Pensar os excessos
PSICANÁLISE E COTIDIANO
Bruna Rosalem: Artigo ‘Pensar os excessos’


“Todo excesso traz, em si, o germe da autodestruição.”
(Aldous Huxley)
Excesso de sentido. Isso te faz sentido?
É fato que muitas vezes no percurso da vida nos deparamos com alguns entraves que nos faz questionar ou rever nossas próprias escolhas: carreira profissional, casamento, ter ou não filhos, divórcio, mudança de cidade, estado ou país, seguir outra área profissional completamente diferente daquilo que exercia, começar ou encerrar um negócio próprio, investir em novos conhecimentos, abandonar hábitos, trilhar outros caminhos.
Nesta seara de escolhas e muitas dúvidas, é comum que busquemos algo que nos faça sentido. Mas será que justamente não é neste ponto que reside o problema? A obrigatoriedade de fazer algo que traga a certeza do sentido? De estar no caminho certo? De finalmente ‘acertar na vida’?
Estes questionamentos acabam sendo muito ricos em termos de escuta terapêutica. Ao fazer o sujeito se escutar de suas indagações e dessa busca neurótica, quase que paranoica, por construir algo que o coloque sempre em posições seguras diante das inúmeras contingências da vida, chega uma hora que todo esse ‘controle’, ilusoriamente pensado, escapa, perde o tal sentido e o sujeito se vê sem rumo.
Uma escuta mais atenta de si pode abrir caminhos para possibilidades de desconstrução de sentidos. E isso nem de longe é tarefa fácil. É um exercício bastante árduo que convoca o sujeito a revisitar crenças, conceitos, mandamentos, culturas que até então eram seus alicerces. É um convite desafiador que busca estremecer essas bases, questionando uma a uma.
Leva tempo, exige muito desejo, esforço e paciência. E o mais complicado é que vivemos em tempos de pressa, resultados instantâneos, alta performance, hiperatividade nas conexões, relações líquidas e a promessa constante de uma vida plenamente feliz. Será que haveria espaço para lançar-se a este desafio que pode ser tão enriquecedor?
A obra do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, intitulada ‘Sociedade do Cansaço’, discute questões como a corrida pela alta performance, a realização concomitante de várias atividades em um curto período de tempo, a dificuldade de contemplação, afinal é preciso agir imediatamente de maneira performática e sempre eficaz em diversos ramos da vida seja trabalho, esporte, arte, mercado financeiro, acadêmico, amoroso. Praticamente não há espaço para reflexões ou criações, apenas positividade e produção a qualquer custo.
Como consequência, Byung-Chul Han retrata uma sociedade cansada deste ritmo, porém longe de pensar outras possibilidades para mudar isso, pois o que importa é o acúmulo de bens e ‘coisas a fazer’ e não mais a experiência. Pessoas se tornam carrascas de si mesmas, incorporando cobranças incessantes, um ideal de eu imperativo e inalcançável. Temos então uma sociedade depressiva, transtornada, constantemente inconformada, insuficiente, hiperativa e doente.
Isso tudo em cena é elevado à quinta potência pela rapidez de informações por segundo disseminadas pelas redes sociais. Acompanhamos atualmente uma avalanche de pessoas que levam a vida postando conteúdos infindáveis sobre possíveis ganhos vindos de fontes duvidosas, desfilando em carros luxuosos, habitando casas que valem milhões, além de viagens e itens de luxo dos mais variados desde bolsas, sapatos, relógios, vestimentas, até verdadeiros festins comestíveis, entre outros frenesis a preços exorbitantes.
São promessas de lucro fácil e rápido, muitas vezes em esquemas de apostas ou ‘pirâmides’, entre diversas outras formas de sedução para que o consumidor deste tipo de conteúdo seja bem-sucedido, ‘zere a vida’ e passe a ser visto como vencedor. Byung-Chul Han coloca que estamos infartando nossas almas imersos neste gozo ilimitado rumo a possíveis tragédias e desolação.
Convido a repensar o excesso! Desde o excesso de itens materiais que julgamos necessário ter até o excesso de sentido na vida. Pensando com o filósofo, realmente é muita coisa ao mesmo tempo para digerir. Inevitavelmente, todo excesso deixa resto, sobra, descarte e então, todo este material retorna ao corpo em forma de ansiedade, sofrimento, perturbação, aflição, desespero.
Dizia Nietzsche: “temos a arte para não morrer de verdade”. É possível também pensar: temos a arte para não nos afogar nos excessos. A arte nos dá respiro, alívio, pausa.
Nesse passo, temos o belíssimo filme de Wim Wenders, ‘Dias Perfeitos’, lançado em 2023, que nos convoca a refletir. Na obra, acompanhamos Hirayama, um zelador de banheiros públicos em Tóquio que leva uma vida simples, pacata, porém apaixonantemente marcada pelos seus gostos musicais, por admirar as árvores e paisagens pelo caminho onde ele faz questão de registrar em lindas fotografias reveladas e armazenadas cuidadosamente, além de toda noite desfrutar da companhia de boas literaturas. Na hora das refeições, parece saborear cada gosto, aroma, textura, cor. Hirayama nos ensina a apreciar o momento de cada atividade que se propõe a fazer sem ser atravessado por quaisquer outras distrações.
O zelador têm sim seus dramas, suas tristezas, principalmente com relação aos familiares, seus momentos de solitude, no entanto, parece ter encontrado novas maneiras de lidar com as dificuldades sem necessariamente perseguir um ideal. Na contramão da corrida pelo sucesso, fama e evidência, Hirayama fica com a serenidade de ser quem é.
Difícil bancar algo assim? Muito! Pois a sedução dos excessos que nos soterra a alma é forte. Mas chega um momento que é preciso subir à tona e respirar para não perecer de vez.






