Osvaldo Manuel AlbertoImagem gerada por IA do Bing – 18 de novembro de 2024 às 3:05 PM
De tanta fome confundimos o prato com o parto. Até o mais velho que sempre diz: parto os cornos, fica sem forças para demonstrar a sua arte.
Não se trata apenas da alteração de algumas letras, é o mais profundo que um ser humano pode sentir.
Tenho tanta fome que a esta hora preferiria dar tantos partos simultâneos, a faltar ou ver flutuar um prato.
Nem que fosse um prato de arroz com cheiro de nada. Está difícil ter um prato à mesa.
Dê-me um pão, por favor! Ainda que não queiras colocar no prato, ponha-o no chão.
Na ausência de pão, permitam-me partilhar o osso com o vosso cão.
Já vi partir para eternidade filhos meus, pela ausência de comida. Já não me interessa o valor nutricional, pouco me importo se me alimento, desde que consiga comer.
Não tenho culpa de ser tão fértil. Aos meus filhos apelidam de cassua, quando na verdade é má nutrição.
Em nossa cubata não há conta que bata certo. Os meus filhos não usam bata, nem comem batata. Não é por desgosto, mas pela ausência.
Não posso rir, prefiro parir a ver meu filho partir. A dor de perder alguém por fome é maior do que parir 10 vezes no mesmo dia.
Aos prantos eu te peço: Permita-me lavar todos os pratos de sua casa, até aqueles que servem de esconderijos dos ratos.
Os ratos, há muito que fugiram do meu casebre, pois não há pão para repartir. É desta forma que vejo os meus sonhos partirem para lugar incerto, tal como os ratos que nos abandonam mesmo sem insecticida.
O brilho das panelas incomodam, parece bate chapa em bairros novos.
Ouvi falar em branqueamento e repatriamento de capitais, podem aldrabar-nos mais, Mas não falte o pão, porque o nzala yeya.
Não sou mulher do Mingo, mas a cada dia que passa eu mínguo de víveres.
Ivete Rosa de Souza“Não há esperança para a humanidade, que dita preço e valor…” Criador de imagens do Bing
Algumas pessoas só conseguem enxergar a si mesmas, ou olhar para o próprio umbigo, como diria minha mãe. Outros se acham acima da espécie humana, uma raça superior.
Os pobres, os pedintes, os andarilhos, são invisíveis a esses seres, que se julgam acima dos que nada tem. Assim se veem com tanta perfeição, que um ser humano pedindo esmola é visto como uma ofensa.
Onde moro, todas as casas têm muros altos, portões trancados, câmeras de vigilância.
Passam por aqui alguns pedintes, magros, esfarrapados. Muitos deles já se acostumaram a ouvir:
— Não tenho nada hoje. Ou nem mesmo ouvem alguma resposta.
Tem uma mulher, jovem ainda, anda por aqui de shorts e camiseta, sujos e surrados, calor ou inverno. Ela é alta, tem cabelos compridos desgrenhados; se não estivesse tão magra, que visualmente destaca os ossos, um a um, quem sabe seria uma linda mulher, cobiçada e amada.
Ela sempre para e espera no meu portão; parece tão triste, que não me nego a dar um pouco do que tenho.
Ontem ela bateu palmas, e, pela janela, pedi que aguardasse. A história eu sei de cor, ela nem precisa falar, que não tem nada em casa, nem leite para as crianças.
Preparo uma sacola com leite, bolacha, biscoito, resolvi colocar também um litro de óleo, latinhas de sardinha, milho verde, açúcar e outros itens.
Levei a sacola para ela, vi que ela ficou admirada, seus olhos ganharam vida por alguns segundos.
Para minha surpresa, ela literalmente gritou:
— Glória a Deus, obrigado meu Deus, abençoe essa mulher, que me deu tudo isso, com a sacola aberta, mostrando aos céus. Virou-se:
— Obrigado, moça, Deus lhe dê em dobro.
Fiquei ali no portão parada, olhando a mulher caminhar devagar, com aquelas pernas tão finas que pareciam não querer suportar os outros ossos do corpo, e os braços magros, apertando a sacola contra o peito, talvez por estar pesada, e, ao mesmo tempo, para segurar o que poderia lhe escapar. Aquela cena me mostrou a tristeza da fome, em seu estágio mais profundo.
Não só a fome física, a fome de sobrevivência, de afeto, de importância, a fome da ignorância, da falta até de oportunidades. Ela e tantos outros, seres invisíveis que cruzam o nosso caminho. Que muitas vezes são expulsos das calçadas, onde se abrigam. Mães, que lutam para alimentar seus filhos. Velhos expropriados de amor, compreensão, apoio e cuidados.
Jovens que cambaleiam drogados, arruinados em sua própria ignorância e descrença. Isso se traduz em fome, fome de amor, de atenção, de compreensão. A dor de não ter o que comer, vestir, ou aonde ir, que muitos de nós jamais sentiu.
Já presenciei um vizinho jogar água em um andarilho para que saísse de sua porta. Dizendo que ele fedia, e estava poluindo a entrada de sua casa
Além do susto, o pobre, que já tinha idade avançada, levantou-se e, humildemente, se desculpou. O vizinho, atrás do portão, virou de costas e entrou. O homem arrumou sua sacola, com alguns pertences, e foi embora. Fiquei com pena do velho, que continuou cabisbaixo, com as pernas trêmulas, calado, como se tivesse cometido um crime. Ser pobre, velho e doente é crime para muitos.
A raça humana é a única sobre a Terra que abandona e maltrata os seus semelhantes e outros seres vivos. Destroem florestas, rios e mares. Espalha guerras, mata seus semelhantes, com furor e desprezo. Não vê o outro como seu igual; ora é inimigo, ou um pária nessa sociedade altamente tecnológica e caótica. Só os grandes, os poderosos, os ricos, os famosos cativam a simpatia da maioria humana
De barriga cheia é fácil falar: — Não tenho nada para dar. Ou, vai trabalhar vagabundo.
Assim seguimos, humanos escravizados pelo orgulho, incapazes de compreender a dor do outro.
Entra ano e acaba outro, as festas começam, com tristeza eu vejo que nada mudou. Nessa época, os humanos invadem mercados, ruas e lojas. Um turbilhão humano entra e sai de shoppings, carregados de sacolas, e muitos também carregam as dívidas daquilo que compraram no desenfreado consumismo. Esquecendo que outro ano vem, e com ele o desafio de pagar o que comprou.
Esquecido do verdadeiro significado de ser humano, do que é comemorado no sentido espiritual, a fé não tem consumo diante da humanidade. A cegueira humana limita-se ao seu próprio eu. Não olha ao redor, não se preocupa com aqueles que nada têm, nem mesmo a vida, que lhe é emprestada.
Não há esperança para a humanidade, que dita preço e valor, ao consumismo, ao desrespeito pela vida, à total incapacidade de distribuir bondade.