O passo da gazela

Seth Marcelo: ‘O passo da gazela’

Seth Marcelo
Seth Marcelo

No salão rubro do Palácio das Pedras Douradas, entre alcatifas gastas e candeeiros exaustos de tanto brilho antigo, o velho Ngola Mangueira Yetu, há três décadas firmemente sentado na cadeira da decisão, compunha com esmero a gravata vermelha e dourada diante das câmaras. Os seus olhos, cavados por rugas e desconfianças, procuravam, lá fora, a multidão que se apertava na Praça Independente, debaixo de um ecrã abrasado pelo sol.

O povo, em uníssono, entoava:
— Em dois mil e vinte e dois vais gostar! Em dois mil e vinte e dois vais gostar!

O refrão, que em tempos nascera de uma esperança inocente, fermentara até se tornar troça colectiva — cântico de frustração, mas também de aviso. Chimuku sorriu de lado, como quem já conhece o desfecho. Era da nova guarda, mas com o velho perfume da ambição.

— Ao povo que canta, que dança, que sonha e que resiste, digo com a calma de quem não teme: não vos apoquenteis. Amanhã darei um passo à gazela. Sim, um salto elegante, leve, de fato escuro — mas sempre para a frente. Quem crê que tombarei no fosso das urnas desconhece o solo firme que sob nós se estende. E ignora, sobretudo, a fidelidade com que escolhi o camarada Jaime Baixinho para continuar a obra.

Atrás dele, ministros brindavam com espumante barato e palavras ruidosas. Entre eles: Viegas e o Baka. Brindavam não pela certeza, mas pelo medo do contrário.

Nas redes, a frase fez-se meme com rapidez viral. Encheram-se os ecrãs de gazelas a tropeçar, saltos falhados, desastres anunciados. Riam-se muitos. Mas nas sombras do palácio, o salto já estava coreografado com antecedência — não pela leveza da gazela, mas pela precisão com que o poder sabe proteger-se a si próprio.

Na manhã seguinte, o Sol nasceu grosso e silencioso, como se hesitasse. E lá estava ele, Ngola Mangueira Yetu, agora com uma gravata amarela, na varanda do palácio, sorrindo com o alívio de quem sobrevive não por mérito, mas por astúcia.

— Como prometido, saltei. E cá estou.

E foi então que, no silêncio denso que se seguiu, o povo começou a decorar o próximo refrão. Porque ali, naquela coreografia entre ambição e estabilidade, se evitara — por enquanto — a ruína.

Como dirá certo cantor, há vezes em que até a vaidade dos poderosos nos poupa da guerra. E há paz que nasce não do amor, mas do medo de perdê-la.

Seth Marcelo

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