“Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a ação humana pelo mundo afora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias”. Fernando Pessoa
No meio selvagem, é sabido que diversas espécies lidam com seus iminentes predadores a partir de sua capacidade de camuflagem e adaptação, seja a partir de suas próprias características orgânicas e fisiológicas, seja por peculiaridades comportamentais. O fenômeno é observado na alteração de matiz das borboletas e camaleões, ou mesmo no período de hibernação dos ursos e migração das aves. E quanto ao ser humano, é possível fazer aproximações neste viés? Seríamos uma espécie que se adapta às situações ou criamos dispositivos para lidar com as contingências da vida?
A despeito do sujeito ser atravessado ao longo de sua jornada por situações inusitadas, muitas vezes, necessita criar mecanismos para sustentar tais situações específicas ou, ainda, vivenciar ‘jogos narcísicos’ entre ora ceder a algo ou alguém, ora enfrentar a todos, na tentativa de preservar certa ordem cultural e social, além de manter os laços grupais nas mais diversas esferas como laborais, familiares e amorosas; o ser humano, não raro, necessita transpassar uma odisseia, tantas vezes, desbussolada.
O tema é retratado de forma bastante sensível no filme ‘Nomadland’, 2020, em livre tradução, ‘Terra de nômades’, ilustrando uma recorrência contemporânea pela qual pessoas resolvem (ou, talvez, lhes é imposta) uma nova realidade de sobrevivência: a vida na estrada, quase que sem um rumo determinado, passando a viver com poucos recursos e, na maior parte do tempo, sozinhas.
O título, dirigido por Chloé Zhao, vencedora do Oscar de melhor filme no ano de 2021, apresenta a personagem de Fern, vivida pela sempre versátil Frances McDormand, também vencedora do Oscar na categoria de melhor atriz, que captou a atenção do público e crítica desde os aclamados clássicos modernos Gosto de Sangue, 1985 e Fargo, 1995. Destaque também de Frances McDormand pela escrita e direção, além de uma forte entrega no filme policial Três anúncios para um crime (2017).
Fern, sexagenária, diante da crise econômica que assola sua cidade em Nevada, segue a vida, após perder o marido de forma dramática, cuidando-o até a doença o levar de vez. Dirigindo uma espécie de van, para manter-se na estrada, busca vários tipos de trabalhos sazonais em fábricas, indústria de alimentos, como empacotadora, entre outros. Cruzando o país, depara-se, conforme desbrava longas estradas, com outras pessoas na mesma condição de nômades, porém cada qual com suas motivações, histórias de vida, projetos e perspectivas.
Em sua nova rotina, ela conhece um acampamento que provê assistência a outros nômades modernos, e, até mesmo, se permite flertar romanticamente em meio à sua nada convencional realidade. Vemos na produção o quanto esta maneira de viver destoa de sua família. Este aspecto fica claro quando Fern vai, forçosamente, à casa da irmã, devido a um problema mecânico em sua van, pedir dinheiro emprestado a ela. Acompanhamos um diálogo bastante interessante ao ouvir da irmã de Fern, o quanto estar na estrada, viver enquanto homeless, algo como uma “sem-teto”, era muito melhor do que estar em companhia da família. Ao anoitecer, Fern parece não suportar dormir na cama confortável do quarto de hóspedes, prefere retornar ao veículo e deitar no pequeno espaço que lhe convém. Ali é mais seguro. É, de fato, seu lar.
O filme é baseado no livro ‘Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century’ da jornalista Jessica Bruder, lançado em 2017, que estuda o fenômeno identificado no território estadunidense de pessoais mais idosas que se deslocam pelo país em busca de trabalho, de forma mais recorrente, após a recessão econômica de 2007/2009. O tema já foi brilhantemente trabalhado na literatura a partir do livro ‘As Vinhas da Ira’, de John Steinbeck, posteriormente adaptado ao cinema por John Ford, (1940). Assim como em Nomadland, a família Joad, após perder suas terras em meio à grande depressão dos anos 30, cruza o país a procura de trabalho, num cenário totalmente avesso à sua origem primeva, de, literalmente, raízes agrárias.
Em um olhar mais superficial, o espectador poderia classificar Nomaland como um road movie, subclassificação de filmes que são desenvolvidos na estrada, desdobrando-se nos mais variados gêneros e períodos, tais como Thelma & Louise (1991), Sem Destino (1969), Central do Brasil (1998), Na Natureza Selvagem (2007), Kalifórnia (1993), entre inúmeras festejadas produções. No entanto, as feições quase documentais exaltam o realismo e pertinência da problemática sociológica trazida à baila. Não raro, a imersão de um personagem em uma jornada, concomitantemente interior, é um instrumento de autodescoberta ou reinvenção de si próprio e sua interação com o meio que o circunda. Todavia, a jornada de Fern, a despeito da característica resoluta que apresenta força à personagem, não se põe a uma marcha existencial, ainda que eventualmente, possa ganhar tais contornos, na medida em que a rotina e novas interações a estimulam – ou provocam – ainda que indiretamente.
Conforme adiantado, trata-se de uma súbita e imposta realidade com a qual ela precisa andar de mãos dadas, ainda que não voluntariamente. O ponto de interesse, contudo, também repousa no limiar entre a aceitação como um cenário transitório, ou o acalentar de um novo comum que começa a sorrir em feições serenas, afinal ela não está sozinha, há outros sujeitos no decorrer das histórias que se cruzam, provando o quanto estar na estrada e vagar de lugar em lugar, entre sentimentos e sensações, pode ser uma experiência fantástica. O filme nos convida a refletir sobre a transitoriedade, uma capacidade formidavelmente humana.
Em seus escritos sobre este tema, Freud (1915) dialoga com um poeta enquanto ambos caminhavam, e, segundo o poeta, dizia estar triste pela constatação de que toda a exuberância daquela paisagem natural que observava, assim como toda a beleza criada pelos humanos, estaria fadada à extinção, à finitude. Neste passo, é inevitável que a sensação de desamparo tão fundamental para o entendimento e constituição do sujeito, nos atravesse. Desde os primórdios do nascimento, estamos lidando com o fenômeno de presença e ausência. Ora somos nutridos, acolhidos, tendo nossas demandas supridas, ora deparamo-nos com a espera por algo, a demora, mesmo que ainda a noção de tempo não esteja simbolizada, é evidente que sentimos na carne os efeitos da ausência, seja o alimento que não vem a contento, o carinho das presenças materna e paterna, uma dor que não cessa, um mal-estar não apalavrado.
Segue o poeta dizendo que tudo aquilo que um dia foi amado e admirado ao longo de sua vida parecia-lhe desprovido de valor por estar fadado à transitoriedade. Freud então contesta esta afirmação colocando que justamente pelas coisas não serem eternas é que as fazem privilegiadas. Atribuímos mais valor àquilo que um dia deixará de existir.
Por serem efêmeros, os objetos e as relações objetais que estabelecemos durante a complexa jornada da existência, podem se tornar valiosos. É, muitas vezes na contingência que reside o belo, o surpreendente, o admirável. Freud nos traz a relação da transitoriedade com a escassez do tempo; a possibilidade do fim eleva o valor da fruição.
Nomadland, além de trabalhar muito bem o estilo de vida de pessoas que por diversos motivos se tornaram nômades, transitando entre cidades e atividades laborais para se manterem na estrada, é um filme que aponta o quanto pode ser exuberante a simplicidade da vida, desde contemplar o anoitecer ou o clarear do dia, admirar as aves e seus trajetos, o som do mar chocando-se com as rochas, a presença constante de animais selvagens cruzando o caminho dos viajantes, o contato com a natureza que traz frescor e leveza à alma.
A produção ainda nos remete a pensar sobre o sentido que cada personagem dá a sua vida. Que realmente a pergunta existencial, “Qual o sentido da vida?” que insistimos em fazer, não tem uma resposta única e verdadeira. Viver não é uma ciência exata, mas uma experiência passageira. E por que não, incrível? Uma das viajantes que cruza o caminho de Fern conta que sua jornada em breve findará devido ao avanço de um tumor cerebral. Porém o que esta personagem nos aponta é que este fato, por mais triste que seja, não invalida suas belíssimas vivências. Ou seja, somos atravessados constantemente pelos saberes que construímos ao longo do tempo. Isto traz significação à vida, aos moldes e estilos de cada sujeito. A ideia da transitoriedade tem seu valor por sabiamente nos advertir que nada é para sempre. O que fica impresso são os efeitos trazidos pelos ensinamentos.
Novos lugares, novas histórias, dramas e enredos, possibilidades e experimentações. Fern aprende com o outro, seja oferecendo uma escuta à dor, seja compartilhando alegrias e conquistas. A vida pode ser mais, ir além. Não um além frenético, paranoico, a busca pela tal felicidade (ilusória, diga-se de passagem), mas, um além possível, significativo, precioso, terno e pacífico.
Ao final, a inquietude que, num primeiro momento lhe causa estranheza e insatisfação, passa de algoz a companheira. Essa imersão, revela novas formas de versatilidade até então desconhecidas, e assim como Diógenes em seu barril, vagando à procura de um par honesto. Se ‘perdendo’ é que Fern realmente se encontra. Poucos se entregariam a tal jornada.
É tudo o que vemos ou parecemos. Mas um sonho dentro de um sonho? (Edgar Allan Poe)
Uma figura esquelética sentada em um ambiente parcamente mobiliado, sonolento, quase cerrando os olhos diante da exaustão. Tem em suas mãos um exemplar de O Idiota, de Dostoievski. Antes de dormir, o homem subitamente levanta os olhos sobressaltado com a queda do volume a seus pés. Em verdade, Trevor Reznik (Christian Bale) não dorme há um ano, talvez, um dos fatores a explicar seu corpo magérrimo de onde irrompe ossos protuberantes e um rosto profundo, intensificado por olheiras.
O título ‘O operário’, (do diretor Brad Anderson, 2004), traduz a ocupação do personagem central da obra, que diante de sua peculiar imagem desperta desconfiança, e até mesmo desprezo de seus superiores e colegas de trabalho, a despeito da tentativa de permanecer inserido no grupo que passa boa parte do dia consertando máquinas em um galpão escurecido e cinzento.
Gradualmente, a partir de falas espaçadas e vazias de Trevor, percebemos que algo aconteceu, mesmo sem precisar quando ou o porquê, resultando na mudança de comportamento, e, principalmente, de aparência do personagem. Em determinado momento, um de seus antigos colegas chega a dizer: “O que aconteceu com você? Costumava ser legal”, sinalizando sua anterior ‘feição de sociabilidade’. Em sua atual realidade, as únicas ações não robóticas são a interação com a garota de programa Steve, que parece lhe nutrir peculiar devoção com tímida reciprocidade, e constantes visitas ao aeroporto para um café, um pedaço de torta que nunca come e uma conversa com a garçonete.
A tensão aumenta quando o estado letárgico de Trevor culmina num acidente no qual um dos operadores de máquina perde o braço. Sua exclusão, agora formal do grupo, parece incontestável e o perturba coadjuvantemente à chegada de um novo empregado que, de maneira estranha, parece perceber não só sua inquietude, mas até mesmo a motivação, ainda que não consciente, do personagem.
No decorrer do filme, pequenas dicas são semeadas, que, em sua maioria, tornam-se percebidas pelo espectador na segunda sessão, quando o quebra-cabeça e o final catártico são revelados. Além do ambiente onírico, gravado em um verão escaldante de Barcelona, simulando Los Angeles, Bale teve de emagrecer 28 kg, em um verdadeiro esforço de camaleão, considerando que um dos seus trabalhos seguintes seria ‘Batman Begins’ de Christoffer Nolan, no qual teve que ganhar considerável massa muscular. Sua dieta no período de ‘O operário’ consistiu de uma maçã e uma lata de atum por dia, durante quase três meses, criando um aspecto que produz mal-estar e ao mesmo tempo realça sua interpretação hipnótica sinalizando a deterioração do personagem.
É sabido que alterações corporais drásticas ou de maquiagem recorrentemente são recebidas com um favoritismo no âmbito da crítica e, principalmente, nas premiações. Lembremos de Nicole Kidman em ‘As Horas’, (2002), interpretando Virgínia Woolf e Charlize Theron em ‘Monster’ (2003), ambas usando próteses faciais que lhes renderam o Oscar de melhor atriz, além do recente A Baleia (2022), cujo personagem interpretado por Brendan Fraser usava uma espécie de prótese que pesava cerca de 130kg para se parecer como um obeso mórbido. No entanto, a transformação de Bale foi totalmente corporal, aliás, sua versatilidade já remonta a seus primeiros trabalhos, como no sempre lembrado ‘Império do Sol’, de Steven Spielberg, com apenas 13 anos.
Na trama que acompanhamos, Trevor parece transitar entre realidade e fantasia. Condensando elementos vividos no passado, fragmentos desconexos de memórias recentes, criadas ou ainda vivenciadas em algum lugar no tempo e espaço, o operador de máquinas perde-se a todo instante. Ora interage com seus próprios delírios, ora tenta desvendar pequenas pistas de um jogo de forca que de tempos em tempos aparece em sua geladeira. Ao longo do filme não sabemos se ele está enlouquecendo ou simplesmente sonhando. Quando conversa com alguém, ficamos em dúvida se tal pessoa existe ou se é uma alucinação resultante de uma vida nada saudável, na qual dormir é quase impossível.
Assim como Trevor busca incessantemente entender o mistério de sua própria vida, o espectador se depara, retire-se, com quase imperceptíveis sinais ao longo da narrativa. A mencionada figura misteriosa que surge na pele de um novo funcionário desperta imediato interesse de Trevor. Ele é forte, tem um carro vermelho, usa boas roupas e, detalhe, os dedos de uma das mãos estão dilacerados, assim como no acidente provocado por Trevor em seu amigo. Na realidade, somente o operário consegue ver este homem, inclusive ele insiste em afirmar que ele aparece numa foto na casa de Steve. Ao se deparar com a imagem, Trevor entra num grande conflito com a moça, achando que fosse seu ex-companheiro e estava sendo traído. Mais adiante na película, vimos que era o próprio Trevor na fotografia.
Este fato, dentre outros que vão surgindo sutilmente em recortes, vão compondo um verdadeiro quebra-cabeças. Afinal, o personagem alucina ou estaríamos presos num longo sonho fragmentado que nunca acaba? O que sabemos é que Trevor apresenta insônia e pouco se alimenta. Mas o que de fato provocou esta situação?
Sua carne sofre. Seu corpo esvaece lentamente. Algo o consome de dentro para fora. É comido vivo. Suas entranhas são tomadas como último recurso antes que Trevor possa não existir mais. Ainda há luta para manter-se vivo, seus delírios agem como defesas do Eu para evitar desintegrar-se de vez. A frase escrita em um pequeno papel na parede diz: “Quem é você?”, Trevor responde: “Eu sei quem é você!”. Neste momento colocamo-nos diante de uma regressão que transforma o rumo da história.
O operador de máquina paga com seu corpo e alma por ter assassinado uma criança. Um atropelamento sem prestar socorro culminou numa fuga de si mesmo, algo que se tornou insuportável. Trevor é um morto-vivo, um ser que circula entre remorso, dor, culpa. Ressente-se pela falta de atitude diante daquele menino estendido no chão e é consumido por isso.
O cara forte com botas de cowboy dirigindo o carro vermelho sempre foi ele. O filme deixa claro o quanto sua aparência era bem diferente do que vemos na atualidade. Trevor era vigoroso e saudável. Parecia estar de bem com a vida. Até que tudo mudou.
Mais do que retratar um homem arrependido, a obra nos aponta que sentimentos e emoções estão encarnados, ou seja, é impossível separar psiquismo de corpo. Soma (carne) e psique são um só. Na história remota, houve tentativas de separar corpo e espírito, corpo e alma (no sentido de metafísico). Doenças psicossomáticas, por exemplo, são evidências emblemáticas desta unicidade. As afecções não obedecem a anatomia. Em Trevor vimos que a privação do sono e a magreza extrema tornaram-se consequências de seus atos. Mas qual relação? Nem sempre há. Mais uma vez evocando a história passada, as histéricas apresentavam inúmeros sintomas conversivos como paralisias dos membros e facial, gagueiras, tosse contínua, dificuldades na fala, entre outros. Grosso modo, travavam uma luta entre desejo e censura, culminando nestas manifestações somáticas numa espécie de sinfonia sem maestro.
O sofrimento de Trevor nos dá indícios de chegar ao fim quando ele se entrega à polícia. Paradoxalmente, agora encarcerado, conquista sua liberdade. Dormir é acalento a sua alma e, quem sabe, gradativamente, seu corpo livre da tortura e aflição, recupere o vigor de outrora. O operário nos provoca muitas reflexões, e uma delas é a seguinte: por mais que lutemos para esconder do outro ou de si mesmo aquilo que nos aflige, este gasto enérgico é em vão. O corpo falará, insistirá e jamais cessará.
Considerando a obra lida pelo personagem no início do filme, de maneira diversa do príncipe Míchkin, que retorna a uma Rússia corrompida, protagonista de O Idiota, que representa pureza e ingenuidade, Reznik é um simulacro oposto da inocência, absorvendo a culpa em obliteração à realidade, a ela cerrando os olhos. A culpa, no entanto, não o abandona, mas o consome dia após dia.
A narrativa deste momento histórico que Trevor vivencia é contado através dos sulcos de sua carne. Parafraseando S. Freud, se a boca se cala, falam-se os dedos, no caso aqui, seu corpo denuncia.
Caso Chico Picadinho: uma figura incógnita, um desfecho controverso
COLUNA CRIME & PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
‘Caso Chico Picadinho: uma figura incógnita, um desfecho controverso’
“Se eu tivesse alguma coisa para dizer lá fora, para o público, seria perdão!”
Francisco Costa Rocha
Questões iniciais
Em uma cela na antiga Casa de Detenção e Tratamento de Taubaté, um homem idoso, de compleições frágeis, é o mais antigo integrante do sistema prisional brasileiro. Francisco Costa Rocha, ‘Chico Picadinho’, como ficou conhecido pelos prisioneiros da Casa de Detenção do Carandiru em sua primeira condenação, foi responsável pelo assassinato seguido de esquartejamento de duas mulheres. A primeira, no ano de 1966, a bailarina e massagista austríaca Margareth Suída, na madrugada de 03 de agosto.
Apresentados mais cedo num bar localizado em uma das várias galerias do centro de São Paulo, encaminharam-se ao fim da noite para o apartamento que Francisco dividia com o amigo Caio, um médico que conhecera na aeronáutica, localizado na Rua Aurora, região rotulada como ‘Boca do Lixo’. No chamado quadrilátero do pecado, famoso pelas casas de meretrício, bares, teatros e cinemas eróticos, que se estende desde as Avenidas Ipiranga e São João, República e Luz, o casal sobe até o apartamento 83, do número 72.
Após o encontro caloroso, a noite seria encerrada com o assassinato da mulher e posterior esquartejamento do cadáver. Inicialmente, a suspeita era de vivissecção, devido ao colega de quarto de Francisco ser médico, motivo, inclusive, de suspeita temporária recaída sobre Caio. De frente à carnificina que o próprio Francisco orquestrou, ele simula então uma visita corriqueira a sua mãe que morava no Rio de Janeiro, quando por lá foi preso e levado a julgamento.
Apesar da brilhante atuação de defesa pelo conceituado advogado criminalista Flávio Markman, o réu é condenado a 18 anos de reclusão por homicídio qualificado, além de 2 anos e 6 meses pela destruição do cadáver, em concurso material, sendo ulteriormente a pena reduzida para 14 anos e 4 meses de reclusão.
Nesse sentido, delineia-se a peculiaridade do caso, que já perdura há mais de quatro décadas, gerando polêmica no meio jurídico e da saúde mental.
Após a condenação pelo homicídio da Rua Aurora, Chico foi avaliado pelo corpo médico prisional (Instituto de Biotipologia Criminal), com parecer favorável concluindo pela cessação da periculosidade, embasando a progressão de regime, parcialmente cumprido em colônia agrícola, e sua liberdade condicional. Segundo o parecer para efeito de livramento condicional expedido pelo Instituto citado, foi excluído o diagnóstico de personalidade psicopática e estabelecido que Francisco tinha personalidade com distúrbio de nível profundamente neurótico.
Logo após seu retorno à vida cotidiana, Francisco, apesar de registrado bom comportamento em cárcere, inclusive tendo trabalhado diretamente com a diretoria da prisão, retornou à vida desregrada e boêmia no centro paulistano, com insucesso do casamento celebrado ainda quando cumpria pena.
Com o passar do tempo, entregue ao consumo excessivo de álcool e outras drogas, novamente Chico repete a cena de outrora: enquanto hospedado na casa de um amigo de sua mãe, na Avenida Rio Branco, também no centro de São Paulo, após um encontro com a prostituta Ângela de Sousa Silva, Francisco asfixia sua parceira durante o ato sexual e utilizando-se de facas e um cerrote, lança mão do esquartejamento no intuito de se livrar dos despojos. Mesmo com a experiência que passara na primeira vez que esquartejou alguém, Chico deixa a cena do crime ainda um tanto desorganizada, com a sutil diferença de o local estar um pouco mais limpo, porém sacos com os restos mortais foram deixados no apartamento. Após o ato, Francisco exausto, dorme no sofá e acorda depois de três horas com toda certeza de seu feito, resolve então contar para o seu amigo, e tão logo desloca-se ao Rio de Janeiro, onde é preso pela segunda vez pelos policiais da delegacia de Magé, em decorrência de denúncia anônima.
No segundo julgamento, exatos dez anos do primeiro assassínio e dois em liberdade, ‘Chico Picadinho’ é condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão. Deveria ter sido libertado em 1998, por ter cumprido sua pena integralmente, mas isso não aconteceu. À época, o máximo que um detento poderia permanecer encarcerado, mesmo após a unificação das penas, seria trinta anos. Com a entrada ao universo jurídico da Lei nº 13.964/2019, chancelou-se o máximo de quarenta anos de privação de liberdade, segundo alterações introduzidas no parágrafo primeiro do artigo 75 do Código Penal.
Francisco Costa Rocha, atualmente com 79 anos, ainda está em regime de segregação, que se estende por mais de 45 anos. Sua liberdade não foi concebida em decorrência de uma interdição na esfera cível, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, descortinando-se um quadro anômalo de encarceramento no sistema penal brasileiro, pois, segundo a defesa de Francisco, ele estaria sendo punido com prisão perpétua, inexistente em nosso país. Todavia o pedido de desinternação foi rejeitado pela Justiça.
Pela reforma penal de 1984, pela qual foi excluído o sistema denominado ‘duplo binário’, o magistrado sentenciante aplicará a pena de reclusão, ou a medida de segurança, caso detectada a alteração mental que implique o tratamento hospitalar ou ambulatorial. Não mais se faculta a aplicação sucessiva de reclusão e medida de segurança. No caso de Francisco, alega-se que ele continuaria representando perigo à sociedade se fosse colocado em liberdade.
Controvérsias
Depois da segunda condenação, Francisco foi diagnosticado enquanto um sujeito psicopata. De acordo com Robert Hare, psicólogo canadense, especialista em psicologia criminal, a psicopatia é um transtorno de personalidade que apresenta aspectos como comportamento antissocial, ausência de remorso, compaixão, altruísmo, empatia, sentimentos rasos, emoções muitas vezes explosivas, impulsividade, baixa tolerância às frustrações, agressividade. No caso aqui, esta condição não implica inimputabilidade, pois o indivíduo tem total ciência de seus atos, diferentemente de uma psicose, que, grosso modo, seria a perda do contato com a realidade, podendo apresentar surtos psicóticos com relatos de delírios, sensação de perseguição, visões, alucinações auditivas.
Por ser um transtorno de personalidade, a psicopatia não é considerada doença mental, e, portanto, não é passível de tratamento ambulatorial, internação assistida, ou qualquer tipo de monitoramento com o intuito de o sujeito ‘se curar’ e voltar ao convívio social. Cabe ressaltar que nem todo psicopata é assassino e, muito menos, serial kille;, esta estatística é bem baixa, cerca de 2% dos considerados psicopatas poderão vir a cometer homicídios.
O réu Francisco foi condenado, por um lado, na sistemática da reclusão pautada na presunção quanto à possibilidade de reincidência em crime violento. De outro lado, a internação, ou tratamento ambulatorial, é aplicada por tempo indeterminado, enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade, observado o prazo mínimo de um a três anos. Tal normatiza, que se reveste de feições perpétuas por omissão, não foi alterada pela reforma de 1984, pois tanto a parte geral do Código Penal como a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), mantiveram o texto legal que positiva a indeterminação de tempo para a medida de segurança. Ou seja, a alegação é a de que Chico não teria condições de retornar ao âmbito da sociedade, contudo, a internação deveria observar o prazo máximo da pena abstratamente cominada, ou o máximo permitido em lei, cerca de 40 anos.
Se considerarmos o diagnóstico de psicopatia, realmente não há como dizer que exista uma espécie de “superação” de periculosidade para homicidas. Eles sempre serão assim, pois são maneiras de ser, correspondentes à personalidade, ao comportamento, à forma que eles veem, operam e atuam no mundo. No caso de Chico, além de estar em privação de liberdade até hoje, o prazo máximo de 40 anos já está em muito ultrapassado. No Brasil, é vedado o apenamento perpétuo; não houve um quadro de aplicação sucessiva de medida de segurança, curso de ação inviável de acordo com a legislação em matéria penal, ao passo que a manutenção da custódia decorre de interdição cível, que não significa privativa de liberdade.
A interdição, nos termos do Código Civil, deve ser aplicada quando um indivíduo não detém o discernimento para atos da vida cível, ou seja, não tem condições de prezar por sua autonomia, como assumir obrigações, estabelecer relações contratuais, zelar por sua condição financeira e material, necessitando a nomeação de curador especial. Embora, muitas vezes, isso seja necessário, não seria a casuística aqui relatada, hoje os tempos são outros. Há décadas a luta é pautada justamente pela desinternação e acompanhamento não segregatório, permitindo que o sujeito esteja em constante contato com a realidade para além dos muros, possibilitando a construção de laços sociais, na medida do possível.
Imputável ou inimputável?
No direito brasileiro, a noção de imputabilidade ou semi–imputabilidade, reflete o critério biopsicológico normativo, o que significa dizer que não é suficiente o agente padecer de alguma enfermidade mental – sendo a condutopatia (psicopatia, sociopatia entendemos como sinônimos), enquanto frieza de emoções e ausência de empatia, traços de personalidade e não doença mental – faz-se mister, demonstrar por meio de produção de prova pericial, que o transtorno afeta o caráter do réu. Atentemo-nos ao precedente:
(…) Reconhecimento da inimputabilidade. Impossibilidade. Critério biopsicológico normativo. Incidente de insanidade mental. Laudo pericial conclusivo que atesta a imputabilidade do acusado. Fundamentação concreta adotada pelo juiz a quo. Prequestionamento de violação do art. 5º, incisos LIV e LV, da CF, e art. 386, VI, do CPP. Recurso improvido. 1. Em tema de inimputabilidade (ou semi-imputabilidade), vigora o critério biopsicológico normativo. Assim, não basta simplesmente que o agente padeça de alguma enfermidade mental (critério biológico), faz-se mister, ainda, que exista prova (V. G. Perícia) de que este transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilícito do fato (requisito intelectual) ou de determinação segundo esse conhecimento (requisito volitivo) à época do fato, no momento da ação criminosa. (…). (TJES; Apl 0002876-18.2008.8.08.0011; Primeira Câmara Criminal; Relª Subst. Desª Rozenea Martins de Oliveira; Julg. 31/01/2018; DJES 16/02/2018)
Sendo assim, a psicopatia não isenta a capacidade do indivíduo entender o caráter ilícito de seus atos. Ainda que os psiquiatras que analisaram o caso de Francisco na oportunidade do julgamento de 1976, tenham considerado o acusado semi-imputável, pontuando que, por algum momento, houve um quadro dissociativo da realidade – tal como os psicóticos, como já vimos, o réu teve completa noção do que fez o tempo todo.
Nesse viés interpretativo, inúmeros juristas defendem que em acatamento ao princípio de proporcionalidade, segurança jurídica e mais meia dúzia de vetores interpretativos garantistas, a internação deveria observar o prazo máximo da pena abstratamente cominada, ou a máxima permitida em lei, 30/40 anos, entendimentos referendados pelas cortes de sobreposição.
Conforme tracejado, desdobram-se três problemáticas no caso concreto quando em paralelo ao ordenamento jurídico. Francisco Costa Rocha foi condenado à reclusão, e no Brasil, é vedado o apenamento perpétuo; não houve um quadro de aplicação sucessiva de medida de segurança, curso de ação inviável de acordo com a legislação matéria penal; a manutenção da custódia decorre de interdição cível, que não irradia feixes penais, mormente privativos de liberdade.
Na casuística telada, o Parquet utilizou-se como sustentáculo legal, além das disposições insertas no Código Civil de 2002, o Decreto nº. 24.559, de 03 de Julho de 1934, da Era Vargas, pelo qual se dispõe acerca da interdição de direitos concernentes às pessoas com problemas penais. Como cediço, a produção legiferante é dinâmica e reflete fatores sociais e históricos multifacetados. Nessa vertente, observa-se que a norma teve sua vigência inaugurada em cenário no qual a internação era a regra e não se verificava uma atenção sensível à saúde mental, num distanciamento entre direito e medicina, ao revés do que perquire em caráter primevo no ordenamento contemporâneo, e cuja aplicação atual mostra-se anacrônica. Os tempos são outros, há décadas o perfil encampado é o da desinternação e acompanhamento não segregatório, num melhor compasso com o texto constitucional.
Quem é ‘Chico Picadinho’?
Francisco Costa Rocha nasceu no dia 27 de abril de 1942 em Vila Velha, Espírito Santo. Filho de um poderoso exportador de café e sua amante, Dona Nancy, sempre muito enferma com problemas pulmonares, tão logo ele conheceu a rejeição, tendo que ir morar em um sítio com um casal de empregados que trabalhavam para o seu pai. Estes, também não demonstravam afeto pelo menino que, praticamente, ficava sozinho a maior parte do tempo. Suas maiores companhias eram os animais que ali habitavam.
Relatos de sua história contam que neste período, Chico demonstrava certo sadismo e prazer em torturar animais, principalmente enforcar gatos. Dizia ele que era para verificar se eles tinham sete vidas. Ainda na infância, quando começara seus estudos em uma escola católica, teria presenciado abuso sexual envolvendo um de seus colegas. Desde então, seu comportamento que já vinha numa ascendente em termos de desvio de conduta, foi ficando cada vez mais antissocial e distante afetuosamente. Reprovou no quarto ano, depois abandonou os estudos por completo.
Passados dois anos que Chico estava morando no sítio, Dona Nancy fora buscá-lo. Ele mal reconhecia a figura materna que estava ali diante de seus olhos, e a partir deste momento, o garoto vivenciaria as instabilidades dos futuros relacionamentos de sua mãe com diversos homens, presenciando as mais diversas situações, inclusive o próprio coito.
Na adolescência, ele passou a integrar um grupo denominado “Senta pua”, onde sofreu constantes abusos sexuais. Chico conhecia muito bem a prática sexual quando observava sua própria mãe e seus parceiros; vivência que ganhava ainda mais força, agora envolvendo sexo com violência, além de experiências homossexuais.
Francisco sempre alimentava o desejo de entrar para a Escola Naval, sem êxito, acabou se alistando na Aeronáutica quando completou 18 anos. Mais tarde ainda tentou entrar para a academia da Polícia Militar, mas não obteve sucesso. Chico, segundo relatos, tinha problemas disciplinares e era avesso ao cumprimento de regras, horários, normas e ordens.
Quando adulto, se deu muito bem em ser corretor de imóveis, justamente pela liberdade de horários e flexibilidade de agenda. Nestes moldes, inaugurava-se uma vida regada a bares, casas noturnas, prazeres sexuais a qualquer hora do dia, consumo exacerbado de bebidas alcoólicas, tabaco e outras drogas diversas. Curiosamente, Francisco tinha um gosto sofisticado pelas artes, principalmente música e literatura, era bom de lábia e até certo ponto, uma pessoa culta.
Chico passou a ser assíduo frequentador da famosa ‘Boca do lixo’, zona conhecida pela prostituição e uso de drogas, desde os primórdios do século vinte. Francisco se relacionava muito bem, porém sem assumir compromisso com mulheres e homens influentes nos setores culturais e sociais da boemia, preferia apenas cultivar encontros casuais. Expressava uma ótima articulação comunicativa e aproveitava os benefícios advindos de favores sexuais. Para ele, gozar a vida neste caminhar era bastante confortável e natural.
Interessante refletir que quando Chico praticou aqueles atos anteriormente citamos no início deste texto, ele não saia ‘à caça’ de possíveis vítimas como comumente seriais killers planejariam e agiriam. Seja com intenções de poder, dominação, desejos puramente sexuais, perversão, diversão e controle. Tudo parecia ter acontecido no rompante do momento.
Nos autos do processo, temos as versões de que Chico via na vítima Margareth Suída semelhanças com a vida de Dona Nancy, na medida em que ambas se relacionavam com homens por dinheiro ou status. Numa outra versão, Margareth teria caçoado de Chico porque ele queria fazer sexo anal com ela, incitando que aquele ato não era coisa de homem. Chico, então, num ato de total impulsividade teria asfixiado a vítima e, para se ver livre do corpo e facilitar a ocultação, esquartejou-o.
Cabe lembrar, que o assassino quase conseguiu uma terceira vítima. Revoltado por descobrir no momento do ato sexual que ela estava grávida – para ele soava como algo inaceitável, impuro – depois de asfixiá-la, a feriu na região abdominal, porém a mulher ainda estava viva, e na sequência, a moça conseguiu se evadir do local.
Ao ser perguntado sobre seus crimes, Chico em momento algum exprime arrependimento, remorso, compaixão pelas vítimas e o fim que havia dado aos seus corpos. Aliás, durante todos estes anos, ele concedeu muitas entrevistas, relatos, contou sua história, participou de reportagens e contribuiu com a escrita de livros. Sempre falou de maneira confortável, muito bem articulada. É um leitor assíduo de grandes autores da literatura, filosofia e, até mesmo, a psicanálise freudiana.
Em nenhum dos crimes de Chico, parece ser o caso de perda momentânea da consciência. Relembrando que, durante o julgamento pelo assassinato de Ângela, chegou-se à conclusão de que Chico tinha uma personalidade psicopática. Houve ainda, a possibilidade de colocar como pano de fundo de suas atitudes, a embriaguez, no entanto, não se desdobra um caso de embriaguez patológica clinicamente demonstrada.
Vimos que desde a infância, ele apresentava sinais de um padrão de comportamento repetitivo, mórbido, intolerante ao controle, à ordem, ao compromisso, seja com pessoas, seja com trabalhos que envolviam o espírito de equipe, companheirismo, fidelidade, responsabilidade, altruísmo e empatia, como é o caso, por exemplo, da Academia de Polícia.
Geralmente, porém não uma regra, psicopatas não se encaixam em perfis corporativos ou tem emprego fixo. São mais nômades, libertinos, descompromissados; não mantém por muito tempo estabilidade em seus empregos e relacionamentos afetivos. Claro que há sempre exceções quanto às subjetividades. Veja o caso, por exemplo, do famoso serial killer BTK (Bind, Kill, Torture), Dennis L. Rader, que levava uma vida familiar calma, era casado, tinha filhos e um emprego estável, mantendo esta máscara de homem cordial, cidadão exemplar e ainda, religioso, por muitos anos, dando substrato à sua sobrevivência social. Outro caso, “o palhaço assassino”, John Wayne Gacy, empresário, casado e pai de família. Por longos anos matava suas vítimas e as enterrava em sua própria casa, sem também nunca ter despertado suspeitas.
Dentro do desenvolvimento psicossexual de Francisco, como já vimos, ele nasceu de uma relação extraconjugal e foi rejeitado pelo seu pai. Apesar de ter sido criado pela mãe, teve que lidar com um período de afastamento de aproximadamente dois anos, quando ela adoeceu. Ao retornar a morar com ela, ainda vivenciou de perto diversas situações sexuais desviantes. Também durante a infância, Chico apresentou comportamento sádico em relação a animais, asfixiando gatos por diversão.
Todo este rol de comportamentos nem sempre é um padrão para um futuro psicopata homicida. Existem traços formativos desde a tenra idade, porém isso pode cessar. É importante considerar o acompanhamento de profissionais da saúde mental logo nos primeiros sinais de comportamento apático, diversão mórbida, crueldade com irmãos mais novos e animais, mentiras, dissimulações, interesse sexual intrusivo, enurese noturna por longos anos, terror noturno, piromania.
Em termos psíquicos, podemos dizer que psicopatas são fronteiriços, ou seja, transitam entre neurose e psicose, pois sua conduta (condutopatia) e motivações parecem fugir de certa normalidade psíquica, porém, ao mesmo tempo, não alucinam. Também podemos colocá-los enquanto sujeitos perversos, pois além das questões sexuais desviantes, estes “fazem uso” hostil e abjeto do outro, quase que anulando o indivíduo que, para eles, representam coisas descartáveis, apenas para gozo.
A perversão, junto da neurose e da psicose, é uma das formas de organização psíquica, porém não é exclusiva da psicopatia. Dizemos que todo sujeito recalca nas profundezas de seu inconsciente, suas obscuridades, seus conteúdos mais inaceitáveis e repulsivos que a consciência não suportaria. Podemos dizer que no sujeito perverso, suas fantasias mais desprezíveis ganham força e perpassem mais facilmente as barreiras morais do superego (instância do juízo), culminando em práticas destrutivas e altamente condenáveis pela sociedade. Enquanto uns apenas imaginam, outros passam ao ato.
Vimos o quanto Chico em sua juventude, antes de se tornar um assassino real, fez pequenos “ensaios” asfixiando gatos. Nem sempre a prática de maus-tratos ganha força e requinte ao longo do tempo, porém no caso aqui, exprime significativa proximidade com o modo de agir de Chico quando asfixiava suas vítimas.
Considerar Francisco Costa Rocha um psicopata é interessante em termos jurídicos, pois isto culminou em medidas cabíveis para sua condenação. Contudo, falar do ser humano apelidado de “Chico Picadinho”, suas atitudes e escolhas é, no mínimo, intrigante, pois ele em nenhum momento planejou seus assassinatos e mais, quando perguntado certa vez na prisão, se caso fosse solto, cometeria novamente os atos, ele respondeu algo do tipo, “talvez, provavelmente”, “Não posso afirmar que não faria”. Mais uma vez estando bem à vontade discorrendo sobre seus crimes que chocaram tanto à época, e diríamos, até os dias de hoje. Ele mesmo nunca ficou estarrecido, nem surpreso, nem transtornado e, de certa forma, é possível afirmar que sentia gozo com tudo aquilo que se propôs a fazer e, provavelmente, continuaria a repetir a dose. As autoridades, talvez, sabiamente, não arriscaram “pagar para ver”.
A questão que oportunamente se coloca é: será que matar aquelas mulheres significava uma espécie de catarse particular, muito circunscrita, delimitada de tudo que Chico havia vivido e sentido? Raiva, abandono, ressentimento, rancor, rejeição, ódio, vingança…
É possível cogitarmos tal ressonância.
Afinal, que conteúdos psíquicos habitavam em sua mente? Por que Chico não conseguia se controlar durante a relação sexual e matava suas amantes? Será que o ato final de esquartejamento era mesmo para se desfazer dos restos mortais ou aquilo ressoava algum conteúdo manifesto perturbador de seu inconsciente?
Vejamos que mesmo após se deparar com a primeira cena pós esquartejamento, sanguinolenta e confusa, ainda assim Chico repete exatamente o mesmo feito com sua segunda vítima. Não cogitou em momento algum se livrar do cadáver por um caminho mais rápido e menos trabalhoso. Escolheu ficar mais de três horas retalhando o corpo. Até que se cansou e dormiu pesadamente, para somente depois de seu “merecido descanso”, acordou e saiu da cena do crime.
Seria a repetição do desfecho sua maior fonte de gozo? Ou um macabro ato falho?
Realmente, Chico Picadinho é uma figura incógnita e repleta de controvérsias.
Considerações finais
Em tom de epílogo, no ano de 1995 Francisco foi transferido da Penitenciária do Estado para a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Em 1998, cumprida sua pena, foi deferida uma liminar na ação de interdição em trâmite no juízo cível, inabilitando sua libertação, pela fundamentação alhures exposta. Em março de 2017, foi proferida decisão pela magistrada titular da Vara de Execuções Penais da comarca de Taubaté, Sueli de Oliveira Zeraik Armani, determinado a restituição gradual da liberdade do interditado, entendendo pela arbitrariedade da prisão naqueles termos, com aquiescência do MP. Todavia, a segunda instância fez coro de vozes com o argumento de que o apenado deveria ser mantido na Casa de Custódia à disposição da justiça cível para tratamento medicamentoso e psicoterápico, e por decisão do desembargador Ricardo Dip, da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidiu-se pela manutenção da custódia.
Apesar do incidente instaurado nos autos da interdição, tombados sob o nº 0005327-65.1998.8.26.0625 – Interdição – 04/03/2020 do TJSP, pelo qual se objetivava a desinstitucionalização do interditado, o juízo cognoscente não o acolheu, constando da decisão recente no andamento processual, segundo a qual:
“(…) o caso em tela, reconhece-se a situação excepcionalíssima de alguém que, efetivamente, já teve o sacrifício de sua liberdade por prazo superior ao que estabelecido no Estatuto Penal (em seu artigo 75), isto é, 30 (trinta) anos, de forma ininterrupta, ainda que tenha havido recente alteração legislativa, por crimes bárbaros que cometeu e foi condenado com trânsito em julgado. E, mais, que o transcurso do prazo da sanção penal/corporal encerrou-se no ano de 1998, mais especificamente, em 21.11.1998. O que suscitado (instauração para procedimento de desinstitucionalização) passa necessariamente por predicado inexistente no incapaz Francisco Costa Rocha dado que, conforme inúmeros documentos/laudos médicos constantes dos autos, “tem personalidade congênita psicopática, que se manifestou cedo em sua vida, e que não suscetível a nenhuma espécie de influência pela terapêutica, tendo alto índice de periculosidade latente” (fls. 51 destes autos, peritos Drs. Wagner Farid Gattaz e Antonio José Eça, em data de 11.1.1978). (…) Depreende-se, portanto, salvo melhor juízo, sob o ponto de vista médico legal, que sua capacidade de auto gerir-se e à seus bens, esteja de forma absoluta, prejudicada.” mantida a literalidade estrita da transcrição. É de outro laudo constante dos autos: “…Portanto, no caso de Francisco, temos a seguinte associação de fatores: prognóstico sombrio, em termos de reversão dos quadros clínicos, pelas próprias características destes; inexistência de terapêutica eficaz conhecida e baixíssima aderência às terapias propostas, mesmo que de pouca eficácia comprovada. Ora, estes fatores tornam bastante grande a possibilidade de reincidência, a qual, por sinal, já ocorreu quando do abrandamento da primeira pena. Não restando dúvidas, como é o caso, quando ao nexo causal entre os quadros clínicos apresentados e os crimes cometidos, é óbvia a conclusão de que o examinado não apresenta condições de convívio fora do ambiente de custódia no qual já se encontra. Livre na sociedade, este indivíduo é perigoso para si próprio, por incapacidade de gerir a sua vida e também para os outros, pelo descontrole intenso que episodicamente apresenta dos seus impulsos agressivos e sexuais perigosos. (…)”
No ano de encerramento de sua pena, outro caso de forte repercussão social e destaque na crônica Policial brasileira ressurgia ao lume popular, com a liberação de João Pereira da Costa o “Bandido da Luz Vermelha”, após trinta anos de prisão. Visivelmente transtornado, fazia uso de medicação psiquiátrica, tratamento que não foi dispensado em momento ulterior; ausência de atenção mínima que culminou em sua morte por um pescador, agindo em legítima defesa, alguns meses após sua liberdade. Nesse caso especificamente, vislumbra-se todo um quadro de pertinência de interdição com posterior acompanhamento externo. Repise-se, na situação em tela, ainda que as conclusões psiquiátricas repousem em ominoso prognóstico de reincidência, cumulado com a inexistência de plano terapêutico eficaz para o estado psicopático, o cárcere advindo de interdição cível apresenta-se como um quadro, reitera-se, totalmente anômalo e não legalmente resguardado.
Inclusive, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n º 13.146/2015 – que irradiou feixes sobre o quadro das interdições, reconheceu-se a total capacidade dos então judicialmente declarados relativamente capazes. Nesse passo, por todos os prismas pelos quais se analisa o caso Francisco Costa Rocha, não se verifica substrato jurídico à manutenção da prisão. Decerto, a deficiente e desbragada elaboração legislativa, sem a preocupação de eficácia num plano abstrato e abrangente para sua aplicação concreta, resulta em situações não ortodoxas, no que se convencionou rotular informalmente de “gambiarra jurídica”.
Inquestionável a existência de uma lacuna legal para o tratamento jurídico do psicopata, relegando situações casuísticas a “soluções” também pragmáticas, ou nem tanto, pois, não raro, se invectiva contra princípios fundamentais como a segurança jurídica, lastro inseparável do molde garantista da Constituição Federal.
Nesse meio tempo, Francisco Costa Rocha, “Chico Picadinho”, permanece no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico “Doutor Arnaldo Amado Ferreira”, denominação do Centro de Detenção e Custódia de Taubaté, desde o ano de 2002, lugar que recebeu a alcunha pretérita de “Fábrica de Monstros” e “Berço/Origem do PCC – Primeiro Comando da Capital”. Talvez, uma inovação legislativa concebida em cotejo harmônico às diretrizes de saúde mental delineie uma opção, no entanto, no atual cenário, o feixe legiferante extenso no Brasil ainda não propôs uma solução adequada. Ao que tudo indica, Chico passará os anos que ainda lhe restam, isolado e longe da sociedade. À obviedade, não se contesta a noção de que a segregação de indivíduos de alta periculosidade, medicamente aferida, seja uma realidade que destoe da segurança pública, mas uma norma bem elaborada, melhor servirá tanto ao apenado, como à sociedade de forma geral. Este é o verdadeiro espírito das leis.
Recentemente, o caso que já apresentava peculiaridades que o elevaram a objeto de estudo nas mais variadas vertentes, apresentou novo revés. Desde o ano de 2023, existe decisão do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, determinando a desativação dos hospitais de custódia até maio de 2024, unidades que atuam como hospital e tratamento psiquiátrico, distribuídas num total de vinte e oito no país, sendo três no estado do São Paulo. A Unidade de Taubaté, onde se encontra Francisco, conta atualmente com 249 presos, para uma capacidade de 404. A questão que vem se desdobrando como de sensível relevo para a administração da justiça e da sociedade em geral, seria a destinação dos internos, que, em tese, deveriam ser encaminhados a nosocômios ou instituições congêneres que atendessem ao quadro clínico de cada paciente.
A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), manifesta diálogo com os órgãos de saúde e de justiça a fim de levar a efeito a decisão do CNJ, pois, ainda que a resolução do CNJ seja emanada do Poder Judiciário e a Secretaria integre o Poder Executivo, esta deverá trabalhar a logística e cumprimento àquela decisão. Contudo, ainda não há data certa para o fechamento definitivo da Casa de Custódia, e diante da aparente impraticabilidade eficaz e imediata de tal curso de ação, remanescem as indagações, as quais ecoam sem resposta adequada.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
PALOMBA, G. A. Perícia na psiquiatria forense. 2016. São Paulo. Ed. Saraiva.
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ZIMERNAM, D. E. Fundamentos psicanalíticos. 199. São Paulo: Artmed.
TRINDADE. Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. Quarta edição revista, atualizada e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001
REPORTAGEM: Chamada de ‘fábrica de monstros’, Casa de Custódia de Taubaté vai fechar até 2024 Determinação do CNJ prevê o fechamento dos hospitais de custódia até maio de 2024. Por Xandu Alves. 03/09/2023. Acesso em 10/01/2024. Disponível em: https://sampi.net.br/ovale/noticias/2784797/cidades/2023/09/chamada-de-fabrica-de-monstros-casa-de-custodia-de-taubate-vai-fechar-ate-2024.
“O medo de ser infeliz é peso que atormenta” Aldous Huxley – Brave New World
Quando pensamos na ideia de felicidade, do latim felix – aquilo que é fecundo, na definição grega eudaimonia – decerto, inúmeras concepções nos vêm em mente. É sabido que a felicidade não é uma realidade constante, mas momentânea.
Na perspectiva platônica, seria Eros, ou seja, aquilo que não se tem, o que faz falta. Ora, inquestionável o fato de que o homem ser etnocentrista por natureza, muitas vezes narcisista, se mostrará contente face a obtenção de seus anseios materiais, afetivos, ou até mesmo metafísicos, quando na religião sente-se embalado pela certeza da guarda divina. Contudo, com a obtenção do objeto de desejo, cessaria o estado de contentamento?
Mais do que sermos movidos pelas vontades e quereres, somos antes de tudo, mobilizados pelo desejo. Este, sempre inconsciente e inalcançável. É como se fosse um motor, algo que constantemente precisa funcionar para que possamos seguir adiante. Sem desejo, o sujeito padece. Sem desejo, o sujeito deixa de existir, pensar, agir, refletir, transformar, enfim, viver.
No pensamento socrático, a felicidade seria alcançada pela virtuosidade e justiça na conduta empreendida pelo indivíduo. Isso seria ratificado por seu discípulo Platão, ao idealizar que a forma de contentamento pautada na felicidade, se vislumbraria pela efetividade das práticas de justiça e virtude – aqui não afastadas da ideia de satisfação pessoal – associadas ao pensamento ético, no campo privado e público, do que derivaria a grande ética e a pequena ética, ou etiqueta.
Lado outro, na lógica ética política de Aristóteles, divergentemente do professado por Immanuel Kant, se trabalharia com uma concepção mais básica de felicidade, utilitária, delineando preceitos fundamentais, que seriam coroados, por assim dizer, pela alma racional do ser pensante, que o elevaria a uma propinquidade ao divino.
Caminhando nessa linha de pensamento, deparamo-nos com a proposta inovadora no roteiro do mais recente filme do dinamarquês Thomas Vinterberg, ‘Druk – Mais uma Rodada’, estrelado pele parceiro de outra importante incursão fílmica retratada no drama ‘A Caça’, de 2012, Mads Mikkelsen.
Em Druk, observamos a história de quatro amigos, professores de diversas áreas do ensino médio (canto, história, psicologia, educação física) que há muito tempo vivenciam suas pedantes e enfadonhas rotinas diárias, distanciando-se cada dia mais da alegria de viver e de suas motivações primevas, tanto no viés profissional, como pessoal.
Casamentos irregulares, desempenho de tarefas laborais de forma autômata e indiferente, ausência de perspectivas, possíveis desejos rechaçados, permeiam suas existências. Servimo-nos do termo existência ao revés de vida, pois, num rompimento de sua realidade imposta (será?), eles decidem imprimir um tom de mudança, ainda que questionável, à sua deambulação social e pessoal.
A partir de um estudo trazido à baila por um dos personagens, que afirma a necessidade de o corpo humano suportar viver com um teor alcoólico de 0,05 mililitros para relaxar mais e, se possível, modificar seus olhares para o cotidiano maçante, os homens passam a beber diariamente.
Por uma premissa até mesmo simplória, seja em termos de proposta e potencial de escapismo, eles embarcam nessa ‘aventura’ pouco ortodoxa, mormente para a sociedade moralizante que os circunda, destacando-se, principalmente, nas falas proferidas pelo corpo administrativo e pedagógico do colégio onde lecionam, deixando bem claro aos funcionários que condutas ‘fora do padrão’ seriam severamente punidas. Que dirá se estas condutas forem dos próprios educadores. É justamente o que acompanhamos na jornada ‘alcoólica’ dos quatro amigos.
As atividades e ministrações etílicas, inicialmente, são milimetricamente calculadas e implementadas, a partir do calendário do projeto por eles concebido, no entanto, a busca por sentir mais efeitos que o álcool pode proporcionar como euforia num primeiro momento, depois relaxamento, prazer, sensação de entorpecimento, de ‘desligamento’ da realidade, de sentir-se permanentemente inebriado, durante o percurso, traz consequências não vislumbradas (ao menos, conscientemente relegadas), e contornos devastadores à experiência.
Apesar de comprovadamente melhorarem suas ações enquanto professores, por exemplo, tornando suas aulas mais dinâmicas, instigantes, provocativas, envolvendo mais os alunos e trazendo assuntos diferenciados, em contrapartida, o aumento gradativo das doses de bebidas alcoólicas e, consequentemente, da embriaguez, foi criando situações insustentáveis a longo prazo, inclusive comprometendo a convivência com as suas famílias.
A trilha pela satisfação e prazer contínuos como elementos elisivos aos pesares da realidade, em algum momento, é obliterada pela própria natureza insatisfeita do ser humano, fazendo com que o experimento antes moderado começasse a prejudicar a sobrevivência social.
Sob a ótica dos epicuristas, pela qual a busca pelo prazer seria empreendida de maneira moderada a fim de atingir um estado de tranquilidade que possibilitasse a dissociação do medo, poder-se-ia associar livremente os conceitos de tranquilidade/placidez e parcimônia na busca do prazer, forte vetor hedonista naquela construção filosófica. Trata-se na verdade, de uma libertação dos desejos na busca pelo prazer, contudo, não de forma desbragada ou irracional, mas de feitio metódico a ser aplicado em tal plano de ideias.
Desde os primórdios de nossa existência, os experimentos com plantas, raízes, diferentes elementos naturais são utilizados em preparações ‘mágicas’, xamanísticas, com o intuito de se alterar a maneira de ser e estar no mundo, de pensar sobre as coisas, de ampliar a mente, de se relacionar com o outro. É preciso introduzir substâncias estranhas ao organismo para que o liberte das amarras da civilização e da cultura. O desejo de ir mais além, de tocar o desconhecido sempre foi e continua sendo fascinante para nossa espécie.
Acompanhando o protagonista interpretado por Mads Mikkelsen, ele é o retrato de uma vida adulta entediante e sem emoções. A película parece nos apresentar pouco a pouco que se tornar um adulto responsável, pai (ou mãe) de família, pagante de impostos, pode ser algo nada interessante. Uma existência pautada apenas no cumprimento de tarefas, na ausência de motivações, na perda do brilho no olhar ao se deparar com algo novo e instigante, na falta de furor ou contentamento ao empreender uma nova atividade, ou seja, um existir ao estilo blasé.
Mikkelsen consegue transmitir em seus gestos e olhares, um ser desinteressado, apático e indiferente. E há momentos em que temos a sensação de que o personagem está prestes a implodir, a entregar-se de vez ao tédio de sua existência, onde nada mais importa.
Um adendo interessante, o ator, há quase duas décadas vem sobressaindo-se no cenário hollywoodiano, ao passo que protagonizou desde blockbusters como filmes da franquia 007, até a série Hannibal, baseada na obra do escritor estadunidense Thomas Harris, famosa por reviver o médico canibal Hannibal Lecter, lembrado pela hipnótica interpretação no cinema por Anthony Hopkins. Aliás, o velho continente, de forma relevada o cinema nórdico, é conhecido por ‘exportar’ talentos ao cenário global, a exemplo do ator fetiche do grande diretor sueco Ingmar Bergman, Max Von Sydow, que até mesmo deu vida ao Padre Merrin no icônico filme de terror, O Exorcista, em 1973.
O resultado da película de Vintemberg, novamente desenha a esperança de que o cinema de autor dissociado do imposição comercial e de forte raiz intimista, ainda respira em meio à indústria, que ao mesmo tempo projeta a publicidade astronômica atrelada às super produções milionárias. Inclusive, foi ele um dos signatários, junto a Lars Von Trier, do manifesto/movimento denominado Dogma 95.
Por este primado, com regras expressas e pré-estabelecidas, instrumentalizado no chamado ‘Voto de Castidade’, propuseram um romper de amarras com o cinema convencional por meio de obras experimentais, de forte inspiração na Nouvelle Vague francesa em flerte direto aos ideais de François Truffaut, tal como explicitados em seu ensaio – “Une certaine tendance du cinéma français” (Uma certa tendência do cinema francês), para a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma em 1954.
O diferencial intentado e observado ainda que de forma não plenamente fiel nas produções dinamarquesas subsequentes, repousa justamente na vereda contínua pela experimentação, num dar de ombros ao quesito comercial de muitas produções que se mantém refém do gosto e tendência do público. Esse aspecto de pronunciada inovação, ao mesmo tempo que de feições clássicas, já era identificado nas realizações daquele país, como no cult moderno ‘A Festa de Babette’, lançado em 1987.
Vemos que a jornada embotada pelo álcool e autodescobertas – e tragédias – deflagrada pelos quatro amigos, personagens centrais do enredo foi bem recebido por público e crítica amealhando o Oscar de melhor filme estrangeiro na premiação de 2021.
Na oportunidade, o diretor relembrou que o escopo da película era uma celebração à vida, mencionando a perda da filha, apenas quatro dias antes do início das filmagens: “Queríamos fazer um filme que celebrasse a vida, e quatro dias antes das filmagens, o impossível aconteceu. Um acidente na rodovia levou minha filha. Alguém olhando no telefone. Nós sentimos falta e eu a amo. Desculpem. Dois meses antes de filmarmos este filme, e dois meses antes de ela morrer, ela estava na África, leu o roteiro e brilhava de entusiasmo”.
De volta à narrativa, em um outro vetor de análise, é possível examinar a felicidade como a ausência, ou a negação do que faz mal, ou seja, a infelicidade, cuja investigação, numa meditação contrário sensu, recairia no mesmo esforço intelectivo de reflexão o qual ora se propõe. Neste campo, surge outra indagação: Qual o momento em que de fato é possível se identificar a felicidade? Como ela ocorreu? Quanto tempo durou e se podemos aferi-la concomitantemente à sua fruição; ou ainda, quando cessou de existir e por quê?
Existe um ápice episódico de satisfação, pois como já foi dito, a felicidade não é constante, mas uma construção de momentos, daí a relevância de se valorizar cada acontecimento como se fosse único – e de fato, o é – momentos os quais comporão a felicidade individual. Em alguns trechos do filme, o protagonista nos revela sua antiga paixão pela dança, ainda muito latente, porém soterrada pelos anos. Ele não só dançava belissimamente, como ensinava enquanto professor há anos.
Nos minutos finais da película, dança livremente numa praça em comemoração à formatura de seus alunos, sem acanhamento, num retorno à juventude, aos sonhos e brincadeiras que se perderam, à graça, à leveza. Não é porque nos tornamos adultos ou envelhecemos que a vida precisa ser cinza e que não é mais permitido gracejos, nem rir de si mesmo.
Talvez Druk nos aponte que a felicidade no final das contas está nas coisas simples da vida. E mais, nem sempre ter o coração batendo e respirar significa estar vivo. Somos muito mais que sinais vitais. Nos belos versos da música dos Titãs: “É preciso saber viver.”
Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a imagética do medo
CINEMA EM TELA
Marcus Hemerly
Artigo: ‘Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a
imagética do medo’
“…Tudo que aos olhos se interpõe, É um sonho dentro de um sonho…”
Edgar Allan Poe
As cidades, assim como toda urbe, são emaranhados de vivências, aspectos únicos, subjetivos, e ao mesmo tempo coletivos de uma cultura organizacional que, sincronicamente, erige e desconstrói. Indivíduos em seus recortes pessoais são retratados em carne e osso, bem como em celuloide; uma matéria-prima extremamente rica e mutante, e, até mesmo, poder-se-ia asseverar, metamorfosicamente ambulante, para citar o ‘maluco beleza’.
A partir de cores, elucubrações anímicas, relatos e sentimentos, as metrópoles, de forma global e alinhando várias tessituras, desenham contornos não apenas de edificações materiais, mas também a solidez de trilhas individuais, as quais, ulterior e finalisticamente, compõem o coletivo, ao mesmo tempo anônimo e vivaz, cosmopolita e em cotejo a significação emotiva de seus componentes.
O mesmo pode ser dito acerca dos apartamentos, prédios, casas, estruturas que encapsulam a célula subjetiva como peça coadjuvante da alegoria principal. Nesse espaço, as habitações coletivas são recorrentemente tratadas como pano de fundo nas representações artísticas, mormente pela literatura e cinema, ou numa junção adaptativa de ambos.
A chamada Trilogia dos Apartamentos, do diretor polonês Roman Polanski, trabalha esses aspectos de forma robusta e sofisticada ao amalgamar o drama psicológico humano às feições do sobrenatural, ora de forma velada, ora de maneira (quase) explícita.
A proposição temática que se envereda é deflagrada pelo título ‘Repulsa ao sexo’, (Repulsion,1965), pelo qual o reduzido número de personagens canaliza o suspense na grande performance de Catherine Deneuve, que, de forma progressiva, vai cruzando os umbrais da insânia – ou assim parece ao espectador – entregue a suas divagações oníricas.
Na trama, escrita por Polanski e Gérard Brach, acompanhamos Carole Ledoux, mulher retraída e atormentada que, deixada sozinha no apartamento que divide com a irmã, inicia uma escalada paranoica permeada por pesadelos e alucinações no momento em que a personagem entra em contato com os homens e, naquele espaço, confrontada por seus desejos a ela canalizados.
Vislumbra-se uma abordagem indireta sobre transtorno de aversão sexual, representado pela rejeição patológica e persistente a todo tipo de contato genital. O estado mental de Carol e sua deterioração é intensificada e, talvez, adornada, por sua reclusão nas dependências do apartamento, que pode ser até mesmo interpretado como um catalisador da figura masculina em seu inconsciente, num misto de terror psicológico e suspense.
À sombra desse tópico, interessante diferenciar do ponto de vista analítico, as definições de suspense e horror. Ainda que usualmente aludidos como sinônimos, o terror se assimila de forma premente ao medo e angústia não aparente, psicológica. Lado outro, o horror exsurge de contornos mais explícitos, que causam asco e repulsa. Ao mesmo tempo em que um denota o lado de estado mental, o outro suscita a surpresa e efeito mais gráfico e visual.
No título ‘O bebê de Rosemary’, (Rosemary´s Baby, 1967), seu grande sucesso em terras estadunidenses, adaptado do romance homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde ocorreu o assassinato de John Lennon. Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo. O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount.
Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma obra rasa como as que inundavam os cinemas no período.
Rosemary, a partir de pontos distribuídos no decorrer da película, suspeita de que os engajamentos satânicos de seus confrontantes objetivam utilizar seu rebento iminente, em oferenda ao diabo. Seria realmente um conciliábulo de bruxos em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial? Mais perguntas são entrecortadas por induções, do que respostas são ofertadas durante as duas horas de duração.
Nos anos 70, após a realização de outro grande sucesso de público e crítica, o noir ‘Chinatown’, estrelado por Jack Nicholson e roteirizado pelo lendário Robert Towne, o diretor teria problemas com a justiça americana, fazendo com que tivesse que fugir do país para evadir-se a um processo criminal, devido ao envolvimento sexual com uma menor de idade.
Polanski já havia também assimilado holofotes por outro drama pessoal ocorrido em 1969, com o assassinato de sua então esposa grávida, a atriz Sharon Tate, pelos discípulos de Charles Manson. A posterior produção do realizador seria voltada ao velho continente, retornando ao ponto de partida de sua carreira, no entanto, não em tom de retrocesso.
O filme ‘O inquilino’, (Le Locataire/The Tenant, 1976), novamente explorando a multitude de relações humanas em um prédio de apartamentos, alinha a história do pacato Trelkovsky, interpretado pelo próprio Polanski, que a despeito de sua atuação em expressões contínuas e poucos versáteis, traz credibilidade ao confuso e apático personagem que acredita-se vítima de uma conspiração pelos demais moradores do prédio, de modo similar a anterior locatária de seu apartamento, que teria se atirado pela janela.
Aqui, tal como amoldado em Rosemary e Repulsa, a carga de tensão é construída não pelo que é mostrado, mas repousa naquilo que é presumido ou deduzido a partir de sugestões que podem ou não ser entendidas como tal, lastreando gradualmente o sustentáculo ao clímax derradeiro.
A obsessão do Inquilino Trelkovsky pela mulher, ocupante anterior de sua escabrosa morada, e a certeza da conspiração contra sua higidez, repise-se, física e mental, culmina em numa alucinada entoação acusatória próximo ao final do filme: “Eles querem me transformar em Simone Choule!”.
Esses aspectos desvelam um tecido construído de maneira mais minuciosa e robusta por elementos contínuos inseridos no roteiro. Planos sequência a partir da visão dos personagens e suas fantasias baseadas em elementos empíricos ou imaginários, constroem uma narrativa extremamente eficaz em todos os filmes aqui citados, que guardam peculiaridades no aspecto de construção da tensão e medo incutido ou projetado pelos protagonistas destes distintos city films.
Matizes de ambientes, bem como alternância psicológica dos personagens ajudam a compor as diversas camadas que esmeram a densidade dos roteiros e despertam a crescente inquietude e desconforto àquele que os assiste.
É sabido que, quando se fala em arte (ou se sente), a noção de relativismo histórico antropológico exsurge de maneira bem forte, seja num olhar individual ou amplificado, pois, assim como a criação de uma obra pelo artista, sua interpretação inexoravelmente indica um troca. Uma miríade, na verdade. Congruentes ou incongruentes, similares ou de harmonia flagrantemente denegada, tal é a complexidade do ser humano sensível, que reage de maneiras distintas a eventos em comum. E, a partir desta visão multifacetada, a cada sessão, novas interpretações e emoções são detectadas, como impressões digitais ou pegadas na areia, antes encobertas, para serem detectadas por um novo olhar apreciativo.
A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção
CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
Artigo
‘A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção’
Para os amantes da sétima arte, em termos de premiação, o Oscar tem sido popular e, até mesmo, obliterando o festival de Cannes, o mais importante do cinema Mundial. Aliás, se de um lado o Brasil há décadas mostra-se ansioso pela estatueta dourada, muitas pessoas desconhecem que nossos artistas já elevaram o nome do país na França, com o filme “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte, em 1962.
Importante atentar que alguns concursos ou festivais revestem-se de tom mais comercial, de modo que, ganhar um troféu no momento errado, pode prejudicar, em detrimento de edificar carreiras.
Popularmente é dito que a vida é composta de ciclos, tal se identifica no cinema, que frequentemente é criado – de forma não salutar – por hypes ou modismos, assim como a própria evolução sociológica.
Por óbvio, a arte caminha em paralelo à modificação e evolução (ou retrocesso) cultural. Marisa Tomei foi relegada ao ostracismo publicitário e produtivo após não aceitar papéis interessantes ao receber o Oscar por sua atuação em Meu Primo Vinny, de 1993, não correspondente à expectativa de público e crítica após a recepção dos holofotes que a estatueta direciona em momento imediato àqueles que a seguram, e cobiçam.
Lado outro, há o momento exato em ser o escolhido para discursar na premiação, quando uma carreira mais solidificada em termos de seleção e projetos lastreiam um “galgar de degraus” oportuno rumo ao firmamento artístico. Relacionando tais percepções ao ator Brendan Fraser, vislumbra-se que a mera indicação já se revelaria fonte de ressurreição e revitalização à sua carreira, após problemas pessoais que refletiram nos convites a papéis de revelo, depois de ser considerado galã pop dos anos 90.
Contudo, ao entregar uma performance diferenciada, a partir de um material que sabidamente conquista o olhar dos julgadores, culminando na seleção ao prêmio de melhor ator, uma lufada de ar fresco é direcionado não apenas ao histórico do profissional, mas sinalizando um novo olhar e tendência à cerimônia.
Em 2023, além de Fraser, tivemos a oportunidade de testemunhar a seleção de atores com carreiras menos pronunciadas, ou há tempos relegadas à coadjuvação, como é o caso de Jamie Lee Curtis, diva dos amantes de horror por sua participação no clássico “Halloween” de 1979.
De fato, o tempo muda os filmes e a forma pelas quais os vemos, e de maneira similar, seus personagens e personificações. No longa A Baleia (2022), acompanhamos um professor de literatura, Charlie, praticamente entregue à obesidade mórbida que o aflige há alguns anos, desde que o companheiro, seu ex-aluno, tirou a própria vida.
Além de sentir-se constantemente culpado pela tragédia, ainda precisa lidar com outros pesos em sua consciência: o do próprio corpo e o afastamento de sua filha Ellie aos oito anos de idade, quando Charlie decide abandonar a família para viver com o namorado.
A trama nos provoca nuances de emoções o tempo todo. Consegue misturar o belo e o repugnante durante as cenas. Ora é possível sentir empatia e carinho por Charlie, pois ele é doce, amável, gentil. Ora raiva, indignação e revolta por sua resistência em buscar melhorar sua maneira de encarar a vida, de ter mais amor próprio e olhar para si com apreço.
Ao deparar-se com aquele enorme homem esparramado em seu sofá, com dificuldades para andar, fazer gestos simples como alcançar algum objeto mais longe, locomover-se, respirar, que engasga quando chora ou ri, o sentimento que parece surgir ao presenciar esta cena cotidiana é de um imenso incômodo, mal-estar, estranhamento.
Ao mesmo tempo que Charlie, por um lado, como professor de literatura, exprime sensibilidade com os ensaios escritos pelos seus alunos, ajuda-os, orienta, faz apontamentos, é dedicado, lê com eles passagens dramáticas, poéticas, agarra-se a um ensaio em especial, que mais à frente do filme, trata-se de uma produção feita pela sua filha; por outro lado, ele demonstra aspereza e teimosia em aceitar ajuda de sua amiga enfermeira que suplica a ele que vá ao hospital, pois seu estado de saúde é crítico. Prefere entregar-se a comilança desenfreada deixando o ambiente sujo, fétido, desorganizado. Mal consegue assear-se, seu apartamento é sempre escuro e sufocante.
Na vida de Charlie parece não haver espaço para luz, esperança ou salvação. Ele apenas sobrevive e passa os dias relembrando o passado, comendo e evitando as pessoas. Apesar de lecionar na modalidade on-line, ou seja, mesmo tendo uma tela que o separa fisicamente de seus alunos, ele desliga a câmera para não revelar sua condição.
Tentativas de ajudá-lo vão surgindo ao longo da narrativa, além da amiga enfermeira que o visita diariamente, há a presença regular de um rapaz que busca convertê-lo aos ensinamentos bíblicos e de um entregador de pizza, que todos os dias deixava duas pizzas grandes na porta de Charlie sem nunca poder vê-lo. O garoto tenta se aproximar, fazer contato, porém sem sucesso. É orientado pelo homem a pegar o dinheiro na caixa de correios e sair.
Sua filha Ellie expressa tempestuosa revolta contra o professor, pois carrega um sentimento de rejeição torturante ao ser trocada pelo amante de Charlie logo tão criança. Cresceu sem nunca sentir a presença de um pai. Insulta-o, agride-o com palavras, deixa bem claro que, agora adolescente, não precisa mais dele, afinal Charlie não consegue nem ao menos ficar em pé sem a ajuda do andador. Numa das cenas mais angustiantes do filme, Ellie com ódio, desafio o pai a ir até seu encontro, incita-o, provoca-o com xingamentos, zombaria. Ele até tenta, mas desaba logo em seguida, quebrando os móveis ao seu redor.
Entre idas e vindas de pessoas que vão até sua casa, sua amiga cuidadora, a ex-esposa, o rapaz da igreja, o entregador de pizza, sua filha, Charlie segue os dias entre conflitos diários, tentativas de reaproximação com Ellie, momentos de conversa e choro com a única amizade que preserva, graças à insistência por parte dela que ainda nutre esperanças de que ele se encaminhe para o hospital.
Mesmo a enfermeira dizendo que seus dias estavam contados, que ele definitivamente viria a óbito até o final da semana, Charlie segue mantendo seu propósito: aguentar até onde puder, mesmo sentindo terríveis dores do peito, agonizando aos poucos, buscando o ar que quase não entra mais em seus pulmões, até que tudo se acabe de vez.
Na película, Fraser teve se ganhar peso bem como passar por um longo e dedicado processo de maquiagem, que, como se sabe, é um dos caminhos de agraciamento da Academia, posto que alterações físicas significativas sempre são encaradas de forma receptiva. Lembramos, recentemente, o sucesso da atriz Nicole Kidman, ao usar um nariz artificial para interpretar a escritora britânica Virgínia Wolf, em “As horas” de 2002.
Voltando ainda o olhar ao passado, atuações não menos intensas são exemplificados por Robert De Niro em “Touro Indomável”, do lendário Martin Scorsese, além de John Hurt, ao encarnar o famoso e angustiado Joseph Merrick, em “O Homem Elefante”. No caso em tela, a despeito do impacto visual causado pelo aspecto do personagem, a partir do qual seus tormentos são presumíveis, a carga emotiva manifestada por seu intérprete causa um diálogo emotivo com o espectador, fazendo com que aqueles sofrimentos deduzidos, irrompam de forma sentida.
Se, por um prisma, a subjetividade do indivíduo, não raro, é encoberta pelo acesso que este permite ao exterior, a atuação, muitas vezes catalisadora de incômodo, conforme adiantado, produz, ao revés, a transferência de emoções íntimas. Tal é a força da trama e a esmerada forma de sua transposição à tela.
O último ato do longa nos deixa com esta imagem: Ellie, à porta, lendo para ele seu ensaio que tanto Charlie admirava (falava da história de Moby Dick), enquanto reúne todas as forças de seu pesado corpo para levantar do sofá sem o apoio do andador, na tentativa de caminhar até ela. Uma cena belíssima de redenção em meio ao caos do ambiente e a expressão de dor de Charlie.
Dor em todos os sentidos: de seu imenso corpo que impede os movimentos e tranca a respiração e dos sentimentos devastadores que o acompanharam nesse tempo de reclusão. Assim como na obra de Herman Melville, a dor e a obsessão do anti-herói rumo à vingança contra a baleia cachalote, materializada pelo capitão Ahab, a obsessão em “A Baleia”, é traduzida na força da superação e resiliência.
A obra do diretor Darren Aronofsky já flertava com o drama humano, insanidade, feições existenciais e complexidade dos caminhos psíquicos, a partir de títulos consagrados como “Réquiem For a Dream” e “Cisne Negro”. Contudo, a sensibilidade no tratamento de questões inquietantes sempre são renovadas nas mãos de habilidosos artesãos.
A aura teatral do material original, trata-se do roteiro adaptado da peça de Samuel D. Hunter, é preservado, se não, deliberadamente intentado, ao passo de quase se poder antever o ovacionamento derradeiro pela plateia. Novamente, solidifica-se a ideia de que arte e a indústria comercial fílmica podem ser tracejados em harmonia.
Reitera-se em tom de conclusão, que a narrativa do filme consegue ser delicada e perturbadora. Mergulhamos na aflição de Charlie e sofremos com ele na tentativa fracassada de libertá-lo daquele corpo que o aprisiona. Ao se deixar levar pela doença, ele encerra a sua história. Talvez assim, possa sentir plenitude ao menos uma vez: a da leveza de sua alma.
Filme Demência – Da tediante certeza à liberdade tentadora
COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem: Artigo ‘Filme Demência – Da tediante certeza à liberdade tentadora’
“Na vida, a coisa inútil, é carga a desprezar; Só o que o instante oferece é bem aproveitável.”
Fausto – Goethe
A conhecida história de Fausto derivou inúmeras adaptações nas mais diversas formas artísticas, tais como peças teatrais, filmes, romances, desenhos animados em tom de sátira, entre outros. A mais famosa concepção inspirada na lenda de origem alemã, é de autoria de Wolfgang von Goethe, em seu poema clássico, inicialmente composto em 1775, retratando o contrato firmado entre Fausto, que enseja o título da composição, e o demônio Mefistófeles.
Seja a partir de sua formatação original de feição mais ortodoxa, ou mesmo, nas inúmeras interpretações e vieses reflexivos que delas se inspiraram, a ideia do dilema moral e espiritual deflagrado pela obra é atemporal.
Na verdade, estamos fadados de alguma maneira a entrar em conflito com nossos ideais e aquilo que é apenas possível fazer, ou ainda, almejar e fantasiar algo que não conseguiremos alcançar por razões variadas, sejam elas impedimentos de ordem material, no sentido de realidade, ou mesmo, os desejos não terem força suficiente para serem bancados e sustentados. Lutamos com o ideal fantasiado e as frustrações encontradas durante o percurso da vida.
Com os olhos voltados para a dualidade do homem, a constante luta entre o bem e o mal, não raro, inserida no próprio indivíduo em seus matizes mais superficiais ou voltados ao âmago do ser, o que se verifica é um terreno fértil à criação artística. Na produção ‘Filme Demência’, de 1987, dirigida por Carlos Reichenbach (1945 – 2012), conhecemos a história de Fausto, vivido por Ênio Gonçalves, um industrial que fabricava cigarros da marca Fênix (talvez este nome possa nos remeter ao final da película, à questão do renascimento da personagem pós-destruição), que tem a falência recentemente decretada.
A partir do fracasso financeiro, existencial e afetivo, pois sua esposa o repudia traindo-o com seu sócio, o personagem embarca numa viagem de autoconhecimento e irresignação consciente ao seu derredor. Um ‘abrir de olhos’ impulsionado pela ciência ou aparência de autonomia pretérita, obliterada pelas brumas da negação e do niilismo, as quais emergem diante de sua nova realidade imposta.
Um homem diante de suas próprias inquietações antes nunca sentidas ou pouco percebidas, sofrendo de perdas fálicas, representadas aqui pelas posses de dinheiro e mulher, que até então tornavam Fausto um sujeito poderoso e “dono de si.” Agora se enxerga fracassado, perdido em seus referenciais, impotente. Em um ímpeto de fúria, faz usufruto de uma arma de fogo (outro recurso simbólico que parece remeter a poder e domínio), comete assassinatos de seus semelhantes masculinos, talvez projeções de seu vergonhoso estado enquanto tal, além de humilhar outras pessoas na cena e rejeitar as investidas de uma mulher que o seduz, numa tentativa de mostrar-se (ainda) desejante e cobiçado.
Após uma tortuosa tentativa de intercurso com a mulher, como que confrontado por sua derrocada rumo ao abismo, o personagem se envereda pelas ruas da São Paulo noturna. A selva de pedra agora como cenário da releitura moderna do clássico anti-herói, intensifica a obscuridade que retrata o atual estado anímico de Fausto.
A fotografia escura e conscientemente lúgubre, atua de forma coadjuvante à própria cidade, indiferente às mazelas de seus habitantes (errantes), mormente seu submundo, a fim de retratar um tom de pessimismo e ausência de perspectiva. Durante a sua jornada, Mefisto, interpretado de forma genial por Emílio Di Biase, se revela diante de Fausto nas mais diversas formas, sempre seduzindo sutil e sorrateiramente.
Nesse passo, enquanto tenta ganhar sua alma, induz o personagem ainda que de forma indireta, a uma vereda libertária em relação ao seu passado cada vez mais longínquo, vetor recorrente das obras de Reichenbach. Parece convidar Fausto rumo a uma nova aventura que se abre diante dos possíveis horizontes, porém, sem antes ter que renunciar ao presente e um suposto futuro.
No passado, havia para Fausto talvez algumas certezas posicionando-se enquanto empresário e homem de família. Agora, os caminhos vindouros são tentadoramente incertos e, quem sabe, surpreendentes. Fausto tem de lidar com o imperativo de Mefisto, que provoca-o apresentando um suposto “paraíso” retratado em seus sonhos e devaneios, ao mesmo tempo que tenta refutar a ceder a tudo isso.
Nestes sonhos, a figura de uma criança aparece intencionalmente em vários lugares nos cenários de suas fantasias. É possível que ela possa nos remeter à ideia de uma infância latente do personagem, como se ele cultivasse um anseio por uma liberdade pueril, brincalhona, leve, que escapasse do mundo sisudo, seco, monótono, angustiante do adulto.
A fotografia do filme, como já mencionada, vem tornar esta realidade ainda mais nauseante, como se não houvesse espaço para colorir a vida. A presença da criança que olha para Fausto traz este frescor, um fio de esperança, um respiro.
De maneira diversa de suas películas pretéritas, financiadas a partir de produtoras privadas, situação comum na Boca do Lixo paulistana, seu reduto inicial, a obra foi filmada a partir de recursos da extinta Embrafilme. Trata-se de uma questão altamente peculiar, pois a empresa Estatal àquela época, já se encontrava rumo à finitude, que seria oficializada no governo Collor concomitantemente a extinção da lei de obrigatoriedade.
Se de um lado, a legislação que fomentava a reserva de mercado para a distribuição e exibição de produções nacionais, quadro favorável às distribuidoras e exibidoras privadas, a Embrafilme irradiava feixes para produções de feições menos comerciais. Decerto, revela-se certa coerência, pois se os filmes anteriores de Carlão, como era conhecido, ainda que imbuídos de sua distinta erudição conseguiram cotejar elementos de erotismo, chanchada e pensamento anárquico libertário, materializando conteúdo facilmente vendável.
Tal era a tônica das produções da Boca do Lixo, títulos montados a partir de recursos próprios objetivando lucro e consequente aplicação nos títulos vindouros. Filmes como ‘A Ilha dos Prazeres Proibidos’ e ‘Império do Desejo’, apesar de sua classificação inicial como espetáculos de pornochanchada, conseguiam verter um conteúdo político e filosófico em meio ao erotismo mercadológico.
Retornando ao peregrino Fausto, interessante notar que se anos antes as produções demonstravam o sucesso da expansão industrial Paulista, como na obra-prima de Luis Sérgio Person ‘São Paulo – Sociedade Anônima’ de 1965, Filme Demência retrata as difíceis condições impingidas ao campo empresarial em meio à crise econômica de meados dos anos 80. Inclusive, Person, professor de Reichenbach na graduação de cinema, é homenageado em algumas passagens no curso do filme com adaptações da trilha sonora, claramente em referência a SP/S.A.
Repise-se, mais do que uma jornada de conhecimento, contraste e confrontos pessoais, Filme Demência revela uma nova fase na carreira do cineasta, pelo qual em um filme altamente intimista, insere elementos autobiográficos tal como a morte prematura do pai e a perda dos bens da família, também oriunda de industriais.
Além da inserção da erudição em citações filosóficas de forma mais sutil, mas não menos profundas e densas, a narrativa a todo momento e instigada pelo pensamento lírico abstrato, como na participação do ator e poeta Orlando Parolini, que aparece em outros filmes do diretor.
De toda sorte não se trata de uma película palatável a todos os gostos, tanto é, que consoante adiantado, foi financiada pela Estatal de cinema, quadro que facilitava a concepção de produções afastadas da roupagem mais popular. Nas palavras do diretor Marcelo Lyra, 2007 na Imprensa Oficial
“Em Filme Demência, optei por uma indústria de cigarros para tirar fora qualquer vínculo cultural da questão da falência. Além disso, vi também muitas pequenas fábricas artesanais de cigarro serem fechadas por pressão das majors do tabaco, já que muitas delas imprimiam suas embalagens na gráfica de meu pai. Também quis fazer uma indústria de cigarros chamada Fênix, para ironizar a tentativa de ressurgir das cinzas.
Outro aspecto interessante é que falência significa também quebra de tradição familiar. Fausto vinha de uma linhagem de pequenos industriais do cigarro, da mesma forma que minha família tradicionalmente trabalhou com gráficas. Em meio à perda financeira, Fausto vê seu casamento desmoronar”.
Aliás, o título já descortina um cenário provocador, (anagrama para filme de cinema), numa proposição aparentemente pleonástica, mas que atua como prólogo às sucessivas disposições e sobreposições de interpretações abertas em relação ao destino do personagem. Enquanto o anticristo materializa-se objetivando sua alma, Fausto, inserido em sua realidade utópica de rompimento com o passado e presente, flutua entre dois extremos, como Dante guiado por Virgílio entre os assombros do inferno e purgatório.
Nas últimas cenas, Fausto acorda na poltrona onde estava sentado no começo do filme, denotando aos que assistem que tudo não passava de um sonho perturbador. Além disso, as ações impulsivas do personagem nos revelam que só seriam possíveis em sonho, pois a realidade não comportaria tais atitudes. Mas será mesmo?
Nesse confronto, teria ele ainda futuro, ou mesmo, sua alma? Caberia a nós, suspender por alguns minutos – tempo do filme – a descrença quanto aos caminhos que Fausto escolheu acreditando ser possíveis ou conformar-se a imagos, distorções, ficções, conjecturas, como no sonho? Cabe ao espectador ponderar e decidir. Ou para os mais ousados, permanecer na dúvida.