Hoje é dia vinte e quatro. Nuvens passam espalhadas no céu, como fiapos brancos de algodão, num fundo, azul profundo, me dizendo que é céu de junho.
Meu coração bate calmo e leva-me a um tempo distante, sinto saudades da infância na época de São João. Posso até me ver menina: magrinha e serelepe, correndo descalça pelo terreiro; e os adultos batendo papo, em volta da fogueira.
Criança não quer saber de conversa de gente grande. Nós queríamos mesmo era acender gravetos e sair iluminando os trieiros no meio do campo, atrás das casas, nos quintais…
Recordo-me das batatas-doces assadas na brasa da fogueira e dos foguetes que animavam o São João. O frio de Chapada e o nevoeiro do inverno eram sempre presença certa.
Hoje eu sinto o frio por aqui, mas tem uma intensidade e uma luz diferente. O que será que muda quando a gente cresce? As coisas se transformam ou somos nós que mudamos demais? As mesmas comidas já não têm o mesmo sabor, não há mais fogueira, nem rojões, muito menos cantoria.
Caio na real que são novos tempos. Tempo da tecnologia, do mundo digital. Podemos compartilhar qualquer coisa: abraços, beijos, bate-papo e até uma vela acesa, virtualmente, é claro. Olho em volta à procura do terreiro de chão batido, das crianças correndo, da fogueira acesa, com as madeiras bem arrumadas e as labaredas vermelhas. Ainda os encontro: Posso compartilhar comigo essas lembranças, e nem precisei usar ‘meio tecnológico’. Apenas abri uma caixinha bem guardada no fundo da memória…
Como é gratificante ter boas recordações. Eu mudei de tempo e de lugar, nós mudamos. As coisas, os sabores, os cheiros também se diferenciaram.
Cada fase da vida tem um gosto especial. Essa luz e esse sabor de hoje, há pouco, também será saudade.
Ella Dominici: ‘O drama do apartamento da Berrine’
A infância se passou em Minas ao filho da professora de História e aos seus quatro irmãos, cinco no total. Foram criados pela dona Lázara, moça naquela época e que se manteve solteira. Ela os viu nascer, era uma negra dedicada ,quase mãe…mais que mãe .
Por sua vez a mãe muito moderna para as décadas de cinquenta a sessenta, dirigia, fumava…uma feminista que discutia a época em suas excelentes aulas.
Hugo veio para São Paulo , estudar sociologia na USP, morava no apartamento cedido a duras custas pelo pai na avenida Berrine.
Creio que fosse por volta de 1968 quando na faculdade se drogava, aliás todos os amigos, irmãos e alguns primos lá de Minas .
Provava-se tudo e corria as avenidas de São Paulo no engajamento político de revolta e liberdade…e em busca do LSD.
Era um conjunto de cinco prédios, cada qual pintado de uma cor. O dele era azul. Elevadores par e ímpar, curioso ter que acertar e não ir parar no andar errado. Nesse dia errou o andar e subiu um de escada.
Chegou e olhou pelo vitral da sala, aqueles de correr, ouviu o ruído de algo enferrujado, que emperra, precisava lixar e pintar. Faltava manutenção já que não era dedicado.
Pela janela podia-se ver a praça Sanson que ficava bem abaixo, um campinho de futebol e uma área de lazer para crianças. Hugo costumava levar a Leica, sua cadelinha pinscher 2, o nome dado justifica o gosto e paixão pela fotografia, à qual ele era obstinado.
Sua preciosidade era uma ‘Leica M 10-R’ que comprou usada na rua Augusta. Sua namorada.
Gostava do apartamento miúdo de 70 metros, para ele era até grande e acomodava suas tralhas e seus livros Marxistas e de Weber, muita literatura e história, além da pilha de discos e LP do Chico que cantavam canções censuradas. Tudo no Hugo era censurado. Anos torturados sem esquecimento.
Todos os irmãos disputavam esse apartamento, mas ficara nele até o fim.
Não sei porque lembrou- se do tempo que passara em Berlim,onde recolhia canecas de cerveja que deixavam pelos bancos da praça. Fazia um valor suficiente para se manter vivo por ali.
Doía- lhe a cabeça agora. Coberta por uma vasta e desgrenhada cabeleira que disfarçava o cérebro que parecia oco.
A cabeça misturando nebulosamente os fatos que soubera pela Lázara, não por terem ligado, mas ele teria feito um telefonema, o que nunca fazia, pois interurbanos eram caríssimos; além de que os vínculos eram cada vez mais frágeis. Parece que ninguém existia…a mãe morrera drasticamente num acidente no trevo da entrada da cidade mineira. Para que viver, se nem os ideais de liberdade podiam lhe libertar o espírito inquieto. E por que morrer se a luta era a própria vida.
O pavor aumentava, ele inexistia nos corredores sombrios da existência. A droga lhe galardoava como o nada.
E neste devaneio meio sonho, meio real, ouviu um ruído no hall de entrada, pisadas fortes e vozes masculinas, pensou no que poderia ser, lembrando- se dos últimos acontecimentos com famílias de amigos engajados…
A porta da sala foi arrombada?
Desespero total, mais uma vez seria detido, e por quanto tempo agora, e a tortura para confessar o que? será que são eles, ou não? A dúvida cada vez mais se expande, de onde viria esse turbilhão?
A tontura o tomava, eram os efeitos adrenérgicos em seu peito e corpo…
Olha para a janela que precisava de reparos, num relance lembra- se de Ivete Mendes e seus compatriotas e…. de Yunens Paiva… um dia contaria esta façanha ao Marcelo, filho do amigo…
Procura vasculhando com os olhos pela Leica, agarra a peça e freneticamente a pendura no seu pescoço. Onde quer que fosse ela teria que acompanhá- lo .
Não existe outra saída, não tem escolha senão a fuga antes que o tomassem e o levassem, isso já seria demais para suportar…
Salta do décimo primeiro andar. Salto livre.
A gangorra do parquinho balançou afundando a terra ao suportar o peso de seu corpo.
Ano após ano, a festa tradicional, alegadamente da família, celebra-se com mais ou menos pompa e circunstância, designadamente, nas suas principais dimensões: material, religiosa, social; ou conforme os objetivos de cada pessoa, independentemente dos seus valores, crenças, tradições e cultura; e, também, ainda há quem passe indiferente por esta festa, encarando o dia de Natal, como um outro qualquer dia do calendário anual.
Na cultura da sociedade Portuguesa, o Natal continua a ser a festa da família, período de tempo em que se procura reforçar os laços parentais ou, em muitos casos, a reconciliação dos entes mais queridos que, por vicissitudes várias da vida, estiverem desavindos durante mais ou menos tempo.
O reencontro dos familiares, também dos amigos verdadeiros, naquele dia mágico constitui motivo de grande felicidade e de quantas vezes, acerto do passado, da resolução de situações mal resolvidas ou, ainda, por solucionar, de cedências, desejavelmente, sinceras e generosas, das partes até então conflituantes.
Natal de todos, para todos e com todos: adultos e crianças; famílias e amigos; colegas de trabalho e patrões; camaradas de armas, independentemente de o serem em tempo de guerra ou de paz; tempo para recordar traquinices de infância, malandrices escolares, paixonetas de adolescentes, namoros e compromissos, enfim, um mundo de vivências e de recordações, que se tenta reconstruir, se possível com as pessoas que também as experimentaram connosco.
Mas esta magia, que tão bem carateriza o Natal, vive-se, ainda mais intensa e sinceramente, no mundo das crianças, que, na sua ingenuidade e simplicidade, aguardam com imensa ansiedade, a “chegada” do “Menino de Jesus”, precisamente na noite da consoada, em que a família, os amigos incondicionais, quando convidados, se juntam para tomarem a refeição tradicional daquela noite mágica, e que varia, relativamente, de região para região, mesmo dentro do próprio país.
Em geral, as famílias constroem o presépio, alusivo ao nascimento de Jesus, implantam a denominada “Árvore de Natal”, que enfeitam e iluminam, no cimo da qual é colocada a estrela, qual farol que, dias mais tarde, nos princípios de Janeiro, guiará: “na tradição cristã, os três reis magos eram sábios que vinham do Oriente à procura do menino Jesus. Ao encontrarem Cristo, prestaram-lhe culto e deram-lhe presentes.
“Segundo a narrativa bíblica, os reis magos vieram do Oriente à procura do recém-nascido menino Jesus a fim de adorá-lo e oferecer-lhe presentes. Apesar de serem descritos em algumas versões da Bíblia apenas como magos (termo utilizado para referir-se a homens sábios, eruditos), essas figuras foram convertidas ao longo da história em reis, por isso, são conhecidos hoje como “três reis magos”.”
“Os magos, então, ofereceram ao menino Jesus três presentes: incenso, mirra e ouro. Após isso, foram avisados por Deus em um sonho que não deveriam informar nada a Herodes e, assim, retornaram para sua terra por outro caminho.” (in: https://brasilescola.uol.com.br/natal/reis-magos.htm)
O presépio é, porventura, o símbolo maior e mais encantador do Natal. Ele como que irradia uma atração irresistível, as figuras que o integram, parecem reais, com vida e, bem protegida, a cabana onde estão Maria e José com o seu filhinho, Jesus, aquecidos, naquela noite fria de dezembro, pelos animais.
A simplicidade, a humildade e o amor estão ali expostos para o mundo habitado por uma humanidade que não consegue entender-se, devido aos mais diversos e, por vezes, incompreensíveis e inaceitáveis interesses, não obstante todas as pessoas terem perfeito conhecimento que, sem exceções, a vida físico-intelectual e sócio material é, tão só, uma passagem efémera, por um mundo que se renova e morre a cada instante.
O Natal das crianças, também dos adultos, deveria ser uma quadra de paz, de alegria, de fraternidade e de perdão, quanto mais não fosse por um futuro melhor, no qual se possa acreditar, que seria: de conforto, de abundância, de tranquilidade, de segurança, de liberdade, de igualdade, de justiça, de paz, de solidariedade, de amizade, de lealdade e de gratidão, entre pessoas e povos que habitam um mundo que, afinal, não é deles.
A Quadra Natalícia, tal como a Quaresma por ocasião da Páscoa, porém, numa perspetiva diferente, designadamente para as religiões que comemoram estes períodos festivos, reveste-se de um significado muito intenso, porque vivido com as mais profundas convicções culturais, e uma Fé muito grande no devir melhor. É um tempo mágico, de esperança.
O Natal, para quem acredita que pode ser uma Festa da Família, que neste período é possível resolver muitas situações do passado, proteger um futuro de concórdia, enfim, para quem deseja viver esta festa com o coração, deve ser encarado como mais uma oportunidade de vida, agora, no sentido de que há sempre uma porta aberta, (uma oportunidade) e, quando esta, apesar de tudo, se fecha, é preciso confiar na possibilidade de que uma janela poder abrir-se para a bem-aventurança.
Aproveito esta oportunidade para: primeiro, pedir desculpa por algum erro que, involuntariamente, tenha cometido e, com ele, magoado alguém; depois para desejar um Santo e Feliz Natal, com verdade, com lealdade, com gratidão, seja no seio da família, seja com outras pessoas, com aquela amizade de um sincero «Amor Humanista» e muito reconhecimento pelo que me têm ajudado, ao longo da minha vida, compreendendo-me e nunca me abandonando.
É este Natal, praticamente simbólico, que eu desejo festejar com a alegria possível, pesem embora as atuais restrições e condicionalismos, impostos por um conjunto de situações cruéis, que atiram cada vez mais pessoas para a miséria, fome e morte.
Finalmente, de forma totalmente pessoal, sincera e muito sentida, desejo a todas as pessoas que, verdadeiramente, com solidariedade, amizade, lealdade e cumplicidade, me têm acompanhado, através dos meus escritos, um próspero Ano Novo e que 2024 e, desejavelmente, as muitas dezenas de anos que se seguirem, lhes proporcionem o que de melhor possa existir na vida, que na minha perspetiva são: Saúde, Trabalho, Amizade/Amor, Felicidade, Justiça, Paz e a Graça Divina. A todas estas pessoas aqui fica, publicamente e sem reservas, a minha imensa GRATIDÃO.
Venade/Caminha – Portugal, NATAL de 2023
Com o protesto da minha permanente GRATIDÃO
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Presidente Vitalício (Não Executivo) do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal
Letícia Mariana: Crônica ‘O passado é uma roupa que não me serve mais?’
Recordo a infância. Barulhos, crianças correndo, mesas gigantes no recreio. Todos saem de perto. Ninguém quer conviver com a criança chata que fica lendo livros no intervalo.
Chegou a adolescência. Repleta de tribos, panelinhas, jovens fumando cigarros e baseados como se não houvesse amanhã. Lá no cantinho, sou eu. Sozinha e sentindo a dor de ser diferente. Abro meu livro e suspiro. De repente, surge um grupo. Ele quer que eu experimente, que eu vá e que eu tente. Que eu viva o que ele chama de vida.
Tento educadamente não ser ainda mais vista como o patinho feio, mas ainda há muita amargura e solidão em mim. Com risadas e atitudes cruéis, meus dias são os piores dias que uma adolescente poderia viver. Só queria estudar. Só queria ler. Só queria me divertir do meu jeito. Só queria ter amigos.
Alguns meninos me chamam pra sair, mas temo que eles me levem para caminhos que não quero. Evito. Algumas meninas me chamam para festas recheadas de drogas e álcool. Não posso, não devo e nem sequer desejo. Perco a oportunidade de ser alguém para eles.
São várias as piadas. Eu não acho graça de nenhuma. Vou ao banheiro chorar – um cheiro terrível que não reconheço se é cigarro ou maconha – e meu nome escrito no banheiro com ‘careta’ e ‘vadi” ao lado.
Os dias são difíceis. Os dias são tristes. Os dias são solitários.
Mas eu só quero ser como sou. Eu não quero ser como eles. Eu só quero viver feliz. Mas na minha felicidade. Não na felicidade deles. Mas o passado é uma roupa que não me serve mais.
Há muito tempo não me lembrava da alegria de morar na rua do sapo, ali, onde os sapos Cantavam no brejo que ficava do outro lado, lá nos fundos da casa de frente com a minha! A casa da Belinha…
Rua do sapo, onde a criançada fazia a festa; onde brincávamos até ficar escuro pra finalmente jantar e dormir. Minha mãe sempre atenta, nunca deixava a gente dormir sem tomar banho, às vezes o cansaço era tanto, que até tentávamos fingir, sim, fingia que dormia! Mas minha mãe não facilitava e gritava: Vai tudo pro banho cambada!
Nós numa preguiça “braba” levantava de onde nós estávamos e começava a discussão pra ver quem entrava pro banho primeiro; era um verdadeiro alvoroço, todos trancando a entrada da porta pro banheiro…
Minha mãe vinha de lá, com uma “chinela” na mão; pronto,” tá resolvida à confusão”; o irmão mais velho tem mais direito porque ele trabalha e vocês não!
Eu sempre ficava brava, mas permanecia calada, afinal, naquele tempo havia respeito, aí de nós se retrucasse; o chinelinho voava longe até alcançar o alvo certo; que com certeza não seria eu, porque eu era brava, mas não era boba.
Quando o dia raiava, a mamãe lá da cozinha chamava: _Bora acordar pra ir pra escola, tá na hora, corre porque senão vocês se atrasam!
Tempo bom que não volta mais!
Ainda lembro-me muito bem do dia que não tínhamos dinheiro pro pão, saíamos cada um, com um ovo cozido na mão. Pão; era quase que dia sim e outro dia não, era só quando tínhamos mesmo, condição…
Quando era recreio na escola, saíamos correndo pra fila da merenda; êta comida boa! Não dá pra esquecer jamais! Quando chegávamos da escola, eu de chinelo e meus irmãos de “quichute” a gente corria pra rua do sapo, brincar de pique-esconde; pega-pega e bandeirinha, uma turminha “zuerenta” mais muito divertida, que alegrava muitas vidas.
Ao anoitecer, começava a cantoria, os sapos faziam a festa, os grilos invejosos cantavam mais alto pra acabar com a alegria, mas os sapos continuavam a cantar, até quase um novo dia raiar. A rua do sapo agora é mais habitada, novas casas foram feitas, e o brejo já não existe, resta uma saudade que persiste em levar-me sempre de volta a rua do sapo.
Saudade do cantar alegre daqueles bichinhos, que alegraram a minha infância.