armadilhas da cortesia

Fidel Fernando:

‘A linguagem do pretérito imperfeito do indicativo e as armadilhas da cortesia’


Fidel Fernando
Fidel Fernando
Imagem gerada com IA do Bing ∙ 29 de setembro de 2024 às 7:17 PM
Imagem gerada com IA do Bing ∙ 29 de setembro de 2024 às 7:17 PM

Se o caro leitor nunca passou por uma situação que lhe deixou intrigado, saiba, pois, que eu já. Talvez até mais de uma vez. Como professor de Língua Portuguesa, tenho a oportunidade (ou a maldição) de vivenciar episódios em que o que a gramática legitima como certo, a vida prática, muitas vezes, rejeita com estranheza, ou pior, com risos.

Veja, certo dia, dirigi-me nestes termos a uma turma do ensino médio: “Queria que me dissessem as horas, por favor”. Era uma frase inocente, polida até. A forma verbal no pretérito imperfeito do modo indicativo, ‘queria’, carregava um tom de cortesia que me pareceu adequado ao contexto. Afinal, ensinar é também uma questão de respeito mútuo, não é verdade?

Entretanto, o que recebi em troca foi um coro de risadas, seguido da provocação de um aluno do fundo da sala (sempre do fundo da sala, onde se concentram as vozes mais atrevidas!): “Querias, já não queres mais?”.

Riram-se de mim. E eu, num primeiro momento, confesso, senti-me insultado. Como podiam zombar de algo que, para mim, era tão óbvio? Raciocinei velozmente e percebi, logo, que o erro, se é que podemos chamar assim, não estava neles. A dificuldade em entender a sutileza do pretérito imperfeito do modo indicativo como forma de cortesia era uma evidência clara de como a linguagem, quando usada correctamente, pode se tornar uma barreira na comunicação, especialmente quando o ouvinte não está acostumado a tais nuances.

Lembrei-me, então, de Marcos Bagno, autor do brilhante livro ʻNada na Língua é Por Acasoʼ. Ah, como eu queria que a turma tivesse a mínima noção disso! Queria eu lhes falar sobre os valores semânticos de certos modos e tempos verbais. No caso concreto, o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo ʻqueriaʼ com valor de cortesia, delicadeza social, modéstia. É uma prática comum na nossa língua, um recurso que suaviza a ordem e torna o pedido menos impositivo. Todavia, para aqueles alunos, acostumados a uma comunicação directa, talvez até brusca, o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo soava estranho, deslocado.

Se a frase tivesse sido “Me dizem só que horas são”, provavelmente não gerasse gargalhadas. Afinal, a familiaridade com expressões informais e a naturalidade com que eles se comunicam nas redes sociais e na vida diária não só moldam o jeito deles de falar, mas também a forma como eles percebem a correcção linguística.

Por isso, não é raro que o que é correcto aos olhos da gramática seja, na prática, interpretado como um erro. A Língua Portuguesa, rica e malemolente como é, carrega em si armadilhas que podem fazer até os falantes mais experientes tropeçarem. E, como revisores textuais, lidamos diariamente com essas malemolências do nosso idioma. Frases que, no papel, são impecáveis, mas, na prática, soam ininteligíveis ou mesmo risíveis.

Aquela turma, após uma breve explicação sobre o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo, teria compreendido, tenho certeza. Contudo, o sino da escola, sempre implacável, tocou antes que eu pudesse transformar o riso em compreensão. E eu fiquei com a sensação de que, às vezes, a comunicação efectiva depende mais da adaptação ao público do que da fidelidade à norma.

Nesta hora, cumpre realçar, então, que a norma culta pode ser uma barreira, uma espécie de muro que separa o professor do aluno, e a mensagem, por mais bem elaborada que esteja, não chega ao seu destinatário.

Reflectindo sobre isso, percebo que o sino escolar, que havia interrompido a minha tentativa de explicar os valores semânticos do pretérito imperfeito do modo indicativo, também simboliza a urgência de novos paradigmas pedagógicos. Em vez de ensinar a norma, nada contra a norma da língua, precisamos construir pontes entre o que se espera em se tratando de correcção e o que é efectivo.

Quem nunca se sentiu assim, perdido entre o certo e o que é vivido diariamente, que atire a primeira pedra.

Fidel Fernando
Luanda, 29.09.2024

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Celso Ricardo de Almeida: 'Casa do Caralho'

Celso Ricardo de Almeida

“Necessitamos conhecer o nosso idioma com suas gírias e expressões regionais para evitarmos constrangimento ou informações errôneas”

Recentemente, em uma daqueles episódios ocorridos no trânsito, entrei em uma vaga de estacionamento e um motorista que estava atrás de mim, praguejando e mostrando o ‘dedo do meio’, vociferou aquela famosa frase: “Vai para a casa do caralho!”.

Atônito e revoltado, pois não tinha feito nada que pudesse merecer a ira daquele motorista, saí para fora do carro já resolvido responder àquela agressão verbal da qual tinha sido vítima; todavia, por um momento hesitei e refleti, e depois de um breve déjà vu, lembrei-me de minhas aulas de gramática e até mesmos das brincadeiras de escola, e a sensação colérica que havia sentido deu lugar a uma sensação de compaixão pelo meu agressor que havia proferido aquelas palavras no intuito de denegrir-me, mas que, no entanto, usou a expressão errada, por ter se enganado, ou mesmo por falta de conhecimento. Isso porque a expressão “vai pra casa do caralho!”, não é uma agressão verbal como alguns pensam, e no intuito de colaborar com a elucidação desta expressão ‘aterrorizadora’, tentarei explicar o seu significado.

Casa do caralho seria aquela plataforma acima do mastro das antigas embarcações à vela, que também pode ser chamada de gávea. Era o lugar mais alto e pior da caravela para se ficar, balançava muito, o sol queimava e era solitária. Quando os marinheiros se comportavam mal eram mandados para a ‘casa do caralho’, ou seja, para a pequena cesta no alto dos mastros das caravelas onde, dali, os marujos observavam o horizonte. Mas era um lugar muito instável, repercutia qualquer balanço do navio com maior intensidade; portanto era um local no qual ninguém queria ir, e servia como castigo.

Retornando ao meu incidente de trânsito, achei melhor cogitar que o motorista estava querendo me impor qualquer castigo pelo fato de ter pegado a vaga de estacionamento que ele pretendia e não me ofender. Assim, voltei aos meus afazeres mais calmo e sem estresse, restando-me a lição de que necessitamos conhecer o nosso idioma com suas gírias e expressões regionais para evitarmos constrangimento ou informações errôneas, como a que aconteceu comigo e o outro motorista.




Nicanor Filadelfo Pereira: 'Valorize seu texto – saiba como

Nicanor Filadelfo Pereira: ‘VALORIZE O SEU TEXTO SAIBA COMO:’

 

A forma como você escreve personifica o seu trabalho, seja em prosa ou em versos. A observação das regras básicas da gramática de nossa língua ajuda o leitor a aquilatar o seu nível intelectual e cultural.

Por que preocupar-se com os porquês?

ACOMPANHE:

Uma das grandes dificuldades que as pessoas encontram ao escrever está no uso dos porquês. — Vejamos:

1 – A conjunção porque é empregada quando se quer dar uma razão, uma causa, uma explicação.

Exemplo: Não fui à aula hoje porque havia greve dos motoristas de ônibus.

2 – Já no caso de se perguntar sobre a razão, sobre a causa, ou querer uma explicação sobre um fato, usa-se a locução por que, se estiver no início da frase:

Exemplo: Por que você não foi à aula hoje?

3 – No entanto, se na construção da frase, a sua indagação estiver no final da pergunta, esse por que, separado, recebe uma sinalização que o diferencia, ou seja, o acento circunflexo (^), que a crianças costumavam chamar de ‘chapeuzinho’. Lembram?

Exemplo: Você não foi à escola hoje, por quê?

4 – Temos agora uma quarta situação:

Se você utilizar o termo porque como objeto na construção frasal, precedido pelo artigo masculino “o”, ou associado a uma preposição (do) ele já não mais será uma conjunção, mas sim um substantivo.

Exemplo: Vou explicar-te o porquê não fui à aula hoje, porque não havia ônibus. (notaram a diferença dos porquês, na mesma frase?).

Exemplo: Qual a razão ‘do porquê’ no exemplo acima?

Prof. Nicanor Pereira, é licenciado em Letras, com pós-graduação em didática do ensino superior, atua profissionalmente como revisor de textos. Contatos: nicanorpereira@gamil.com