O medo nasce como uma sombra discreta, deslizando pelos cantos onde a luz mal chega. É um visitante silencioso, que se instala sem ser convidado e cria raízes profundas nos recantos que julgávamos seguros. Às vezes, ele murmura, uma voz baixa e insidiosa que nos faz hesitar; outras vezes, ele explode em gritos surdamente ensurdecedores, fazendo o peito apertar e a mente girar em círculos confusos. O medo é persistente, como uma erva daninha que insiste em crescer em solo seco, desafiando a aridez ao seu redor.
Mas o medo não floresce como as flores que esperamos. Ele é frágil, uma flor delicada como o dente de leão. Surge inesperadamente, em brechas do concreto, em rachaduras do asfalto, em terrenos inóspitos onde nada deveria crescer. Sua resiliência é um paradoxo; ele se espalha sem pedir licença, mostrando uma força que na verdade é sua fragilidade. O medo se esconde nas fendas do cotidiano, mas quando nos aproximamos e o observamos de perto, percebemos que ele, assim como o dente de leão, é uma ilusão de força.
Imagine, então, o medo como um mestre disfarçado, que nos ensina sobre os limites que autoimpomos e a coragem que precisamos descobrir. Ele nos desafia a encarar nossos receios mais profundos e a confrontar as sombras que projetamos em nós mesmos. É nesse confronto que revelamos nossa verdadeira essência, aquela capaz de transformar a sombra em luz.
Quando uma mulher se separa de seu parceiro, ela se vê cercada por um turbilhão de medos. O medo da opinião da sociedade, o receio de não conseguir pagar as contas, o temor de que seus filhos não a respeitem, o pavor das críticas dos parentes. Cada medo se torna uma muralha que tenta restringi-la, mas cada um também é uma oportunidade para que ela cresça e se liberte.
Na primeira brisa de coragem, o medo começa a se desfazer. Um sopro suave o leva embora, espalhando seus vilanos pelo vento, longe, para nunca mais retornar. O medo, antes colossal e opressor, se reduz a nada mais do que fragmentos leves, flutuando até desaparecer. O que resta é um caule vazio, um vestígio de uma força que nunca foi real, mas apenas uma construção ilusória.
Enfrentando o medo, descobrimos que ele não é um monstro invencível, mas sim um espelho que reflete nossas inseguranças e limitações. Libertar-se do medo é como soltar um dente de leão ao vento: um ato simples, porém poderoso, que permite que novas possibilidades se espalhem. E, ao nos libertarmos do medo, nos tornamos mais inteiros e livres, capazes de crescer em terrenos antes inóspitos.
O dente de leão, com sua beleza efêmera e fragilidade aparente, nos lembra que, às vezes, a verdadeira força está na capacidade de transformar o medo em liberdade. E, ao soprar o medo para longe, encontramos não apenas a coragem de enfrentar nossos desafios, mas também a capacidade de nos reinventar e florescer, mesmo nas circunstâncias mais adversas.
o banho que molha tem algo de peculiar não é banho à toa entoa na acústica chuva que escorrega a alisar corpo de cima abaixo parte por parte pedaço por pedaço de um inteiro tudo
água desliza devagar entre todo o universo de um corpo trêmulo onde há tanto cansaço o medo se esquiva afoga-se mágoas dúvida se dissipa no ar das bolhas que dão pulos
e que voam de fato na insustentável leveza e a liquidez do tudo rola pelo buraco do ralo resquícios do antigo excessos do moderno reforma na água sutileza e a solidão deságua afoga as fósseis frustrações,
Kathársis humoral
se o castigo das pressões na ducha faz pele rosada contrasta com carinho luxo do líquido que ensaboa flui facilmente na face feição torna-se terna na eterna maçã visage rubra de calor da água
quente caliente aproveita faz foto de fantasmas felizes de aparecer pois eram figuras falidas sempre tidos por falácias
figurar no fundo de um ser é tarefa feita não para os fracos mas ao que é profundo caçador que extirpa miasmas
em seu banho peculiar ensaboa pensamentos quiasmas no enxágue preconceitos se soltam na kathársis a jorrar como a água que levou seu tudo errado lavou seus mais que humanos defeitos perfeitos
Sergio Diniz da Costa: ‘As águas do Rio Grande do Sul’
As águas que te cobrem, Rio Grande do Sul São as mesmas que cobrem meus olhos
Longe são tuas terras das minhas Perto demais vê-las submersas Perto de mim, os lamentos de ti
Por ti, também perdi minha casa Meus móveis, roupas e até meu cão Teu medo, teu frio, meu medo, meu frio
Teu coração opresso oprime o meu Tua alma e minh’alma se abraçam Feitas gêmeas amarguradas
Uno minhas mãos às tuas, Meu Rio Grande do Sul Elevo minhas preces às tuas O sofrimento nos une Pois somos um Mas, quando o Sol raiar novamente Juntos estaremos No alvorecer da redenção!
Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a imagética do medo
CINEMA EM TELA
Marcus Hemerly
Artigo: ‘Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a
imagética do medo’
“…Tudo que aos olhos se interpõe, É um sonho dentro de um sonho…”
Edgar Allan Poe
As cidades, assim como toda urbe, são emaranhados de vivências, aspectos únicos, subjetivos, e ao mesmo tempo coletivos de uma cultura organizacional que, sincronicamente, erige e desconstrói. Indivíduos em seus recortes pessoais são retratados em carne e osso, bem como em celuloide; uma matéria-prima extremamente rica e mutante, e, até mesmo, poder-se-ia asseverar, metamorfosicamente ambulante, para citar o ‘maluco beleza’.
A partir de cores, elucubrações anímicas, relatos e sentimentos, as metrópoles, de forma global e alinhando várias tessituras, desenham contornos não apenas de edificações materiais, mas também a solidez de trilhas individuais, as quais, ulterior e finalisticamente, compõem o coletivo, ao mesmo tempo anônimo e vivaz, cosmopolita e em cotejo a significação emotiva de seus componentes.
O mesmo pode ser dito acerca dos apartamentos, prédios, casas, estruturas que encapsulam a célula subjetiva como peça coadjuvante da alegoria principal. Nesse espaço, as habitações coletivas são recorrentemente tratadas como pano de fundo nas representações artísticas, mormente pela literatura e cinema, ou numa junção adaptativa de ambos.
A chamada Trilogia dos Apartamentos, do diretor polonês Roman Polanski, trabalha esses aspectos de forma robusta e sofisticada ao amalgamar o drama psicológico humano às feições do sobrenatural, ora de forma velada, ora de maneira (quase) explícita.
A proposição temática que se envereda é deflagrada pelo título ‘Repulsa ao sexo’, (Repulsion,1965), pelo qual o reduzido número de personagens canaliza o suspense na grande performance de Catherine Deneuve, que, de forma progressiva, vai cruzando os umbrais da insânia – ou assim parece ao espectador – entregue a suas divagações oníricas.
Na trama, escrita por Polanski e Gérard Brach, acompanhamos Carole Ledoux, mulher retraída e atormentada que, deixada sozinha no apartamento que divide com a irmã, inicia uma escalada paranoica permeada por pesadelos e alucinações no momento em que a personagem entra em contato com os homens e, naquele espaço, confrontada por seus desejos a ela canalizados.
Vislumbra-se uma abordagem indireta sobre transtorno de aversão sexual, representado pela rejeição patológica e persistente a todo tipo de contato genital. O estado mental de Carol e sua deterioração é intensificada e, talvez, adornada, por sua reclusão nas dependências do apartamento, que pode ser até mesmo interpretado como um catalisador da figura masculina em seu inconsciente, num misto de terror psicológico e suspense.
À sombra desse tópico, interessante diferenciar do ponto de vista analítico, as definições de suspense e horror. Ainda que usualmente aludidos como sinônimos, o terror se assimila de forma premente ao medo e angústia não aparente, psicológica. Lado outro, o horror exsurge de contornos mais explícitos, que causam asco e repulsa. Ao mesmo tempo em que um denota o lado de estado mental, o outro suscita a surpresa e efeito mais gráfico e visual.
No título ‘O bebê de Rosemary’, (Rosemary´s Baby, 1967), seu grande sucesso em terras estadunidenses, adaptado do romance homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde ocorreu o assassinato de John Lennon. Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo. O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount.
Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma obra rasa como as que inundavam os cinemas no período.
Rosemary, a partir de pontos distribuídos no decorrer da película, suspeita de que os engajamentos satânicos de seus confrontantes objetivam utilizar seu rebento iminente, em oferenda ao diabo. Seria realmente um conciliábulo de bruxos em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial? Mais perguntas são entrecortadas por induções, do que respostas são ofertadas durante as duas horas de duração.
Nos anos 70, após a realização de outro grande sucesso de público e crítica, o noir ‘Chinatown’, estrelado por Jack Nicholson e roteirizado pelo lendário Robert Towne, o diretor teria problemas com a justiça americana, fazendo com que tivesse que fugir do país para evadir-se a um processo criminal, devido ao envolvimento sexual com uma menor de idade.
Polanski já havia também assimilado holofotes por outro drama pessoal ocorrido em 1969, com o assassinato de sua então esposa grávida, a atriz Sharon Tate, pelos discípulos de Charles Manson. A posterior produção do realizador seria voltada ao velho continente, retornando ao ponto de partida de sua carreira, no entanto, não em tom de retrocesso.
O filme ‘O inquilino’, (Le Locataire/The Tenant, 1976), novamente explorando a multitude de relações humanas em um prédio de apartamentos, alinha a história do pacato Trelkovsky, interpretado pelo próprio Polanski, que a despeito de sua atuação em expressões contínuas e poucos versáteis, traz credibilidade ao confuso e apático personagem que acredita-se vítima de uma conspiração pelos demais moradores do prédio, de modo similar a anterior locatária de seu apartamento, que teria se atirado pela janela.
Aqui, tal como amoldado em Rosemary e Repulsa, a carga de tensão é construída não pelo que é mostrado, mas repousa naquilo que é presumido ou deduzido a partir de sugestões que podem ou não ser entendidas como tal, lastreando gradualmente o sustentáculo ao clímax derradeiro.
A obsessão do Inquilino Trelkovsky pela mulher, ocupante anterior de sua escabrosa morada, e a certeza da conspiração contra sua higidez, repise-se, física e mental, culmina em numa alucinada entoação acusatória próximo ao final do filme: “Eles querem me transformar em Simone Choule!”.
Esses aspectos desvelam um tecido construído de maneira mais minuciosa e robusta por elementos contínuos inseridos no roteiro. Planos sequência a partir da visão dos personagens e suas fantasias baseadas em elementos empíricos ou imaginários, constroem uma narrativa extremamente eficaz em todos os filmes aqui citados, que guardam peculiaridades no aspecto de construção da tensão e medo incutido ou projetado pelos protagonistas destes distintos city films.
Matizes de ambientes, bem como alternância psicológica dos personagens ajudam a compor as diversas camadas que esmeram a densidade dos roteiros e despertam a crescente inquietude e desconforto àquele que os assiste.
É sabido que, quando se fala em arte (ou se sente), a noção de relativismo histórico antropológico exsurge de maneira bem forte, seja num olhar individual ou amplificado, pois, assim como a criação de uma obra pelo artista, sua interpretação inexoravelmente indica um troca. Uma miríade, na verdade. Congruentes ou incongruentes, similares ou de harmonia flagrantemente denegada, tal é a complexidade do ser humano sensível, que reage de maneiras distintas a eventos em comum. E, a partir desta visão multifacetada, a cada sessão, novas interpretações e emoções são detectadas, como impressões digitais ou pegadas na areia, antes encobertas, para serem detectadas por um novo olhar apreciativo.
Nas lembranças da vida
Uma consciência se contrapõe
Senti meu primeiro medo
No ventre de minha mãe.
Acordei amedrontado
Suando frio, sonhos letais
Com a dor da genitora
Pressentimentos irreais.
São criados pela mente
Num estado de ansiedade
Lamento de rejeição
Complexo de inferioridade.
Fobia da solidão
Temor, horror, aflição
Tensão que corrói por dentro
Silêncio, mortificação.
Tristeza, angústia, depressão
Transtorno de abandonados
Amor sem retribuição
Tormento dos condenados.
Consequências do pânico, apreensão
Ressentir-se com a fraqueza, inquietação
Melindrar-se com a repugnância, consumição
Ofender-se com as críticas, aversão.
Medo emocional, incapacidade
Despertam insegurança, fragilidade
Paralisam a vida, destroem sonhos
Destino final da infelicidade.
Vencer o medo, coragem
Bater de frente com o risco, destemor
Superar o passado, realidade
Não fugir da vida, lutar pelo amor.
Poesia publicada originariamente na coluna Resenha Cultural, do Portal Zona da Mata News, em 27/01/2021.
Cada dia acordamos no mesmo quarto e seguimos o mesmo caminho, para viver o mesmo dia que vivemos ontem. É isso que significa evoluir? É isso que significa ser livre? Na verdade, nós somos realmente livres?
O medo é talvez a maior barreira entre uma pessoa e a grandeza que ela busca.
Todos os dias, somos bombardeados com mensagens negativas que só aumentam nossa insegurança; muitos credos mostram falsidades que nos induzem a não nos acharmos dignos de ter riqueza e poder; distrações e decepções nos pressionam a ser sempre um peão submisso ao invés de um verdadeiro senhor de si mesmo.
Essas cadeias não são visíveis, mas são mais fortes que o mais resistente dos metais. Na verdade, o que nos impede de fazer o que queremos e estar onde queremos?
Cada dia acordamos no mesmo quarto e seguimos o mesmo caminho, para viver o mesmo dia que vivemos ontem. É isso que significa evoluir? É isso que significa ser livre? Na verdade, nós somos realmente livres?
Os principais elementos que precisamos para sobreviver não são de nossa propriedade. Comida, água, terra e assim por diante. Não existe comida nas árvores, água fresca nos rios e não temos liberdade para pegar o que quisermos da natureza. Nós simplesmente seguimos as regras impostas.
Por centenas de anos, nós assimilamos o que nos dizem e somos testados e classificados como produtos em um grande laboratório, não para fazer a diferença, mas para não sermos diferentes. Somos inteligentes para fazer o nosso trabalho, mas não para questionar porque o fazemos. Então nós trabalhamos e o trabalho nos deixa sem tempo para viver a vida para a qual trabalhamos, até que ficamos velhos e outros ocupam nosso lugar nesse jogo.
Se somarmos todas essas vidas, veremos que somos nada mais do que combustível para alimentar algo ou alguém. Esse algo ou alguém se esconde atrás dos logos de grandes empresas e seu recurso mais precioso somos nós. Nós construímos suas cidades, seus impérios, suas máquinas. Nós lutamos suas guerras e o dinheiro e poder nada mais é do que a ferramenta que se utilizam para nos controlar. Eles nos dão dinheiro e em troca, nós damos a eles o mundo. Onde havia árvores e ar limpo, agora existem fábricas que nos envenenam; onde havia água pura, há lixo tóxico que fede; onde os animais corriam livres, existem fazendas que agora chamam de “proteína animal”, onde são abatidos para nossa satisfação; apesar disso, bilhões de seres humanos passam fome no mundo.
A mídia inocula informação em nosso subconsciente, que nos faz crer que somos senhores de nossas ações, mas na verdade, somos servos desse sistema. Para romper esse sistema, precisamos quebrar a barreira do medo, entendermos essa Matrix Humana e termos a coragem de procurar sair dela.