Profundidade versus superficialidade
Virgínia Assunção:
‘Profundidade versus superficialidade’
Em um desses dias lindos e alaranjados de outono, quando as folhas caem parecendo pequenos colibris cercando as flores, parece que sussurram algo desconhecido para nós. Sentei-me no batente da casa de mamãe que dá para o jardim. A vida, como sempre, estava acontecendo ao meu redor. Meu pai assistindo a alguma coisa na TV e minha mãe perguntando-lhe o que queria para o almoço. O barulho de algumas crianças passando pela rua, correndo e rindo de tudo, completamente imunes às preocupações dos adultos. Nesse momento, em meio a esse cenário cotidiano, me peguei refletindo sobre a profundidade da vida.
Somos incentivados constantemente a viver com intensidade, a buscar novas experiências que nos transformem, que nos façam pessoas melhores a garimpar nossas almas para nos tornarmos mais autênticos. Essa busca pela profundidade das coisas é praticamente uma obrigação contemporânea. Hoje, temos que meditar, fazer exercícios, terapia, viajar, ler livros complexos, escrever textos mais complexos ainda, fingir muitas vezes que somos o que não somos, que temos um conhecimento que não temos; tudo isso para garantir que estamos vivendo uma vida com sentido, uma vida ‘profunda’.
Porém, ouvindo o barulho daquelas crianças que riam de tudo, imunes às preocupações, às vaidades, às competitividades vazias dos adultos, compreendi algo, no mínimo, curioso. Elas não se preocupavam, nem mesmo sabiam o significado de profundidade. A alegria para elas, estava exatamente na superfície: no correr, no brincar, no sorrir, no agora. E então, pensei que toda essa espontaneidade não tem como ser necessariamente superficial. Lembrei-me da passagem bíblica, quando Jesus nos ensina que, “quem não se fizer como uma criança, não herdará o reino dos céus. ” Esta sim, é uma sentença profundíssima.
Acredito que o problema não esteja em viver uma vida ‘superficial’, mas sim, no medo de encarar a simplicidade que encontramos nela. Em acharmos que, se não estamos reiteradamente imersos em questionamentos existenciais, estamos fraquejando. A superficialidade tem sua beleza e sua função, como tudo na vida. É na superfície onde encontramos as flores, o mar, os rios, as pessoas, os cumprimentos de bom dia!, boa tarde!, boa noite!; como vai? É na simplicidade que muitas vezes encontramos o aconchego, o descanso, o afago e o conforto de que precisamos. Qual a necessidade de que todos os momentos sejam notáveis, profundos e cheios de significados?
Às vezes, nos preocupamos tanto em viver com tanta intensidade que esquecemos que a vida também é para ser leve. E, sem dúvida, há uma leveza na superficialidade que é essencial para entrarmos em contato com o acessível, o descomplicado, o cristalino, o direto, sem subterfúgios. Cantar aquela música brasileira ou francesa que você ama, embaixo do chuveiro, mesmo sabendo que tem a voz desafinada, mas cantada com tanta paixão e simplicidade, que quando percebemos já não estamos mais no superficial, e sim, no nosso mais profundo momento e eles não precisam ser mais do que são, pois já são válidos por si mesmos.
Evidentemente, que temos que ter cuidado com a superficialidade extrema; eludir da nossa vida os momentos de profundidade, pode sim, levar a um grande vazio. O segredo, portanto, é manter o equilíbrio. Entretanto, também devemos nos dar a permissão de tão somente, simplesmente ser, sem a opressão ou imposição de estar sempre buscando algo maior.
E ao me levantar daquele batente na casa da minha mãe, percebi quão boa é a superficialidade, pois abraçando-a, abraço também, paradoxalmente, a profundidade. Nossa vida é feita de momentos profundos e de instantes superficiais, e cada um com o seu valor no grande aglomerado de acontecimentos da nossa existência. E talvez, só talvez, ao entender a superficialidade, descobriremos uma nova profundidade em cada momento vivido.
Virgínia Assunção