Daniela Jacinto
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De repente está aquele calor e a preferência é por usar uma blusa de manga comprida. O que pode aparentar apenas um estado febril, esconde algo a mais: machucados e mais machucados, que antes mesmo de cicatrizarem, voltam a ser cultivados, com mais cortes por cima. Os lugares atingidos são aqueles que podem ser cobertos como braços, barriga e pernas. No rosto, um sorriso porque a vida continua. Na intimidade, aquele que sofre coloca sua máscara social para sair às ruas e mais uma vez fingir. Sim, fazer de conta que tudo está bem, porque ninguém se importa. Quando a dor é grande, mas não há o que se fazer, o alívio está nos cortes. É esse o pensamento de quem pratica a automutilação, atitude registrada com maior frequência dos 12 aos 18 anos, fase da adolescência, mas há casos de crianças e adultos também recorrendo a essa atitude. Geralmente o “cutting”, como é conhecido em inglês, é feito por vítimas de agressão como estupro, bullying, maus-tratos em casa, dificuldade em lidar com as frustrações, as perdas (por morte ou término de relacionamentos) e vontade de se punir porque engordou, como esclarece o psiquiatra Marcus Leal Feitoza. Depois dos cortes vem a culpa e a tristeza de carregar cicatrizes, que ficam para sempre.
A automutilação é definida como qualquer comportamento intencional envolvendo agressão direta ao próprio corpo sem intenção de suicídio. Também estão incluídas na automutilação práticas como bater em si mesmo, arranhar, socar paredes, se queimar, furar, esmurrar e beliscar. Há também quem arranque os cabelos, a sobrancelha, morda as próprias mãos, lábios, língua, ou braços.
Na internet, um artigo publicado na Wikipedia, define que os praticantes do “cutting” não possuem qualquer expectativa com relação ao futuro, pois se consideram incapazes de alcançar qualquer coisa realmente boa — razão pela qual se surpreendem muito quando alcançam grandes feitos, como passar no vestibular. Ainda que acontecimentos do gênero lhes sejam de grande benefício, não são o bastante para que abandonem as práticas autoagressivas, o que faz com que retornem à mesma falta de expectativa a respeito da vida.
O psiquiatra Marcus Leal Feitoza conta que faz atendimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), em dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps), sendo um voltado a álcool e drogas, além de prestar assistência no Hospital Vera Cruz, trabalhar no Ambulatório de Saúde Mental de Votorantim e ainda atender em consultório particular, mas onde mais vê casos de automutilação é nos Caps. Ele afirma que não há nenhuma estatística a respeito do número de casos em Sorocaba e nem no Brasil, mas tem visto ocorrer com muita frequência. Mais em mulheres do que em homens.
De acordo com o médico, apesar de a grande maioria dos casos de automutilação ser praticada por adolescentes, ele também atende bastante ocorrência envolvendo adultos. São pessoas que começaram a praticar na adolescência e ainda não conseguiram parar, mas as idades não passam dos 30 anos. A prática pode envolver vários transtornos psiquiátricos, diz Marcus. “Pode ser que a pessoa apresente um quadro depressivo, transtorno bipolar, esquizofrenia, dependência química, anorexia… Antes os médicos acreditavam ser era mais comum ocorrer em quem tivesse a Síndrome de Bordeline [transtorno psíquico marcado pela impulsividade e instabilidade de afetos], mas hoje já se sabe que não é apenas nesse caso”.
Marcus afirma que a automutilação é geralmente praticada por pessoas impulsivas, e isso faz com que não consigam se controlar quando surge novamente a vontade de se cortar. “O corte causa a essas pessoas uma sensação de alívio, por isso elas trocam a dor emocional pela física. Quando isso ocorre, o organismo libera endorfina, a mesma substância que é liberada na atividade física, por isso é que o automutilador sente certo prazer naquilo, até passar a crise”.
Tem pessoas que por alguma alteração genética, acrescenta Marcus, podem liberar mais endorfina que outras, gerando ainda mais prazer. “Funciona como o mecanismo que ocorre com os dependentes químicos, gera como se fosse uma fissura mesmo, se torna um comportamento viciante”, explica.
Quem passa pelo problema pode receber ajuda por meio de tratamento medicamentoso e psicoterapia. “O tratamento pode ajudar a pessoa se estabilizar emocionalmente e dessa forma pode deixar de se cortar”, diz Marcus.
A associação psicoterapia e medicação — informa a Wikipedia — tem se mostrado eficaz nos casos de automutilação. A psicoterapia, nestes casos, tem como um dos objetivos ajudar o paciente a identificar outras formas de lidar com frustrações que sejam mais eficazes do que seu comportamento. Ainda não há medicação específica indicada para que o paciente pare de se mutilar, entretanto, a medicação pode ser indicada para alívio dos sintomas depressivos e ansiosos, que podem colaborar para um comportamento mais saudável. Há também medicações que são usadas para diminuir a impulsividade e que ajudam o paciente a resistir à vontade de se machucar, caso esta apareça.