A revolta da crase
Sergio Diniz da Costa: ‘A revolta da crase’
Assim não dá! Assim não dá! …
Foi ouvindo estas palavras que me encontrei com a Senhora Crase quando comecei a escrever um texto.
─ “Assim não dá!”, o quê, Senhora crase? ─ perguntei a ela, preocupado.
─ Por que, meu Deus! Por quê? ─ ela continuou.
─ Por que, o quê, Senhora Crase? ─ perguntei, novamente, mais preocupado ainda.
─ Por que os rabiscadores de papel me odeiam? ─ ela me respondeu, arrancando os cabelos.
─ Como, assim, a odeiam? Que ‘rabiscadores de papel’? ─ interpelei-a, intrigadíssimo.
─ E você, que é revisor de textos, não sabe? ─ ela me devolveu a pergunta, mais desconsoladamente ainda.
─ Vou fundar uma associação: a Associação Protetora de Crases! E você é quem vai assinar o Estatuto! ─ arrematou a consternada Senhora.
─ Eu? Assinar o Estatuto? Vade retro, Senhora Crase! Eu nem advogado sou mais! Já cumpri o meu carma!
─ E o meu carma? Como é que fica? Até quando eu vou ter que ser vilipendiada por essa gente que se mete a escrever e me assassina o tempo todo? Eu me sinto morta! Mortíssima! E isso é vilipêndio a cadáver!
─ Calma, Senhora Crase! Respire fundo e vamos conversar serenamente. Exponha as razões por estar assim tão agitada e pesarosa.
A Senhora Crase deu uma respirada ‘daquelas’ e começou a desabafar:
─ Você sabe o que eu sou, não sabe?
─ Bem, na qualidade de revisor de textos, se eu não souber o que a Senhora é, as pessoas que me contratarem para as revisões estarão fritas. E eu, mais ainda! Fritíssimo!
─ E com razão! E, a propósito, eu sou…?
─ A Senhora, dona Crase, é um fenômeno fonético (`) que representa a junção da preposição ‘a’ com o artigo feminino ‘a’ e com alguns pronomes que se iniciam com a letra ‘a’. Além disso, pode haver crase também na combinação da mesma preposição com pronomes demonstrativos que se iniciem com a letra ‘a’.
─ Vai indo bem ─ ela interrompeu, um pouco mais calma. ─ E quando eu devo ser usada?
─ Ah, a Senhora tem várias regras! Vamos a elas:
1- Se o verbo da oração exigir a preposição ‘a’ e, em seguida, houver um artigo e um substantivo feminino.
Exemplo:
prep. + artigo + substantivo feminino
Júlia levou sua irmã (a + a = à) praça.
Eles desobedeceram às normas de segurança.
preposição a (exigida pelo verbo) + artigo as + subs.feminino
normas
Fica a dica – Em uma oração, se você puder substituir o substantivo feminino por um masculino e este for antecedido por “ao”, haverá crase.
Exemplo:
Eles desobedeceram aos pais / Eles desobedeceram às normas
Júlia levou sua irmã ao teatro / Júlia levou sua irmã à praça
2- Em locuções adverbiais, prepositivas e conjuntivas.
Locuções adverbiais: às vezes, à noite, à tarde, às claras, à meia-noite, às três horas;
Locuções prepositivas: à frente de, à beira de, à exceção de;
Locuções conjuntivas: à proporção que, à medida que.
3- Ao indicar horas específicas.
Exemplo:
A reunião ocorrerá às duas horas da tarde de sexta-feira.
Horas específicas
Atenção: Quando a hora aparecer de forma genérica, não haverá crase.
Exemplo:
Passarei em sua casa a uma hora qualquer para conhecer o bebê.
Hora genérica
4- Usa-se crase nas expressões à moda de / à maneira de.
Exemplo:
Prefiro comida à francesa.
A expressão à moda de está implícita em à francesa
Ela pinta à maneira de Picasso.
5- Antes dos substantivos casa e terra, desde que não tenham o sentido de lar e terra firme, respectivamente.
Exemplo:
Residência de outras pessoas
Ela voltou à casa dos avós após a viagem.
mas
Ela voltou a casa após a viagem
seu próprio lar – não há crase
Chegamos à terra natal de nossos antepassados.
lugar específico
mas
Voltei a terra firme após um mês velejando. (não há crase)
6- Usa-se crase com pronomes demonstrativos e relativos quando vierem precedidos da preposição a.
Exemplo:
Ele não obedeceu àquela norma de segurança.
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verbo transitivo indireto pede a presença da preposição a (a + aquela = àquela
)
As perguntas às quais respondemos estavam difíceis.
verbo transitivo indireto pede preposição a (a + as quais = as quais)
─ Não é simples? ─ ela questionou.
─ Bem, simples, simplizinho não é, mas, para quem se atreve a escrever, seja lá o que for, e com um pouco de paciência e estudo, dá para escrever bem. Pelo menos no que diz respeito à senhora.
─ E por que – Deus do Céu! – tem gente que continua a me maltratar diariamente? Por que eu? Por que eu?
Eu ia responder a essa pergunta, quando, de repente, ouvi um burburinho…
─ E nós? E nós?
De repente, do nada, saltaram à minha frente uma vírgula, um dois pontos, uma exclamação…
Sergio Diniz da Costa