A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção
CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
Artigo
‘A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção’
Para os amantes da sétima arte, em termos de premiação, o Oscar tem sido popular e, até mesmo, obliterando o festival de Cannes, o mais importante do cinema Mundial. Aliás, se de um lado o Brasil há décadas mostra-se ansioso pela estatueta dourada, muitas pessoas desconhecem que nossos artistas já elevaram o nome do país na França, com o filme “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte, em 1962.
Importante atentar que alguns concursos ou festivais revestem-se de tom mais comercial, de modo que, ganhar um troféu no momento errado, pode prejudicar, em detrimento de edificar carreiras.
Popularmente é dito que a vida é composta de ciclos, tal se identifica no cinema, que frequentemente é criado – de forma não salutar – por hypes ou modismos, assim como a própria evolução sociológica.
Por óbvio, a arte caminha em paralelo à modificação e evolução (ou retrocesso) cultural. Marisa Tomei foi relegada ao ostracismo publicitário e produtivo após não aceitar papéis interessantes ao receber o Oscar por sua atuação em Meu Primo Vinny, de 1993, não correspondente à expectativa de público e crítica após a recepção dos holofotes que a estatueta direciona em momento imediato àqueles que a seguram, e cobiçam.
Lado outro, há o momento exato em ser o escolhido para discursar na premiação, quando uma carreira mais solidificada em termos de seleção e projetos lastreiam um “galgar de degraus” oportuno rumo ao firmamento artístico. Relacionando tais percepções ao ator Brendan Fraser, vislumbra-se que a mera indicação já se revelaria fonte de ressurreição e revitalização à sua carreira, após problemas pessoais que refletiram nos convites a papéis de revelo, depois de ser considerado galã pop dos anos 90.
Contudo, ao entregar uma performance diferenciada, a partir de um material que sabidamente conquista o olhar dos julgadores, culminando na seleção ao prêmio de melhor ator, uma lufada de ar fresco é direcionado não apenas ao histórico do profissional, mas sinalizando um novo olhar e tendência à cerimônia.
Em 2023, além de Fraser, tivemos a oportunidade de testemunhar a seleção de atores com carreiras menos pronunciadas, ou há tempos relegadas à coadjuvação, como é o caso de Jamie Lee Curtis, diva dos amantes de horror por sua participação no clássico “Halloween” de 1979.
De fato, o tempo muda os filmes e a forma pelas quais os vemos, e de maneira similar, seus personagens e personificações. No longa A Baleia (2022), acompanhamos um professor de literatura, Charlie, praticamente entregue à obesidade mórbida que o aflige há alguns anos, desde que o companheiro, seu ex-aluno, tirou a própria vida.
Além de sentir-se constantemente culpado pela tragédia, ainda precisa lidar com outros pesos em sua consciência: o do próprio corpo e o afastamento de sua filha Ellie aos oito anos de idade, quando Charlie decide abandonar a família para viver com o namorado.
A trama nos provoca nuances de emoções o tempo todo. Consegue misturar o belo e o repugnante durante as cenas. Ora é possível sentir empatia e carinho por Charlie, pois ele é doce, amável, gentil. Ora raiva, indignação e revolta por sua resistência em buscar melhorar sua maneira de encarar a vida, de ter mais amor próprio e olhar para si com apreço.
Ao deparar-se com aquele enorme homem esparramado em seu sofá, com dificuldades para andar, fazer gestos simples como alcançar algum objeto mais longe, locomover-se, respirar, que engasga quando chora ou ri, o sentimento que parece surgir ao presenciar esta cena cotidiana é de um imenso incômodo, mal-estar, estranhamento.
Ao mesmo tempo que Charlie, por um lado, como professor de literatura, exprime sensibilidade com os ensaios escritos pelos seus alunos, ajuda-os, orienta, faz apontamentos, é dedicado, lê com eles passagens dramáticas, poéticas, agarra-se a um ensaio em especial, que mais à frente do filme, trata-se de uma produção feita pela sua filha; por outro lado, ele demonstra aspereza e teimosia em aceitar ajuda de sua amiga enfermeira que suplica a ele que vá ao hospital, pois seu estado de saúde é crítico. Prefere entregar-se a comilança desenfreada deixando o ambiente sujo, fétido, desorganizado. Mal consegue assear-se, seu apartamento é sempre escuro e sufocante.
Na vida de Charlie parece não haver espaço para luz, esperança ou salvação. Ele apenas sobrevive e passa os dias relembrando o passado, comendo e evitando as pessoas. Apesar de lecionar na modalidade on-line, ou seja, mesmo tendo uma tela que o separa fisicamente de seus alunos, ele desliga a câmera para não revelar sua condição.
Tentativas de ajudá-lo vão surgindo ao longo da narrativa, além da amiga enfermeira que o visita diariamente, há a presença regular de um rapaz que busca convertê-lo aos ensinamentos bíblicos e de um entregador de pizza, que todos os dias deixava duas pizzas grandes na porta de Charlie sem nunca poder vê-lo. O garoto tenta se aproximar, fazer contato, porém sem sucesso. É orientado pelo homem a pegar o dinheiro na caixa de correios e sair.
Sua filha Ellie expressa tempestuosa revolta contra o professor, pois carrega um sentimento de rejeição torturante ao ser trocada pelo amante de Charlie logo tão criança. Cresceu sem nunca sentir a presença de um pai. Insulta-o, agride-o com palavras, deixa bem claro que, agora adolescente, não precisa mais dele, afinal Charlie não consegue nem ao menos ficar em pé sem a ajuda do andador. Numa das cenas mais angustiantes do filme, Ellie com ódio, desafio o pai a ir até seu encontro, incita-o, provoca-o com xingamentos, zombaria. Ele até tenta, mas desaba logo em seguida, quebrando os móveis ao seu redor.
Entre idas e vindas de pessoas que vão até sua casa, sua amiga cuidadora, a ex-esposa, o rapaz da igreja, o entregador de pizza, sua filha, Charlie segue os dias entre conflitos diários, tentativas de reaproximação com Ellie, momentos de conversa e choro com a única amizade que preserva, graças à insistência por parte dela que ainda nutre esperanças de que ele se encaminhe para o hospital.
Mesmo a enfermeira dizendo que seus dias estavam contados, que ele definitivamente viria a óbito até o final da semana, Charlie segue mantendo seu propósito: aguentar até onde puder, mesmo sentindo terríveis dores do peito, agonizando aos poucos, buscando o ar que quase não entra mais em seus pulmões, até que tudo se acabe de vez.
Na película, Fraser teve se ganhar peso bem como passar por um longo e dedicado processo de maquiagem, que, como se sabe, é um dos caminhos de agraciamento da Academia, posto que alterações físicas significativas sempre são encaradas de forma receptiva. Lembramos, recentemente, o sucesso da atriz Nicole Kidman, ao usar um nariz artificial para interpretar a escritora britânica Virgínia Wolf, em “As horas” de 2002.
Voltando ainda o olhar ao passado, atuações não menos intensas são exemplificados por Robert De Niro em “Touro Indomável”, do lendário Martin Scorsese, além de John Hurt, ao encarnar o famoso e angustiado Joseph Merrick, em “O Homem Elefante”. No caso em tela, a despeito do impacto visual causado pelo aspecto do personagem, a partir do qual seus tormentos são presumíveis, a carga emotiva manifestada por seu intérprete causa um diálogo emotivo com o espectador, fazendo com que aqueles sofrimentos deduzidos, irrompam de forma sentida.
Se, por um prisma, a subjetividade do indivíduo, não raro, é encoberta pelo acesso que este permite ao exterior, a atuação, muitas vezes catalisadora de incômodo, conforme adiantado, produz, ao revés, a transferência de emoções íntimas. Tal é a força da trama e a esmerada forma de sua transposição à tela.
O último ato do longa nos deixa com esta imagem: Ellie, à porta, lendo para ele seu ensaio que tanto Charlie admirava (falava da história de Moby Dick), enquanto reúne todas as forças de seu pesado corpo para levantar do sofá sem o apoio do andador, na tentativa de caminhar até ela. Uma cena belíssima de redenção em meio ao caos do ambiente e a expressão de dor de Charlie.
Dor em todos os sentidos: de seu imenso corpo que impede os movimentos e tranca a respiração e dos sentimentos devastadores que o acompanharam nesse tempo de reclusão. Assim como na obra de Herman Melville, a dor e a obsessão do anti-herói rumo à vingança contra a baleia cachalote, materializada pelo capitão Ahab, a obsessão em “A Baleia”, é traduzida na força da superação e resiliência.
A obra do diretor Darren Aronofsky já flertava com o drama humano, insanidade, feições existenciais e complexidade dos caminhos psíquicos, a partir de títulos consagrados como “Réquiem For a Dream” e “Cisne Negro”. Contudo, a sensibilidade no tratamento de questões inquietantes sempre são renovadas nas mãos de habilidosos artesãos.
A aura teatral do material original, trata-se do roteiro adaptado da peça de Samuel D. Hunter, é preservado, se não, deliberadamente intentado, ao passo de quase se poder antever o ovacionamento derradeiro pela plateia. Novamente, solidifica-se a ideia de que arte e a indústria comercial fílmica podem ser tracejados em harmonia.
Reitera-se em tom de conclusão, que a narrativa do filme consegue ser delicada e perturbadora. Mergulhamos na aflição de Charlie e sofremos com ele na tentativa fracassada de libertá-lo daquele corpo que o aprisiona. Ao se deixar levar pela doença, ele encerra a sua história. Talvez assim, possa sentir plenitude ao menos uma vez: a da leveza de sua alma.
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
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