Da ancestral N´Golo às Capoeiradas d´América

Da ancestral N´Golo às Capoeiradas d´América – João Barcellos

 A propósito de

“Notas para a história da Capoeira

em Sorocaba (1850-1930)”

 

É preciso viajar, ver, sentir, para se formular uma Ideia acerca de Algo e, entre noemas essenciais, formular um Método que nos aproxime daquele humanismo crítico tão noético quanto telúrico-cósmico. No caso das Nações que emergiram de processos coloniais, logo, com raízes socioculturais de mamelucagemcontinentais – como Brasil, Cuba, etc., são sítios geossociais marcados por uma africanidade identitária –, pois, a miscigenação fez acontecer, primeiro, a perda da sociedade tribal, segundo, a ascensão de uma raça nova, mas doutrinada e encurralada, social e religiosamente.

No entanto, esse ´curral´ foi lentamente destruído pela essência da mamelucagem ibero-afro-americana, tanto social como religiosa, porque a nova raça não seria escrava por muito tempo e dos terreiros sociorreligiosos emergiu (aproveitando os exemplos…) um Brasil e uma Cuba a demonstrarem, em danças e cantares de sincretismo libertário, um humanismo crítico que transformaria esses sítios geossociais em novas nações e, logo, a influenciar as nações colonizadoras numa torna-viagem sociocultural via Capoeira, Jazz, Fado, Samba, e etc., para uma mundividência de reconstrução. Ou seja: o que a marujada caraveleira deixou na Linha do Equador também, em pouco tempo, levou no retorno como lastro umbilical. Ora, ninguém domina sem um dia provar do mesmo chicote…

Vem isto a propósito do livro “Notas para a história da Capoeira em Sorocaba (1850-1930)”, de Carlos Carvalho Cavalheiro, de 2017.

Quando me debrucei sobre a congada, o moçambique e a capoeira, busquei as minhas anotações de várias conversas, na efervescente Coimbra de 1976, com Céline Abdullah, filha de moçambicana com argelino, que havia participado de várias palestras minhas. “Não existe América sem o sangue e a alma d´África, por isso, a América anglo-saxônica e a latina vivenciam hoje tradições da ancestralidade de Angola e de Ifê (Iorubá/Nigéria); e, a Europa, convive com o olhar mameluco que a perturba, descabela, por não perceber, ainda, que dança e canta e é rica pelo trabalho dessa gente afro-americana que não se anuncia mais com o chocalho no tornozelo…” [dizia ela numa de suas análises; 28 de novembro de 1976]. Conhecedora das tradições de Angola, ela esclareceu: “E sabe, no Brasil falam muito de Capoeira, mas essa dança-guerreira não teve origem no condicionamento bélico, era a celebração da puberdade – uma dança de roda em que os meninos se defrontavam em cabeçadas (a imitar as zebras) para impressionarem as meninas: a dança era a N´Golo (dança da zebra) e a celebração a Efundula. Acontecia entre as gentes angolanas de Mucope…”. Sim, é verdade, a N´Gola virou capoeirada em celebração guerreira mais sofisticada, assim como em Martinica virou Ladva, eem Cuba virou Mani. No caso brasileiro, a mamelucagem transformou a luta Maraná, da tribo Tupi, em Capoeira. Em todos os casos, o ritual do Brasil é único e difere da ancestralidade africana e tupi. Assim, pode-se considerar aCapoeira um ritmo e uma encenação genuinamente mameluca.

Já em Cabo Verde, eu pude verificar o ritmo N´Golo entre jovens nas trilhas e na beira-mar, em meados de 1977; mas, também uma versão cabo-verdiana. Quando observei o Murinque, a dança-guerreira de Madagascar, logo a associei à capoeirada brasileira na função rítmica. No ambiente cubano, o que percebi foi a versão mais aproximada da celebração angolana, até porque é impossível dissociar a Angola ancestral do campo artístico-musical gerado em Cuba.

Em seu livro, Carlos Carvalho Cavalheiro mostra-nos uma historiografia de fôlego na qual se salienta a capoeira como elemento de defesa da gente caipira, que se estende a todo Brasil; e, no interior paulista, em regiões como Sorocaba, a presença da Capoeira é um ´algo´ a ser reprimido diante da cultura ocidental-cristã dominante, cultura que admite o sincretismo, mas não a resistência… Ora, é “… prohibido jogar pelas ruas e lugares públicos qualquer espécie de jogos ou lutas”, alertava uma postura sorocabana, de 1882. Em tal contexto. Carlos C. Cavalheiro vai fundo para exibir uma Sorocaba que, embora envolta no desenvolvimento regional do Brasil, é uma sociedade longe da urbanidade, que em vez da capoeirada estilo bom-baiano (a malandragem que logo toma os cariocas) prefere a capoeirada em ponta de navalha. Isto mostra que, se em dado momento histórico, a capoeira é afro e é tupi, a partir do Séc. 20 ela é brasileira por inteiro e alcança rincões sertanejos como Sorocaba, que a tomam para si e lhe dão adaptações segundo as culturas locais. Entretanto, a repressão a atos públicos de capoeirada é igual em todas as regiões, e pune com prisão. Na farta documentação compilada em “Notas para a história da Capoeira em Sorocaba (1850-1930)”, C. C. Cavalheiro oferece uma aula de investigação historiográfica, pelo que o livro é agora obra de referência sobre o assunto.

O livro pinça da história interiorana paulista personagens que foram mestres em capoeira e sábios impulsionadores da modalidade entre jovens de todas as idades, pois, não se tratava mais de celebrar a puberdade, mas de celebrar a vida pulsante do cotidiano em todos os seus estágios.

Lembro, ao tempo de estudar as manobras político-igrejistas de Manoel da Nóbrega, de ler relatos jesuíticos, dos Sécs 17 e 18 [o Séc. 16 só conhece a N´Gola quando o português Affonso Sardinha, o Velho, arma navio negreiro, em Santos, sob comando do sobrinho Gregório, e vai buscar angolanos aprisionados por sobas-reis locais. Obs.: Sardinha é minerador, preador, político, banqueiro e financiador dos jesuítas], relatos acerca da inquietude rítmica de angolanos que substituíam a mão-de-obra tupi-guarani nas lavouras da Capitania vicentina, que virou Capitania paulista ao tempo do Morgado de Mateus, nos anos 70 do Séc. 18, já o Fado (dança-canção d´umbigada nos terreiros cariocas) e a Capoeira eram emblema de nacionalidade, apesar de Portugal. E assim, C. C. Cavalheiro, ao pinçar o painel de personagens sertanejas paulistas da capoeira, exibe um Brasil genuíno no espaço republicano, um tempo-espaço que raro é mostrado na Academia e na Igreja, pior, que a Educação oficial teima em desconhecer. Ora, a molecagem sorocabana da capoeirada é tão importante quanto a tropeirada, pois, esta transportou aquela entre víveres e muitos causos Brasil afora…

E torno à amiga Céline Abdullah para fazer eco: “Ao conhecer o Brasil, com o amigo e mestre João Barcellos, conheci uma africanidade que não está na Capoeira, mas na alma da gente brasileira que faz dançar na capoeirada regionalizada o jeito universal de ser África” [Rio de Janeiro, 2014). E assim celebro o livro “Notas para a história da Capoeira em Sorocaba (1850-1930)”, que Carlos Carvalho Cavalheiro me enviou para leitura, e ora agradeço, encantado.

 

João Barcellos

Cotia/SP, Ag., 2019