‘A finitude das coisas’ pode ser um acesso a referências compartilhadas e um mergulho em memórias coletivas, como o luto pela morte de Renato Russo, lamentada pelos protagonistas da obra num momento catártico. Para aqueles que não viveram a juventude naquela época, o livro se apresenta como uma cartografia para entender a geração que chegou nessa década aos 40 anos oscilando entre a nostalgia e o pessimismo. 

Interior da Bahia: o coadjuvante que inspira  

Nélio Silzantov
Nélio Silzantov

Nélio Silzantov é licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual Do Sudoeste Da Bahia (UESB), mestre em Estudos de Literatura e doutorando em Educação, ambas pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Além de escritor, é também crítico literário e professor.  Atua ainda como editor no blog Ágora Literária e no Foro Literário Sertão da Ressaca.

Nélio é coautor do livro de não-ficção “Ética, Estética e Representações Sociais” (iVentura, 2021), organizador da coletânea “A novíssima literatura do Sertão da Ressaca” (Ressacada Edições, 2023), autor da coletânea de contos “BR2466 ou a pátria que os pariu” (Penalux, 2022), esse indicado ao 65º Prêmio Jabuti 2023, e do romance “Desumanizados” (Penalux, 2020).

O autor, que nasceu em Vitória da Conquista, interior da Bahia, e vive atualmente em São Paulo, tem um vínculo intenso com o município nordestino e leva essa conexão para as suas obras literárias. Longe de ser um tributo bairrista, em “A finitude das coisas”, a cidade opera como uma coadjuvante, servindo tanto de cenário como de inspiração e, paradoxalmente, de aversão das personagens pelo local. 

O município é lugar enevoado num contraponto, ainda que inaudito na obra, a solar e carismática Salvador. Se a capital baiana é conhecida pela exportação do Axé para todo o território nacional, a Vitória da Conquista de Nélio nos anos de 1990 vibra em outra frequência e pulsa no movimento contracultural, ensejados pelo rock e seus congêneres. 

Segundo o escritor, o livro faz parte de um projeto literário em que problematiza a cidade natal a partir da cotidianidade local e das questões que assolam o país como um todo. “Durante algum tempo a escrita deste livro me atormentou por não saber lidar com algumas questões incontornáveis em seu enredo, depois, no desenvolvimento da escrita, outros temas ganharam relevância como: hedonismo, decadentismo, a formação da cidade, (Imigrantes e Emigrantes, ou os Retirantes, Retornados e Remanescentes), a ascensão das igrejas neopentecostais, a formação familiar e a condição operária”, esclarece. 

Ainda que transite por temas densos e desafiadores para o autor, as mensagens da obra se sobrepõem a esses aspectos em busca de reflexões mais profundas sobre os sentidos da existência. “O livro enfatiza que a vida é um sopro; que poder contar com aqueles que nos amam e com os que nos aceitam sem nenhuma condição é um dos bens mais preciosos; que conhecer a si mesmo não é uma tarefa fácil, mas é um dever a ser encarado por todos; que a relação entre arte e vida vai além do mero entretenimento”, destaca Nélio. 

Confira um trecho do livro (págs. 29 e 30): 

“Medíamo-nos dos pés à cabeça, como quem confere se a imagem real se assemelhava com aquela guardada na memória. Era óbvio que havíamos mudado e permanecemos os mesmos durante todo esse tempo. Tínhamos tanta conversa para pôr em dia, e outros tantos silêncios e não-saber-o-que-dizer para compartilhar. Quanto tempo levaríamos para perdoar o que fosse preciso, virar a página, ou abandonar em definitivo essa história? Taí uma coisa que naquele instante passou por minha cabeça e mesmo agora não saberia dizer.

Às vezes a paz de espírito não vai além de uma leve dormência. Basta uma música, a cena de um filme, uma fotografia, ou até mesmo uma palavra grafada ou dita para trazer à tona sentimentos adormecidos no abismo do esquecimento”

Adquira ‘A finitude das coisas’ pelo site da editora Patuá:

https://www.editorapatua.com.br/a-finitude-das-coisas-romance-de-nelio-silzantov/p

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O ‘Poeta Maldito’, na obra de Carlos Reichenbach

“O importante não é o que eu fiz, é aquilo que eu deixei de fazer, e aquilo que ainda está para ser feito”. Orlando Parolini em ‘Sangue Corsário’.

Uma figura exótica de olhar fixo, perdido e contemplativo, frequentemente agregava aos filmes de Carlos Reichenbach, emprestando uma aura profética e indiretamente ominosa aos densos e subjetivos enredos concebidos pelo saudoso cineasta gaúcho radicado em São Paulo. Constantemente interpretando personagens igualmente complexos e misteriosos, conhecemos o poeta, dramaturgo e ator Orlando Parolini, (1936 -1991), eminente representante da contracultura e desdobramentos da poesia Beatnik no Brasil.

Especialista em cinema japonês, crítico e ator visceral, recebeu a alcunha de o ‘Poeta Maldito’ e ‘O Profeta da Galeria Metrópole’, ao passo que distribuía panfletos de poesia profana aos transeuntes do viaduto do chá.

Um dos aspectos fascinantes dessa figura, repise-se, enigmática, é a escassez de dados biográficos mais substanciais, bem como a acessibilidade à sua obra com teor fortemente oral, pois não deixou publicações promovidas por grandes editoras, havendo concebido as coletâneas poéticas ‘Poemas’ (1957-1961), ‘Poemas do pequeno assassino’ (1963-1964), ‘O pântano (1964-1968)’, e ‘Cartas de Babilônia” (1968-1972). No campo teatral, escreveu duas peças, ‘Divirta-se’ e ‘O frango e a freira’, bem como o romance “Culus ridendus” (1986).

O finado cineasta Reichenbach é conhecido como um dos principais representantes do cinema marginal vertente da sétima arte nacional com alto desenho experimental e de viés autoral, com expoentes como Ozualdo Candeias João callegaro e José Mojica Marins.

Discípulo de Luiz Sérgio Person, de quem foi aluno na faculdade de cinema da São Luiz, ‘Carlão’, como era conhecido na Boca do Cinema paulistana, teve a percepção para escalar Parolini em papéis nos quais sua veia poética arraigada ao existencialismo, ainda que de feições concretas, poderia ser explorada em paralelo ao perfil dramático dos roteiros nos quais era inserido.

Atuou como o louco messiânico de ‘Império do Desejo’ (1981); o professor idealista de ‘Amor, palavra prostituta’ (1982); além de ter instigado e indiretamente guiado o peregrino Fausto (Ênio Gonçalves) na procura por seu refúgio em Miraceli, no aclamado ‘Filme Demência’ (1986).

Acerca do histórico criativo entre os dois realizadores, o estudioso de literatura comparada Fabiano Calixto, escreveu em texto publicado na Revista Cult: “Além de dirigir aquele que seria o primeiro filme underground no Brasil, o Via sacra (1965), cuja fotografia foi feita pelo grande cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) que, sobre a película de Parolini, escreveu: “Misturava imagens de um Cristo esfarrapado perambulando pelas ruas do centro de São Paulo com cenas estarrecedoras de nudez frontal, sexo em grupo e canibalismo. Parolini antecedeu Pasolini em sua ascese feita de excessos”.

O filme, entretanto, não existe mais, pois, Parolini, num acesso de paranoia, em 1970, sob a ameaça de ter seu filme confiscado pela polícia federal e de ser preso, torturado, morto, sabe-se lá, picotou todo o negativo, fotograma por fotograma”,(https://revistacult.uol.com.br/home/noticias-de-outras-ilhas-fabiano-calixto/).

Robustecendo o ideário utópico libertário que permeia a obra de ‘Carlão’, e, em na forma de homenagem ao Profeta da Galeria Metrópole, existe o fascinante curta-metragem de 1979, ‘Sangue Corsário’.

No roteiro, os personagens de Parolini e Roberto Miranda, dois amigos separados pelo tempo e os rumos da vida, se encontram no centro de São Paulo, onde o bancário de vida segura e entregue à rotina, rememora de modo saudoso e admirado o pioneirismo cultural (e modus vivendi) do amigo, de olhos cerrados aos ditames sociais e às convenções.

Enquanto caminham por belas locações na Selva de Pedra, como a Praça Júlio Mesquita, Largo da Memória e Largo Paissandú, o diálogo, na verdade, quase um monólogo, representa o conflito e ruptura de gerações em meio ao cenário político e cultural dos anos sessenta e setenta, panorama da obra poética de Parolini.

Decerto, o próprio meio urbano catalisador de números sentimentos e tragédias, e que encapsula vidas e dramas (erros?), também serviu de matéria-prima às composições do autor, num reflexo entre ser, cidade, meio concreto e espaço sentimental.

Um ressuscitar e regurgitar do romantismo mórbido de Álvares de Azevedo transposto e ampliado ao elemento funéreo de Augusto dos Anjos, perpassando de forma sensível os pontos mais sombrios que habitam a mente do homem sensível.

O final de ‘Sangue Corsário’, pessimista, antevê e entrevê a aquiescência às normas protocolares de convivência que cerceiam sonhos, tendências e aspirações, conscientes ou não. Ainda em tom epilogal, uma mensagem se protrai, como se o diálogo instigasse o expectador ao questionamento: “Vale a pena ousar?”. A pergunta remanesce sem resposta.

ALGUNS POEMAS DE ORLANDO PAROLINI extraídos do volume Azougue 10 anos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004). (http://revistamododeusar.blogspot.com/2010/10/serie-sonda-nas-jazidas-orlando.html)

Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior

Orlando Parolini

os lagos de tão rasos

não permitem afogamentos:

se temos fomes

não há que nos alimente

– os peixes

vivem

(de excrementos)

os pombos não nos pertencem

roubá-los será inútil por enquanto

e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?

sedentos

a sede aplacaremos com Coca-Cola

no bar mais próximo

algumas pontes o contacto estabelecem

entre o vazio e o vazio

sugerindo paisagens que não vivemos

ao meio-dia

se debruçarmos sobre as ferragens

esperando a volta para os estábulos de ar condicionado

nos chamarão de pederastas

estátuas há

que olham para as árvores

contemplando as estátuas

no grande parque infantil

de arame rodeado

crianças são treinadas

como cães de apartamento

a beber nas horas certas

urinar nos w.c.

sem sujar o uniforme

na parte mais baixa se repararmos

sem muita preocupação

agências de turismo aveludadas

casas bancárias de velhas tradições

restaurantes e cafés

lojas de créditos

rodeiam o que mais se salienta no local:

o mictório público

moralmente dividido

para homens e senhoras

não importa a condição

A perdição

Orlando Parolini

porque estou arrependido

de cinzas cobrirei a cabeça

os pés lavarei com água benta carismal

com cacos de telha a epiderme rasparei

porque estou arrependido

a boca encherei de pedregulhos

as costas açoitarei

um cilício na cintura o sexo prenderá

os rins amortecendo

em cruz abertos braços jejuarei

7 dias 7 noites

comendo pão ázimo de judeus

gafanhotos mel

porque estou arrependido

conhecerei a Av. São João

da Cruz ou Evangelista não sei

e na primeira praça pública me despirei

em sinal de humilhação

porque estou arrependido

vomitarei nas portas das igrejas

nos umbrais dos cemitérios defecarei

que tudo é pó diz o Testamento

e se quiserem saber por que estou arrependido

não me perguntem.

– ah, perdida geração,

o último avião passou e nos esqueceram

na plataforma nos deitamos

esperando

esperando

esperando

Acesso ao curta-metragem ‘Sangue Corsário’, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=eh857N3VU_8

Marcus Hemerly
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