Verdade, reapresentação da realidade, ponto de vista?

Elaine dos Santos:

‘Verdade, reapresentação da realidade, ponto de vista?

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
https://pixabay.com/vectors/girl-anime-blue-hair-pieces-mind-8880111/
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Talvez, uma das tarefas mais difíceis de um professor de Literatura, tanto no ensino médio quanto no curso de graduação em Letras, seja ensinar o conceito de mimesis, conforme definida por Aristóteles, em sua ‘Poética’.

Em palavras bem corriqueiras, mimese é uma reapresentação da realidade que o artista faz. Vá lá, grosseiramente, uma cópia – ou, ainda, uma tentativa de cópia daquilo que ele viu (ressalve-se que eu adverti: é uma definição grosseira).

Eu costumava colocar uma cadeira em cima de uma classe e perguntava o que os meus alunos viam. A resposta era uma só: cadeira. Eu dizia que não. O revide era imediato: “Que é professora, ‘tá’ querendo inventar a roda?”

Principiava, então, a explicação: fomos ensinados a ver aquele objeto como cadeira, em sua totalidade, mas o que vemos são partes daquele objeto, raros alunos enxergavam, por exemplo, o assento.

Eis o papel do artista: desvelar aquilo que as demais pessoas não enxergam, não percebem. Ele reapresenta a realidade, sob uma nova ótica. Pode ser que muitos mortais, como nós, não entendamos as obras de Anita Malfatti ou de Picasso, mas a realidade está reapresentada ali.

Falta, para a maioria da população, é conhecimento para entender, ler, analisar obras artísticas de um modo geral. Experimente ‘ler’ os quadros de Van Gogh e desfrute a beleza daquelas obras. Por que nos deliciamos tanto com as obras de Machado de Assis?

Este escrito surgiu de uma conversa banal: “A senhora não sabe a verdade sobre os fatos!” E a senhora, no caso a professora de Literatura, questionou-se: “Qual verdade? O teu ponto de vista sobre a cadeira? E se a verdade estava justamente sobre o assento, nenhum de nós conseguiu alcançá-la?

Se a obra literária, em particular, os romances, que são mais difundidos hoje em dia, reapresenta a realidade, convém pensar a realidade sob diversos prismas, pontos de vista e nem sempre aquilo que eu sei corresponde, em sua integralidade, aos fatos decorridos.

Tivemos uma eleição polarizada e eivada por ‘Fake News‘; já, em 2022, uma parte da população estava mais atenta e, ontem, eu li a história de um candidato a prefeito que estaria sendo acusado de algo que não prometeu: a promessa estaria gravada em áudio. O meu sinal de alerta soou: uso de inteligência artificial?

Encerro, pois, misturando alhos com bugalhos (que era o meu propósito desde o início): estamos preparados para ver além da totalidade, esmiuçar a verdade e enxergar o assento da (minha) cadeira usada em sala de aula para meus alunos analisarem, ou ainda cremos que a verdade é una, apenas um grupo a detém, enquanto os outros devem ser silenciados?

Prof.ª Dr.ª Elaine dos Santos

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Sônyah Moreira: 'Síndrome de Picasso'

Que mundo é esse, onde as trágicas histórias viram filmes de sucesso  e transformam assassinos em heróis? Que mundo é esse, onde impera a indiferença pela dor do semelhante?’

 

A aparência disforme das criaturas faz a paisagem assombrosamente linda! Será que são loucuras imaginárias?

Os olhares em perspectiva  mostram anomalias, rostos horrendos, tudo parece estar fora de lugar, uma confusão de formas desalinhadas e cúbicas.

Do que estou falando? Esse olhar aprofundado nas feições das pessoas  que expõe  a monstruosidade do interior do ser.

Perceba  o olhar animalesco por trás do sorriso amarelo de alguns, a falsidade e a inveja embutida em suas frustações!

Que mistério é esse? O de esconder o que realmente sentimos, e  somente nós, seres racionais temos esta característica ou ferramenta, a  de dissimular  completamente  os verdadeiros  sentimentos.

Quem sabe, Pablo Picasso (1881-1973) conseguiu de  alguma forma enxergar o interior de seus modelos.

Ele,  em uma fase de sua carreira artística, produziu pinturas enigmáticas, talvez   tenha   retratado  a verdadeira face das pessoas, aquela oculta por trás das máscaras. Dizem os especialistas em arte que esse período ficou  conhecido por fase azul,  e que  deu início ao Cubismo.

Deixemos estas análises aos senhores críticos de arte, e nós, os leigos,  vamos tentar de alguma maneira fazer uma analogia entre os retratos disformes de Picasso e as máscaras usadas cotidianamente em nosso entorno.

Em 1904, Picasso pintou uma aquarela, intitulada “O louco”; nela, ele retrata um doente mental que, alienado, perambula pelas ruelas de Barcelona, na Espanha.

Acredito que toda inspiração artística deve derivar da observação de detalhes do cotidiano, transformando em prosa , versos, quadros, filmes,  peças teatrais e música, toda a história de uma época.

Ao observar o andar apressado das pessoas em uma cidade qualquer, veremos o louco retratado por Picasso, em diversos personagens.

A loucura animalesca e oculta emerge em uma fração de segundos! E quantos crimes hediondos são cometidos nesse milésimo de segundo?

Quem sabe se, com o avanço da tecnologia, num futuro próximo poderemos, de alguma forma, enxergar as feras existentes em todo ser?

Quem sabe se a fatídica fase melancólica de nosso Picasso fosse o retrato do mundo atual! Não teria sido ele um Nostradamus?

Os tempos atuais estão  transformando as pessoas  em feras enjauladas, em loucos  fronteiriços sem diagnósticos, psicopatas  e psicóticos  escondidos por trás das máscaras!

Que mundo é esse, onde as trágicas histórias viram filmes de sucesso  e transformam assassinos em heróis? Que mundo é esse, onde impera a indiferença pela dor do semelhante?

Que faces horrendas poderiam ser  retratadas nas telas pintadas com sangue de pessoas inocentes, pelo simples fato de  não   existir mais  piedade e nem compaixão!

Talvez a descrença   e a decepção  com a  humanidade  possa nos  transformar  em  Picasso, retratando  apenas o lado negro e monstruoso das pessoas.

O Picasso moderno, com certeza tem  material para  muitos retratos, somente  usando as  cores horrendas da mistura de racismo, intolerância e  preconceitos.

Que  dor imensa em perceber que perdemos, dia após dia,  a poesia da vida e a  alegria de viver em grupo, perceber que  fazemos parte do conjunto, do todo.

É urgente retroceder e  buscar a ternura, acreditar que nem tudo está perdido, ter esperança de que, com a evolução material, venha atrelada, também,  a evolução espiritual.

Precisamos voltar ao passado, onde vivíamos e comíamos juntos, onde os filhotes pertenciam ao bando e eram  protegidos por todos. Voltar  àquele lugar onde não percebíamos diferenças e as feras eram, de fato, animais selvagens.

 

Sônyah Moreirasonyah.moreira@gmail.com