armadilhas da cortesia
Fidel Fernando:
‘A linguagem do pretérito imperfeito do indicativo e as armadilhas da cortesia’
Se o caro leitor nunca passou por uma situação que lhe deixou intrigado, saiba, pois, que eu já. Talvez até mais de uma vez. Como professor de Língua Portuguesa, tenho a oportunidade (ou a maldição) de vivenciar episódios em que o que a gramática legitima como certo, a vida prática, muitas vezes, rejeita com estranheza, ou pior, com risos.
Veja, certo dia, dirigi-me nestes termos a uma turma do ensino médio: “Queria que me dissessem as horas, por favor”. Era uma frase inocente, polida até. A forma verbal no pretérito imperfeito do modo indicativo, ‘queria’, carregava um tom de cortesia que me pareceu adequado ao contexto. Afinal, ensinar é também uma questão de respeito mútuo, não é verdade?
Entretanto, o que recebi em troca foi um coro de risadas, seguido da provocação de um aluno do fundo da sala (sempre do fundo da sala, onde se concentram as vozes mais atrevidas!): “Querias, já não queres mais?”.
Riram-se de mim. E eu, num primeiro momento, confesso, senti-me insultado. Como podiam zombar de algo que, para mim, era tão óbvio? Raciocinei velozmente e percebi, logo, que o erro, se é que podemos chamar assim, não estava neles. A dificuldade em entender a sutileza do pretérito imperfeito do modo indicativo como forma de cortesia era uma evidência clara de como a linguagem, quando usada correctamente, pode se tornar uma barreira na comunicação, especialmente quando o ouvinte não está acostumado a tais nuances.
Lembrei-me, então, de Marcos Bagno, autor do brilhante livro ʻNada na Língua é Por Acasoʼ. Ah, como eu queria que a turma tivesse a mínima noção disso! Queria eu lhes falar sobre os valores semânticos de certos modos e tempos verbais. No caso concreto, o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo ʻqueriaʼ com valor de cortesia, delicadeza social, modéstia. É uma prática comum na nossa língua, um recurso que suaviza a ordem e torna o pedido menos impositivo. Todavia, para aqueles alunos, acostumados a uma comunicação directa, talvez até brusca, o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo soava estranho, deslocado.
Se a frase tivesse sido “Me dizem só que horas são”, provavelmente não gerasse gargalhadas. Afinal, a familiaridade com expressões informais e a naturalidade com que eles se comunicam nas redes sociais e na vida diária não só moldam o jeito deles de falar, mas também a forma como eles percebem a correcção linguística.
Por isso, não é raro que o que é correcto aos olhos da gramática seja, na prática, interpretado como um erro. A Língua Portuguesa, rica e malemolente como é, carrega em si armadilhas que podem fazer até os falantes mais experientes tropeçarem. E, como revisores textuais, lidamos diariamente com essas malemolências do nosso idioma. Frases que, no papel, são impecáveis, mas, na prática, soam ininteligíveis ou mesmo risíveis.
Aquela turma, após uma breve explicação sobre o uso do pretérito imperfeito do modo indicativo, teria compreendido, tenho certeza. Contudo, o sino da escola, sempre implacável, tocou antes que eu pudesse transformar o riso em compreensão. E eu fiquei com a sensação de que, às vezes, a comunicação efectiva depende mais da adaptação ao público do que da fidelidade à norma.
Nesta hora, cumpre realçar, então, que a norma culta pode ser uma barreira, uma espécie de muro que separa o professor do aluno, e a mensagem, por mais bem elaborada que esteja, não chega ao seu destinatário.
Reflectindo sobre isso, percebo que o sino escolar, que havia interrompido a minha tentativa de explicar os valores semânticos do pretérito imperfeito do modo indicativo, também simboliza a urgência de novos paradigmas pedagógicos. Em vez de ensinar a norma, nada contra a norma da língua, precisamos construir pontes entre o que se espera em se tratando de correcção e o que é efectivo.
Quem nunca se sentiu assim, perdido entre o certo e o que é vivido diariamente, que atire a primeira pedra.
Fidel Fernando
Luanda, 29.09.2024
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