Soneto com cristais de amor

Ella Dominici: ‘Soneto com cristais de amor’

Ella Dominici
Ella Dominici
Imagem erada com IA do Bing ∙ 7 de setembro de 2024 às 4:17 PM

Gruta que abrigou apaixonados
Fugindo a convenções e ditos
No idílico de corações contritos
Que afagam mechas lábios cachos

Fenda em suas calcárias paredes
Jorram lentamente destilando sempre
Gotejamento de desejo insistente
São salientes formas no seu teto

Estalactites descem gota a gota
Passam pelo anel que é relicário
Água salvante aromática até o solo

Em falha passa, forma picos pontiagudos
pênsil sustentado sobre gentil abóboda
E suspenso malabarístico sob o desejo

Ella Dominici

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Sergio Diniz da Costa: 'No meio da cidade tinha uma gruta…'

Sergio Diniz 

No meio da cidade tinha uma gruta…

Meio século me separa de minha infância. E das primeiras lembranças da ‘Terra das Monções’, berço do velho ‘Juquita’, como a vida inteira foi conhecido meu pai, José Diniz da Costa, nascido na Rua Cândido Mota, no centro de Porto Feliz.

Em sua juventude, foi músico da banda da cidade e, das lembranças desse tempo, legou-nos um flautim. E trabalhou como químico prático da então próspera Usina de Açúcar.

Como consequência natural dessas atividades, dele recebi, geneticamente, o gosto pelas artes em geral, e doze anos trabalhando como técnico-químico.

Mas, recebi, também, algo maior: uma segunda terra natal, um segundo lar.

Apesar de ter feito de Sorocaba sua nova terra até o final de seus dias, continuou umbilicalmente ligado a Porto Feliz e, duas ou três vezes ao ano, a família toda visitava os parentes e amigos.

Naquela época, a magia das visitas começava pela estrada, então de terra, o que nos deixava empoeirados até a alma e fazia com que a viagem, de ônibus, e cheia de paradas, parecesse uma eternidade. Uma maravilhosa eternidade, cercada por paisagens inesquecíveis, quase sem nenhuma construção. Apenas um oceano verde, mesclado com marrom e azul, onde, de vez em quando, rebanhos de bovinos pareciam, ao longe, em estado meditativo.

Um pouco antes de entrar na cidade, plantações de cana-de-açúcar e uma enorme vontade (nunca realizada) de parar ali e chupar cana até sair pelo nariz.

Após as plantações, finalmente se divisava a entrada da cidade, que se dava simplesmente atravessando a estrada que liga Itu, Boituva, e outras cidades da região.

E, já entrando na cidade, o ônibus nos deixava na Praça da Matriz, muito próximo da Casa das Tias de Porto Feliz, como a ela nos referíamos.

A chegada a Porto, invariavelmente, era aos sábados, ainda de manhã, e se estendia até o final da tarde de domingo. E, nos dois dias, após o almoço, um passeio deliciosamente obrigatório: na Gruta!

Por ser perto, íamos a pé. E, já na entrada, nas escadarias, um sentimento transcendente se apossava de mim e, certamente, de meus irmãos, também. No ar, percebia-se um cheiro, que, mais do que de mata, era um aroma de aventuras, que lembrava algo como “As Caçadas de Pedrinho”, que, com a coleção infantil completa de Monteiro Lobato, povoou de magia minha infância.

Descíamos as escadarias com o coração palpitando e a mente fervilhando. A impressão que tínhamos era que nós também éramos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, e nos uniríamos a Pedrinho, Narizinho, Emília, o Visconde de Sabugosa e outros personagens do Sítio.

Conforme descíamos, as imagens do Monumento aos Bandeirantes, do batelão, dos paredões salitrosos e da bica ─ cuja água gelada, de gosto adocicado, se bebida, segundo uma lenda, sempre  trazia o visitante de volta à gruta ─, e, finalmente, a imagem de Nossa Senhora de Lourdes, levava-nos a um passado longínquo, com a chegada dos primeiros bandeirantes.

Essa magia, renovada de época em época, durou por toda a minha infância e até certo momento da adolescência. O tempo, porém, aos poucos, levou para as terras espirituais os parentes e amigos de outrora. E, também aos poucos, foi depositando no Baú da Memória aquele lugar de sonhos e de aventuras.

Hoje, volto mensalmente a Porto Feliz, para buscar exemplares da Revista Bemporto, da qual sou colunista. E recentemente, visitei a gruta. Mas alguma coisa estava diferente nela, além da mudança de local do batelão. Senti um vazio profundo, um silêncio doído.

Tentei ouvir os ecos do passado longínquo quando, naquele local, surgiu a Vila de Araritaguaba. Em vão. Tentei, então, ouvir os ecos de um passado mais recente, da gruta da minha infância, cheia de visitantes e mesmo dos moradores da cidade. Mas só ouvi uma criança dentro de mim, que dizia, como um Drummond: No meio da cidade tinha uma gruta/ Tinha uma gruta no meio da cidade/ Nunca me esquecerei desse acontecimento/ Na vida de minhas retinas tão fatigadas/ Nunca me esquecerei que no meio da cidade tinha uma gruta… Uma gruta onde um menino se perdeu, levado por um batelão, talvez para a Terra do Nunca.

 

* Crônica publicada, originariamente, na Revista Bemporto, edição de setembro de 2015.