O sapato voador

Isabel Furini: Poema ‘O sapato voador’

Isabel Furini
Isabel Furini
Microsoft Bing. Imagem criada pelo Designer
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Eu vou contar a história
desse estranho sapato.
Um idoso comprou sapatos
e ele vivia feliz, até que no muro
começou a chorar um gato.

O velhaco ficou raivoso
e arremessou um sapato.
Rapidamente pulou o gato
e caiu em um buraco.

O sapato foi levado pela ventania,
elevou-se sobre as nuvens
e ficou voando perto dos guarda-chuvas,
da chaleira, dos relógios, dos peixes
e de pessoas estranhas, clonadas
por um cientista maluco.

Por fim, o sapato caiu na terra
e um relojeiro o encontrou
e fez um relógio cuco.

Isabel Furini

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O som da chuva

Elaine dos Santos: ‘O som da chuva’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
O som da chuva despertando medo e apreensão
Microsoft Bing. Imagem criada pelo Designr

Eu não sei exatamente o dia em que o pesadelo começou, isto é, quando as chuvas iniciaram no Rio Grande do Sul neste outono de 2024.

Apesar disso, fixei uma noite: 30 de abril. Resido na região central do estado, que sofreu graves problemas, pessoas mortas, desabrigadas, desalojadas; pontes obstruídas; rebanhos mortos; deslizamentos de terras. Naquela noite de 30 de abril, choveu muito, o som da chuva parece repetir-se na memória, porque era contínuo.

Dias depois, conversando com amigos, muitos deles referiram que foi uma noite insone. De fato, eu denominei a noite do sem: sem energia elétrica, sem telefone, sem internet (o alarme da casa desligou): a escuridão e o som da chuva.

Pela manhã, no feriado do Dia do Trabalho, seguíamos sem energia elétrica, sem telefone, sem internet, mas se associaram três novos dramas: sem água, a cidade ilhada (as cabeceiras de duas pontes ruíram e, em outra rodovia, o rio obstruía a passagem) e os desabrigados.

Saí cedo, precisava de internet, tinha trabalhos de revisão de texto para entregar. Consegui conexão em um posto de combustível. Quando postei em uma rede social que estávamos ilhados e sem conexão (telefone ou internet), eu fui ‘metralhada’ por uma pergunta que se repetia: “Como estão lá em casa?” Tive que fazer uma nova postagem: “Eu não sei como estão os parentes de ninguém” e repeti a cantilena ‘do sem’.

Por solidariedade, procurei algumas pessoas, principalmente, idosos e doentes. Chegava em frente às casas, buzinava, questionava se estavam bem, se precisavam de alguma coisa e seguia. Eu estava encharcada. Algumas pessoas não estavam mais em casa, haviam sido removidas durante a noite anterior, a noite da chuvarada.

Comprei água potável – que, em breve, faltaria na cidade. Comprei algo que pudesse servir como almoço e recolhi-me.

No dia seguinte, passei a ‘frequentar’ o ginásio municipal de esportes, local em que estavam os desabrigados. Leva roupas. O que está faltando? Volta em casa, procura nos armários. Volta. Ouve histórias. O maior tesouro que dedicamos para alguém é o nosso tempo.

Nuvens, trovoadas, apreensão… e chuva. Por vezes, eu penso que um dos grandes prazeres que, desde criança, sempre ouvimos dizer, era dormir com o som da chuva, de preferência, caindo sobre um recipiente, uma lata, por exemplo. Hoje, um dia, sem chuva, é um grande alívio.

Além das cidades afetadas na Grande Porto Alegre, eu conheço Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Putinga, Lajeado, Estrela, Muçum (não cheguei a conhecer Roca Salles, devastada por três enchentes), ou seja, boa parte do Vale do Taquari. Fico imaginando como se sentem aquelas pessoas que perderam casa, carro, animais de estimação, familiares, plantações ou, como referiu um jovem de Arroio do Meio: livros, discos de vinil, CDs, instrumentos musicais, histórias de uma vida.

Precisaremos, quem sabe, um dia, ressignificar o som da chuva, essa, hoje, horrorosa sensação de umidade. Por enquanto, ele traz medo, insegurança, apreensão. Muito mais do que casas, prédios, móveis, eletrodomésticos, temos gente para reerguer.

Elaine dos Santos

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Brincando com os sonhos

Eliana Hoenhe Pereira: ‘Brincando com os sonhos’

Eliana Hoenhe Pereira
Eliana Hoenhe Pereira
Vou caminhando e com os sonhos brincando
Vou caminhando e com os sonhos brincando
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Vou caminhando e com os sonhos brincando.

São os meus pés que me dominam,

Enquanto a cabeça nas nuvens descortina.

Os passos trazem leveza, 

 espantam as tristezas,

trazem sensação de renovação

Permitem-me a fugir da monotonia

E a buscar pela harmonia

deixo a brisa da manhã meu rosto acariciar

com os meus cabelos brincar,

No percurso, alguém passou

e cumprimentou-me

Ouvi um Bom dia!

Porém, estava a refletir

e não respondi.

Às vezes bate uma ausência

o céu emudece e até endoidece

ou lembro de uma situação passada

quase sempre engraçada, 

motivos para brotar muitas risadas.

Eliana Hoenhe Pereira

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Pertencimento invernal

Ella Dominici: Poema ‘Pertencimento invernal’

Ella Dominici
Ella Dominici
inverno obra de arte de Van Gogh
inverno obra de arte de Van Gogh
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quando a vida te incita
a escolher sazonalidade
buscas o céu e o fitas
procurando verdade
do teu pertencimento

variam nuvens em forma
de sonhos de inverno
são divagações que giram
entre o que se finda
e o que em ti cintila

são folhas amareladas
pelo desbotamento do vento
algumas com queimaduras
da nevada que devasta
passado o tempo
se avermelham como
a pele do teu rosto

cor rósea sem pudor denota
desejo que no frio quer amor
penso se pertenço ao taciturno
inverno onde sou solitude
sem a almejada tua solicitude

invernesso noite geando adentro
sou silêncio invernal da estação
sou nevada flocos aderindo
ao espírito

se calor da paixão derrete a estação
memória resgata definitivamente
o inverno

Ella Dominici

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Agradeço

Irene Rocha: Poema ‘Agradeço’

Irene Rocha
Irene da Rocha
"Agradeço pela luz do novo dia"
“Agradeço pela luz do novo dia”
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A cada dia, agradeço sorrindo,
Os momentos tristes, deixo pra trás.
Em cada passo, meu ser se transforma,
Em calma e em paz.

Os dias se vão, mas os sentimentos persistem,
Em alegria os felizes se tornam,
Olho para trás e vejo a jornada caminhada,
Nuvens escuras, agora, não me assombram mais.

Apenas a alegria se faz presente,
Agradeço pela luz do novo dia,
Sorrisos e lágrimas, juntos, vividos,
Com gratidão, em cada harmonia.

Agradeço pelas conquistas alcançadas,
Pelos filhos, pelo lar tão amado,
Mas acima de tudo, ao meu amor dedicado,
Em cada verso deste poema declamado.

Irene Rocha

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Última inquietude de um ser

Ella Dominici: ‘Última inquietude de um ser’

Ella Dominici
Ella Dominici
eu, limpo do céu inquieto na próxima paisagem me sossego
Eu, limpo do céu inquieto… Na próxima paisagem me sossego
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(Homenagem ao desassossego de Pessoa)

Trovoadas!
Este ar baixo em nuvens paradas como vidas
azul do céu, lavado anil em branco transparente
manchas de um chumbo surgem engrossando o quadro,
tomando o pincel do calmo artista, que se enfurece.
Som gélido entrecortado por cubos de vidro, escorregadios,
se soltaram das mãos que não suportavam o grito do destino

Tudo era silêncio antes das trevas assustadas
pelo rabisco com voz- de- sísmico . Lenda do carvão?
encarnada trovoada nos raios-coração
Lá, fora da caixa celeste, os sons foram picotados,
pendiam pilotados como em nave às cascatas
‘Estridentezinhos’ ou em placas de metálicas gotas

Tudo rápido como um repente das lonjuras não recentes,
enquanto num suspender cósmico de respirações
um temor como em dias de ares fantasmas,
um prolongamento de ondas sonoras enchiam os pulmões
e se extinguiam em forma de suspiros, que eram
acompanhados de leves gemidos do peitoral do homem

Tudo é silêncio no crespo coração, que dos trovões se arrebentou
em molas que imolaram ânimo
Somente o sentimento do fomento findando na ansiedade dos momentos,
onde enrolados entre si, misturavam voltagens em eletrizante alma

O anúncio do breve é súbito trágico,
Que humano apaixonado drasticamente me sinto, quando,
Eu, limpo do céu inquieto , dissolvendo o Ser em desafeto
Na próxima paisagem me sossego

Ella Dominici

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O menino que brincava nas nuvens

Sergio Diniz da Costa: Conto ‘O menino que brincava nas nuvens’

Sergio Diniz
Sergio Diniz
Menino olhando as nuvens
Menino olhando as nuvens
Criador de imagens do Bing

Meu compromisso, no centro da cidade, era às 17h. Resolvi chegar às 16h e sentei-me num dos bancos da praça central de uma das maiores cidades do Interior do Estado de São Paulo, com 361 anos de fundação e uma população de aproximadamente 640 mil habitantes, que o tempo, a Administração Pública e os empresários e artistas transformaram-na numa bela e progressista cidade.

Com a maioria de suas ruas asfaltadas, prédios em construção pululando por todos os cantos, comércio pujante, com uma miríade de empresas e pessoas físicas prestadoras de serviços e uma significativa frota de veículos circulando diariamente, reflete bem uma cidade moderna, porém com toda sorte de problemas, incluindo a violência, sempre aumentando, como o são os grandes centros urbanos.

Assim eu mergulhava em meus pensamentos enquanto, aparentemente ao acaso, abri em uma das páginas do livro de poemas que trouxera, a fim de aguardar o horário do meu compromisso. No alto da página, o título: “Eu Sou Aquele Menino”, do poeta brasileiro Paulo Bomfim, membro da Academia Paulista de Letras e conhecido como “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Eu já o conhecia e ele se tornara um dos meus preferidos, quando então estudante do ensino médio, tive a oportunidade de assistir a uma palestra desse grande poeta.

Grato pelo “acaso”, e já um tanto quanto absorto, comecei a ler os versos, em meia voz:

“Eu sou aquele menino/ Que o tempo foi devorando,/ Travessura entardecida,/ Pés inquietos silenciando/ Na rotina dos sapatos,/ Mãos afagando lembranças,/ Olhos fitos no horizonte/ À espera de outras manhãs/…”

─ Ei, moço, tá falando sozinho?

Assustado, interrompi a leitura. Um garotinho de camisa branca, short marrom e descalço, aparentando cinco anos de idade, me olhava, com uma mão segurando os dedos da outra e com uma expressão interrogativa.

─ Ah, não, eu estava declamando um poema em voz alta. Apenas isso ─ respondi, um tanto quanto encabulado e, certamente, corado, uma vez que, em termos de comportamento, sou do tipo sanguíneo.

─ Poema? O que é um poema? ─ mais uma vez ele me questionou.

A pergunta me pegou de surpresa. Em primeiro lugar, por ter vindo de uma criança com tão pouca idade. Depois, porque, apesar de eu ser um escritor e poeta ─ meu compromisso era com um novo amigo que me pedira ajuda para publicar um livro ─, senti-me sem didática suficiente para explicar algo que, para mim, era tão simples.

─ Poema é um… é um…. Travei! De repente, olhando para dentro de mim mesmo parecia que toda a teoria desse gênero literário sumira da minha memória, apesar de tão bem guardada que estava (assim eu pensava) no meu cérebro, na gaveta ‘Poemas’.

“E agora, José?” ─ pensei rapidamente com meus botões, lembrando o famoso poema do inesquecível poeta mineiro Drummond de Andrade.

Ainda imerso em pensamentos confusos, e sem a resposta esperada, quase que respondi a ele, como respondeu Drummond, no mesmo poema: “… A festa acabou/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou…”.

Na verdade, em me sentindo o mesmo José de Drummond, percebi que aquele garotinho tinha-me colocado contra a parede. E, de repente, não mais que de repente (Drummond, sempre Drummond…), essa sensação me trouxe certa irritação, pois, afinal de contas, aquele filhote de homem colocara em xeque um adulto estudado, um escritor, um intelectual, e a primeira vontade que tive foi de mandar aquele pingo de gente procurar seus pais. “Aliás, onde estavam os pais dele?” ─ perguntei a mim mesmo.

Antes de responder a ele, perguntei-lhe:

─ Como é o seu nome, meu filho?

─ Tato! ─ ele respondeu com certo orgulho no olhar.

─ Tato?! ─ exclamei, agradavelmente surpreso, pois esse também era o meu apelido de infância. E, a partir daquele momento, senti um carinho e admiração especiais por aquele menino questionador.

─ Quantos anos você tem, meu jovem curioso?

Ele me apontou uma das mãos aberta e respondeu:

─ Assim, ó!

Entendi que ele queria dizer 5 anos e somente naquele momento me chamou a atenção algo em seu rosto: uma cicatriz!

Aquela constatação, aliada à idade dele, me causou uma estranhíssima sensação, uma sensação de déjà vu, uma vez que eu, na mesma idade dele, fui vítima de um acidente caseiro que me custou uma cicatriz ─ e no mesmo lado do rosto que a dele! ─, fato esse que me transformou num menino e adolescente tímido e complexado.

Essa constatação me trouxe um sentimento de profunda simpatia e solidariedade por aquele garotinho. E lágrimas abundantes, também.

Senti uma vontade irreprimível de abraçá-lo, de pegá-lo em meu colo, de fazer milhares de perguntas sobre sua vida…

E levantei-me, a fim de fazer isso. Todavia, algo ainda mais estranho aconteceu: aquela figura simplesmente desapareceu da minha visão!

Estupefato, deixei-me cair sentado no banco, mergulhado num turbilhão de perguntas sem respostas. E, num primeiro momento, senti vontade de sair correndo, correndo daquela praça, sem nenhum destino, à espera, talvez, de que o vento no meu rosto decifrasse as dúvidas.

Entretanto, o adulto que me tornei falou mais alto e, respirando calma e profundamente, tentei me recompor e, como se nada tivesse acontecido, meio que automaticamente, continuei a leitura, agora em voz alta, do poema iniciado:

“─ Ai paletós, ai gravatas,/ Ai cansadas cerimônias,/ Ai rituais de espera-morte!/ Quem me devolve o menino/ Sem estes passos solenes,/ Sem pensamentos grisalhos,/ Sem o sorriso cansado! Que varandas me convidam/ A ser criança de novo,/ Que mulheres, só meninas,/ Me tentam cabular/ As aulas do dia a dia?/ Eu sou aquele menino/ Que cresceu por distração.”

Mal terminando a leitura, senti que meus olhos já não focavam mais o ambiente em que me encontrava; um estado de devaneio começou a tomar-me o corpo, a mente e o espírito. Já não conseguia mais sentir o próprio corpo e o som ambiente: uma mistura de buzinas, música de publicidade e vozes, destacando-se a de um evangélico que pregava como um João Batista no deserto. Tudo começava a diminuir de intensidade.

Os ponteiros do relógio giraram no sentido anti-horário. Os segundos, os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos escoaram numa velocidade vertiginosa, como se aquela ampulheta imaginária fosse a Máquina do Tempo, da fantástica história de H.G. Wells. E, de repente parando, à minha frente uma folhinha pendurada na parede apontou o ano: 1965. Cinquenta anos se passaram, numa volta ao passado!

Estamos numa tarde de verão de uma Sorocaba de meio século atrás, com uma população cujo censo de 1960 apontava uma população de 138.323 habitantes.

Há cinquenta anos, a cidade tropeira já se destacava na região pelo número de habitantes, mas, apesar disso, ainda era uma típica cidade do Interior, com muitas áreas verdes (e mato), ruas de paralelepípedos e de terra onde, nestas, a criançada fazia buracos no chão pra brincar de bolinha de gude ou de cachuleta, ou, ainda, de pega-pega, unha na mula  e outras brincadeiras que o Tempo levou consigo para as Páginas da Memória.

Era uma época em que os ponteiros do relógio pareciam caminhar a passos lentos e os dias escoavam como a própria eternidade.

Começo a caminhar por uma das ruas, sentindo-me como um espectro, um fantasma semelhante a Ebenezer Scrooge, o velho avarento de ‘Um Conto de Natal’, célebre história do escritor inglês Charles Dickens.

Aquela rua me desperta uma emoção há muito tempo não sentida. Uma saudade dolorida de um tempo em que, nos bairros, principalmente os mais pobres, os vizinhos mantinham uma relação de amizade muito próxima.

Pouquíssimas casas tinham televisores ─ em preto e branco ─, o que levava os vizinhos que os tinham a abrir a casa para os que não desfrutavam desse privilégio.

Nas festas mais importantes do ano, como o Natal, todas as portas se mantinham abertas para um intercâmbio de frutas natalinas e de quitutes, conforme a especialidade de cada vizinho.

Caminho absorto, à procura de pessoas queridas, porém, apenas ouvindo ecos do passado.

É um final de uma tarde de verão e, no mesmo lugar de sempre, deparo-me com o menino que um dia eu fui. Um menino de 5 anos de idade, com um corte de cabelo tipo ‘americano’, de camisa branca (já um tanto surrada), de calção e descalço, sentadinho no degrau de uma casa.

A rua, àquela hora, já se mostrava praticamente vazia. Ele era a única criança fora de casa.

Os vizinhos já conheciam o garoto e sua inclinação contemplativa e já não mais estranhavam aquela figura miúda, magrinha que, de vez em quando, mergulhado em pensamentos, saboreava um pedaço de pão seco.

Um passante mais atento talvez observasse que ele, naquele momento eterno, olhava apenas para cima. E um ou outro até perguntava o que ele estava fazendo. E, para quem perguntasse, a resposta era sempre a mesma: olhando as nuvens!

Para os adultos, em particular as mulheres, olhar as nuvens parecia coisa própria de quem quer verificar o tempo, para poder secar roupas no varal. Ou de meteorologistas, antes de consultar seus gráficos.

Para aquele menino, todavia, as nuvens tinham outro significado. Principalmente as do tipo ‘cumulus’, que são aquelas de contornos nítidos, com base aplainada e bem definidas, formadas em baixas altitudes e que, sob a ótica dele lembravam montanhas, castelos e animais.

Para aquele menino sonhador, de um tempo de infância interiorana, de horas lentas, ruas de terra ou de paralelepípedos e de poucos carros, aquelas nuvens representavam um enorme Parque de Diversões. E seu desejo era, um dia, alcançar o topo daqueles algodões branquíssimos que, para ele, tinham consistência e poderiam, dessa forma, ser escalados.

Seu sonho, no entanto, tinha um obstáculo intransponível: como chegar até elas? E os dias passavam, as tardes se faziam noite e, nos outros dias, pelo verão afora, lá estava aquele pequeno ‘filósofo da natureza’, à espera de um foguete imaginário ou mesmo um Pegasus que o levaria, literalmente, ‘às nuvens’.

Se os vizinhos em geral já não estranhavam aquele devaneio diário, um ou outro o interpelava, zombando dele ou apenas a título de curiosidade:

─ Tato, mas por que tanto você olha paras as nuvens?

E a mesma resposta já estava na ponta da língua:

─ Por que eu gosto, ué!

─ E por que você gosta tanto assim de ver as nuvens?

Aquela pergunta parecia exercer um efeito mágico no espírito do menino e ele, feito um adulto, um cientista ou, mais precisamente, um poeta, respondia, entusiasmado:

─ Tá vendo aquela ali? ─ E, apontando para uma não muito arredondada, a definia:

─ Aquela parece um cachorro.

─ E aquela outra, bem grande, no meio do céu? Aquela é a que eu mais gosto. Ela parece assim como se fosse um monte de travesseiros, um em cima do outro, formando uma montanha. Eu morro de vontade de subir e de brincar nela!

Os adultos sorriam diante daquelas palavras, para eles tão destituídas de realidade. E, despedindo-se do menino, certamente pensavam: “Criança tem tanta imaginação!”

E o menino ali continuava, qual uma sentinela. E, naqueles poucos e fugidios momentos, como num filme projetado em alta velocidade, o vi crescendo; crescendo e continuando a querer brincar nas nuvens.

Mas, assim como as nuvens se desmancham, sopradas pelo vento, aquele menino foi se desfazendo à minha frente e, com ele, as casas, a rua toda… e a minha infância, também!

Uma sirene ecoou estridentemente no ar e meu coração disparou. Abri meus olhos e, assustado e decepcionado, percebi que estivera sonhando. Estava na mesma praça onde ouvia as mesmas buzinas, a mesma música de publicidade e as mesmas vozes, num ruído que parecia ensurdecedor.

Consultei o meu relógio: marcava 16h15. Praticamente o mesmo horário em que conversava com o menino.

Com um sentimento de tristeza a apertar meu peito, não senti vontade de continuar a leitura dos poemas. E, menos ainda, de me levantar do banco.

Contudo, logo mais teria que cumprir o compromisso assumido.

Num esforço redobrado, reuni forças e levantei-me, ainda visivelmente contrariado.

Naquele momento um homem passou por mim carregando um espelho grande. Olhei para ele e me vi refletido. E me vi ainda mais velho e abatido, como se o espelho fosse o famoso retrato de Dorian Gray.

Uma brisa, porém, pareceu roçar meu rosto. Apesar da tarde quente e sem vento, podia jurar que em todas as árvores ao redor as folhas se agitavam, suavemente.

Um passarinho multicolorido voou de uma das árvores em minha direção e, passando por mim, ganhou altura.

Segui seu voo com meus olhos e, somente naquele momento, percebi uma gigantesca nuvem cumulus bem no centro da minha visão.

E, no topo dela, alguma coisa me chamou a atenção: era um menino!

Um menino que brincava nas nuvens!

Sergio Diniz da Costa

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