Claroescuro
Clayton Alexandre Zocarato: Poema ‘Claroescuro’


Ardente
é a língua secreta da sombra
que lambe o avesso das horas,
um estalo vermelho no silêncio,
um grito que se esconde atrás das paredes do peito
como um desejo com medo do próprio nome.
Ardente é a memória que ainda transpira,
aquele ponto cego entre o inconsciente e o quase
onde Eros afia as unhas
e fica esperando,
numa espécie de coxia da alma,
por um lapso,
por uma brecha,
por um tropeço emocional
onde possa nascer.
Ardente é o eco do que nunca se tocou,
mas insiste em pulsar
como se o corpo fosse um sonho
e o sonho fosse um corpo
— ambos pedindo tradução.
Freud chamaria isso de retorno do recalcado;
eu chamo de incêndio suave.
Uma combustão lenta,
quase elegante,
um fogo que não devora,
mas murmura.
Um fogo que olha para você
pelos corredores internos
e diz, sem dizer:
“eu ainda estou aqui.”
Ardente é a culpa com perfume de absolvição,
a fantasia que se veste de metáfora,
o desejo que se analisa no divã do espelho
enquanto troca piscadelas com o Id
e acenos discretos com o Superego.
O Ego, coitado,
só observa, suando.
Porque o ardente não é moral —
é estrutural.
É um sussurro pré-conceito.
Um querer que não pediu licença.
É o fogo que nasce onde a palavra falha,
onde a boca esquece,
onde o corpo inventa um novo idioma
feito de cutucões simbólicos,
de vibrações silenciosas,
de códigos que só quem já ardeu entende.
Ardente
é o labirinto sem Minotauro,
onde o monstro é você mesmo,
mas com máscara de neblina
e perfume de quase-amor.
É um corredor psíquico
onde os sonhos caminham nus
e as lembranças vestem roupões de fumaça.
Ardente é o desejo adulto
que ainda dança com fantasmas antigos,
como quem tece no escuro
um bordado de sombras
para cobrir cicatrizes que não doem mais,
mas insistem em brilhar.
É o toque que não acontece,
mas acontece dentro.
Uma fricção metafórica,
um roçar de ideias,
um erotismo conceitual,
um convite hermético
que faz o coração arregalar a pupila.
Na psicanálise, isso seria pulsão deslocada;
no meu vocabulário, é labareda discreta.
Ardente é a chama que filosofa.
Que pergunta:
“E se o desejo for só um mapa do que falta?”
Que responde:
“Então eu sou geografia inacabada.”
E que conclui:
“Ótimo!
Só o que é inacabado pode continuar crescendo.”
No fundo, ardente é uma palavra esfomeada,
querendo devorar significados
como quem beija com sede,
mas sem encostar os lábios.
É um simbolismo que arrepia.
Um afeto que se esconde atrás do sofá da psique
e pula em você quando você menos espera.
Ardente é o sonho acordado
que se debate na sua garganta
pedindo para virar poema,
mas sempre escapa,
sempre escapa,
— até o dia em que você se cansa
e o escreve assim mesmo,
críptico,
surreal,
pulsional,
quase indecente,
mas absolutamente verdadeiro.
Porque ardente é isso:
essa fronteira vermelha
entre a metáfora e o corpo,
entre o que se sente e o que se admite,
entre o que se deseja e o que se confessa.
E se no fim das contas,
a palavra arde porque quer ser pele,
e a pele arde porque quer ser palavra,
então eu digo sem culpa:
Ardente sou eu.
Ardente é você.
Ardente é tudo o que a gente não ousou viver —
mas viveu por dentro.











