Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história
PSICANÁLISE E COTIDIANO
Bruna Rosalem:
‘Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história’
Desde a paciente mais icônica de Freud, Anna O. e seu pedido ao médico neurologista que a deixasse falar sem interrupções, dizia “a limpeza da chaminé”, através de seu relato livre, a técnica psicanalítica depois pensada por Freud ao ouvir o desejo de sua paciente em falar livremente, tornou-se uma espécie de ‘cura pela palavra’.
É claro que este método investigativo do psiquismo não foi construído assim tão facilmente, mas nos revela o quanto a possibilidade de falar o que vier à mente a um sujeito numa posição subjetiva de suposto saber de algo que o paciente não tem acesso, e mais ainda, poder escutar-se e inserir-se em sua própria história, nos dá notícias de que esta prática de escuta e fala tem possibilitado que os sujeitos reescrevam novos caminhos para uma vida menos angustiante e mais criativa.
A psicanálise nada promete, porém ao colocar o sujeito diante de seus próprios temores, desejos nefastos, ímpetos proibidos, repetidas decepções amorosas, de uma confusa orientação sexual, vícios desgastes, comportamentos sintomáticos, de um mal-estar indecifrável, baixa ou nenhuma libido sexual, gagueira e um nervosismo tremendo ao falar em público, das dificuldades em conseguir um emprego por nunca se achar suficiente, do árduo trabalho de luto, de um diagnóstico inesperado de uma grave doença, de perdas financeiras, de não conseguir engravidar, adicções diversas, fobias, dores inexplicáveis em determinadas partes do corpo, ou ainda, sentir-se incapaz de terminar qualquer tarefa…enfim, são inúmeras as aflições que nos atingem, deitar-se no divã pode ser o começo para transformar este vórtice perturbador que se inscreve na carne e traz sofrimento.
Divã (do turco diwan) é um móvel de origem oriental, uma contribuição para a psicanálise que o tomou como um dos instrumentos de manejo na análise. Diversas cores e formatos, uns mais largos, outros menores e estreitos, coloridos ou mais neutros, ornados com almofadas, mantas e afins. Tudo para tornar este novo espaço, a ida da poltrona para o divã, confortável e atrativa, por que não? Afinal, em análise a tal ‘passagem’ é a entrada do sujeito numa próxima etapa de seu percurso, mais intensa, mais íntima, mais aberta à escuta de seus fantasmas.
A superação das entrevistas iniciais, ‘entre – vistas’, do olho no olho, analista e analisante, para um lugar de quase isolamento, onde não há mais alguém olhando diretamente e a sensação de solidão, deitado, o sujeito depara-se com uma outra perspectiva de escuta.
A figura do analista ainda se faz muito presente, porém ao ‘perder-se de vista’, ‘ausentar-se’ do campo visual do sujeito, o psicanalista espera romper de maneira mais enfática a lógica comum de diálogo, da reciprocidade, da troca, das modalidades usuais de conversa. Agora, no divã, torna-se mais palpável as possibilidades de regressão, de acessar conteúdos mais profundos, latentes, reveladores, a intensidade da transferência aumenta, abrem-se caminhos para que os sonhos entrem em cena como mais uma fonte de investigação da vida psíquica do analisante.
É como se o sujeito permitisse conversar consigo mesmo, obter as próprias respostas e explorar novos horizontes sem a preocupação de ser validado. Certamente que este processo é bastante trabalhoso, leva tempo, disposição e muito desejo. E não há garantias. Há um caminhar, um sentir, um vivenciar. Momentos, histórias, experiências. Quem sabe um recontar.
Ao se entregar aos desafios do divã, notadamente um sentimento de desamparo é irrompido. Afinal, a primeira porta de entrada para o mundo veio através de um olhar, ‘da janela da alma’, seja da mãe, seja de quem o projetou ao ser que está chegando. Perder este contato é de fato um árduo exercício. A psicanálise vem nos ensinar neste momento, que é possível se sentir desamparado sem a necessidade de um amparo. É justamente neste ensejo que o sujeito tem a possibilidade de se questionar acerca de suas dores, sem que um outro esteja lá prontamente para acolhê-lo. Há uma inversão na lógica do discurso, ou seja, nem sempre o questionamento do sujeito vai encontrar uma resposta que o satisfaça, muitas vezes são mais dúvidas que vão surgindo, mais indagações, mais chances de viradas, elaborações e saídas criativas.
Por mais estranhamento que possa provocar a passagem ao divã, são nos efeitos deste movimento que a análise pode ajudar o sujeito a atualizar seu passado no presente próspero, num esperançoso futuro.
Estendido no leito (de morte?), um outro ser pode ressurgir das cinzas que outrora impregnadas em seu corpo o forjava. Reescrever narrativas, descobrir o amor (o ódio também), amar e deixar ser amado, desfazer-se do secreto prazer pelo sofrimento, libertar-se da prisão dos pensamentos, correr o risco de ser livre.
A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção
CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
Artigo
‘A Baleia (2022): o pesar da culpa e a busca por redenção’
Para os amantes da sétima arte, em termos de premiação, o Oscar tem sido popular e, até mesmo, obliterando o festival de Cannes, o mais importante do cinema Mundial. Aliás, se de um lado o Brasil há décadas mostra-se ansioso pela estatueta dourada, muitas pessoas desconhecem que nossos artistas já elevaram o nome do país na França, com o filme “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte, em 1962.
Importante atentar que alguns concursos ou festivais revestem-se de tom mais comercial, de modo que, ganhar um troféu no momento errado, pode prejudicar, em detrimento de edificar carreiras.
Popularmente é dito que a vida é composta de ciclos, tal se identifica no cinema, que frequentemente é criado – de forma não salutar – por hypes ou modismos, assim como a própria evolução sociológica.
Por óbvio, a arte caminha em paralelo à modificação e evolução (ou retrocesso) cultural. Marisa Tomei foi relegada ao ostracismo publicitário e produtivo após não aceitar papéis interessantes ao receber o Oscar por sua atuação em Meu Primo Vinny, de 1993, não correspondente à expectativa de público e crítica após a recepção dos holofotes que a estatueta direciona em momento imediato àqueles que a seguram, e cobiçam.
Lado outro, há o momento exato em ser o escolhido para discursar na premiação, quando uma carreira mais solidificada em termos de seleção e projetos lastreiam um “galgar de degraus” oportuno rumo ao firmamento artístico. Relacionando tais percepções ao ator Brendan Fraser, vislumbra-se que a mera indicação já se revelaria fonte de ressurreição e revitalização à sua carreira, após problemas pessoais que refletiram nos convites a papéis de revelo, depois de ser considerado galã pop dos anos 90.
Contudo, ao entregar uma performance diferenciada, a partir de um material que sabidamente conquista o olhar dos julgadores, culminando na seleção ao prêmio de melhor ator, uma lufada de ar fresco é direcionado não apenas ao histórico do profissional, mas sinalizando um novo olhar e tendência à cerimônia.
Em 2023, além de Fraser, tivemos a oportunidade de testemunhar a seleção de atores com carreiras menos pronunciadas, ou há tempos relegadas à coadjuvação, como é o caso de Jamie Lee Curtis, diva dos amantes de horror por sua participação no clássico “Halloween” de 1979.
De fato, o tempo muda os filmes e a forma pelas quais os vemos, e de maneira similar, seus personagens e personificações. No longa A Baleia (2022), acompanhamos um professor de literatura, Charlie, praticamente entregue à obesidade mórbida que o aflige há alguns anos, desde que o companheiro, seu ex-aluno, tirou a própria vida.
Além de sentir-se constantemente culpado pela tragédia, ainda precisa lidar com outros pesos em sua consciência: o do próprio corpo e o afastamento de sua filha Ellie aos oito anos de idade, quando Charlie decide abandonar a família para viver com o namorado.
A trama nos provoca nuances de emoções o tempo todo. Consegue misturar o belo e o repugnante durante as cenas. Ora é possível sentir empatia e carinho por Charlie, pois ele é doce, amável, gentil. Ora raiva, indignação e revolta por sua resistência em buscar melhorar sua maneira de encarar a vida, de ter mais amor próprio e olhar para si com apreço.
Ao deparar-se com aquele enorme homem esparramado em seu sofá, com dificuldades para andar, fazer gestos simples como alcançar algum objeto mais longe, locomover-se, respirar, que engasga quando chora ou ri, o sentimento que parece surgir ao presenciar esta cena cotidiana é de um imenso incômodo, mal-estar, estranhamento.
Ao mesmo tempo que Charlie, por um lado, como professor de literatura, exprime sensibilidade com os ensaios escritos pelos seus alunos, ajuda-os, orienta, faz apontamentos, é dedicado, lê com eles passagens dramáticas, poéticas, agarra-se a um ensaio em especial, que mais à frente do filme, trata-se de uma produção feita pela sua filha; por outro lado, ele demonstra aspereza e teimosia em aceitar ajuda de sua amiga enfermeira que suplica a ele que vá ao hospital, pois seu estado de saúde é crítico. Prefere entregar-se a comilança desenfreada deixando o ambiente sujo, fétido, desorganizado. Mal consegue assear-se, seu apartamento é sempre escuro e sufocante.
Na vida de Charlie parece não haver espaço para luz, esperança ou salvação. Ele apenas sobrevive e passa os dias relembrando o passado, comendo e evitando as pessoas. Apesar de lecionar na modalidade on-line, ou seja, mesmo tendo uma tela que o separa fisicamente de seus alunos, ele desliga a câmera para não revelar sua condição.
Tentativas de ajudá-lo vão surgindo ao longo da narrativa, além da amiga enfermeira que o visita diariamente, há a presença regular de um rapaz que busca convertê-lo aos ensinamentos bíblicos e de um entregador de pizza, que todos os dias deixava duas pizzas grandes na porta de Charlie sem nunca poder vê-lo. O garoto tenta se aproximar, fazer contato, porém sem sucesso. É orientado pelo homem a pegar o dinheiro na caixa de correios e sair.
Sua filha Ellie expressa tempestuosa revolta contra o professor, pois carrega um sentimento de rejeição torturante ao ser trocada pelo amante de Charlie logo tão criança. Cresceu sem nunca sentir a presença de um pai. Insulta-o, agride-o com palavras, deixa bem claro que, agora adolescente, não precisa mais dele, afinal Charlie não consegue nem ao menos ficar em pé sem a ajuda do andador. Numa das cenas mais angustiantes do filme, Ellie com ódio, desafio o pai a ir até seu encontro, incita-o, provoca-o com xingamentos, zombaria. Ele até tenta, mas desaba logo em seguida, quebrando os móveis ao seu redor.
Entre idas e vindas de pessoas que vão até sua casa, sua amiga cuidadora, a ex-esposa, o rapaz da igreja, o entregador de pizza, sua filha, Charlie segue os dias entre conflitos diários, tentativas de reaproximação com Ellie, momentos de conversa e choro com a única amizade que preserva, graças à insistência por parte dela que ainda nutre esperanças de que ele se encaminhe para o hospital.
Mesmo a enfermeira dizendo que seus dias estavam contados, que ele definitivamente viria a óbito até o final da semana, Charlie segue mantendo seu propósito: aguentar até onde puder, mesmo sentindo terríveis dores do peito, agonizando aos poucos, buscando o ar que quase não entra mais em seus pulmões, até que tudo se acabe de vez.
Na película, Fraser teve se ganhar peso bem como passar por um longo e dedicado processo de maquiagem, que, como se sabe, é um dos caminhos de agraciamento da Academia, posto que alterações físicas significativas sempre são encaradas de forma receptiva. Lembramos, recentemente, o sucesso da atriz Nicole Kidman, ao usar um nariz artificial para interpretar a escritora britânica Virgínia Wolf, em “As horas” de 2002.
Voltando ainda o olhar ao passado, atuações não menos intensas são exemplificados por Robert De Niro em “Touro Indomável”, do lendário Martin Scorsese, além de John Hurt, ao encarnar o famoso e angustiado Joseph Merrick, em “O Homem Elefante”. No caso em tela, a despeito do impacto visual causado pelo aspecto do personagem, a partir do qual seus tormentos são presumíveis, a carga emotiva manifestada por seu intérprete causa um diálogo emotivo com o espectador, fazendo com que aqueles sofrimentos deduzidos, irrompam de forma sentida.
Se, por um prisma, a subjetividade do indivíduo, não raro, é encoberta pelo acesso que este permite ao exterior, a atuação, muitas vezes catalisadora de incômodo, conforme adiantado, produz, ao revés, a transferência de emoções íntimas. Tal é a força da trama e a esmerada forma de sua transposição à tela.
O último ato do longa nos deixa com esta imagem: Ellie, à porta, lendo para ele seu ensaio que tanto Charlie admirava (falava da história de Moby Dick), enquanto reúne todas as forças de seu pesado corpo para levantar do sofá sem o apoio do andador, na tentativa de caminhar até ela. Uma cena belíssima de redenção em meio ao caos do ambiente e a expressão de dor de Charlie.
Dor em todos os sentidos: de seu imenso corpo que impede os movimentos e tranca a respiração e dos sentimentos devastadores que o acompanharam nesse tempo de reclusão. Assim como na obra de Herman Melville, a dor e a obsessão do anti-herói rumo à vingança contra a baleia cachalote, materializada pelo capitão Ahab, a obsessão em “A Baleia”, é traduzida na força da superação e resiliência.
A obra do diretor Darren Aronofsky já flertava com o drama humano, insanidade, feições existenciais e complexidade dos caminhos psíquicos, a partir de títulos consagrados como “Réquiem For a Dream” e “Cisne Negro”. Contudo, a sensibilidade no tratamento de questões inquietantes sempre são renovadas nas mãos de habilidosos artesãos.
A aura teatral do material original, trata-se do roteiro adaptado da peça de Samuel D. Hunter, é preservado, se não, deliberadamente intentado, ao passo de quase se poder antever o ovacionamento derradeiro pela plateia. Novamente, solidifica-se a ideia de que arte e a indústria comercial fílmica podem ser tracejados em harmonia.
Reitera-se em tom de conclusão, que a narrativa do filme consegue ser delicada e perturbadora. Mergulhamos na aflição de Charlie e sofremos com ele na tentativa fracassada de libertá-lo daquele corpo que o aprisiona. Ao se deixar levar pela doença, ele encerra a sua história. Talvez assim, possa sentir plenitude ao menos uma vez: a da leveza de sua alma.
AS VÁRIAS VERTENTES DO HORROR EM “O BEBÊ DE ROSEMARY”
CINEMA E PSICANÁLISE
Por Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
É cediço que o horror pode se desvelar a partir de feições fantásticas, o típico monstro da Lagoa Negra, a criatura do armário, vampiros e lobisomens; ou mesmo, ampliar-se a partir de abordagens psicológicas pautadas no universo real.
Não raro, não tão real assim. Inclusive, hodiernamente, tais explorações são mais poderosas do que o medo incutido a partir do sobrenatural. O temor material, tangível, perpassa às percepções do ser humano fazendo com que seus próprios medos, frequentemente inconscientes, assomem de forma palpável, e, até mesmo, idealizável.
A partir dessa premissa, repise-se, o medo legítimo/empírico, é estimulado pelo próprio ser complexo – tal a característica precípua humana – direta ou indiretamente, como um desdobramento de sua interpretação, (ou distorção) da realidade que o circunda, como uma tendência explorada de maneira paralela à própria evolução histórica das sociedades.
A título de exemplo, nas décadas de 50 e 60, o temor de uma guerra nuclear aliada às inovações tecnológicas coroaram as produções de sci-fi no respectivo período, como um reflexo dos receios então contemporâneos. O fenômeno pode ser observado tanto de maneira explícita, retratado nos embates imaginários concebidos nos roteiros ominosos, seja a partir da potência rival na figura de inimigo, seja na figura de seres de outras galáxias em tons quase “lovecraftianos”, ou mesmo, implícita ou simbolicamente.
As faces rubras do temor comunista, a paranoia da manipulação de massas, entre outros aspectos, pode ser identificados consistentemente no filme Vampiros de Almas, primeira versão da franquia posteriormente intitulada de Os Invasores de Corpos; mas, quais invasores? Sobrenaturais? Políticos?
A pergunta ecoa com diferentes respostas; óbvias ou interpretativas, pois até mesmo o conceito de alien assimila significados distintos, ao indicar elementos oriundos de países estrangeiros. Decerto, ainda que a criação artística do horror ou sua manifestação nas mais variadas formas de ficção acentue contornos pautados na realidade, o sobrenatural, a despeito de tudo, nunca perdeu sua majestade.
Afinal, o terror, assim como qualquer forma de arte, pode ser analisado como uma espécie de escapismo. Todavia, um escapismo que incita medo, para o qual aquele que o consome caminha a passos largos e de mãos dadas à sua própria “atemorização”.
Já foi explicado que o cérebro funciona em paralelo e se atrai em relação ao mórbido e ao macabro, informações não usualmente processadas, o que explicita o fascínio humano pelo que, num primeiro momento, causaria asco ou repulsa. E, nesses meandros, o sobrenatural, envolvendo as várias percepções do mal, seja na figura do homem ou do demônio, sempre estiveram presentes nas manifestações artísticas.
Na obra cinematográfica O bebê de Rosemary, (1967), adaptada do livro homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde foi assassino John Lennon.
Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo.
Seria realmente um conciliábulo de bruxas em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial?
O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount. Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma película rasa como as que permeavam o período.
A despeito de não surgir como a primeira retratação do demônio no cinema, pode ser indicado como o filme de maior relevância até então. Nos anos vindouros, os argumentos derivados do tema possessões demoníacas se popularizariam a partir do lançamento de “O Exorcista”, (1973), de William Friedkin, baseado no fabuloso romance de William Peter Blatty, e, até mesmo, no Brasil, com o lançamento de “Exorcismo Negro”, de José Mojica Marins.
Inúmeros são os títulos que flertam ou abordam diretamente a temática, alguns com mais êxito, como “O Anticristo”, (1974) e as franquias “Profecia”, (1976), e mais recente “Invocação do Mal” (2013), além do spin-off Annabelle (2014). Estes últimos conquistaram grande número de admiradores do gênero, tendo como plano de fundo, histórias reais do casal de pesquisadores do sobrenatural Ed e Lorraine Warren.
A vereda pelo desconhecido sempre desperta algo dentro de nós, seja nas fantasias, na imaginação, nos sonhos. Aquilo que está nas entrelinhas, nos discursos enigmáticos, nas figuras formadas pela nossa mente ao avistar algo que não está claro, nas sombras assustadoras, indefinidas projetadas nos cantos dos ambientes. Seja consciente ou inconsciente, sempre buscamos algum tipo de interpretação para dar conta de nossas indagações cotidianas, de angústias existenciais, sobre a alma, a morte, o mundo espiritual, a existência de dimensões, viagem no tempo, vida após a morte, ou simplesmente, o nada. De qualquer maneira, a busca por explicações parece fazer parte da essência humana.
De volta ao longa O bebê de Rosemary, o que faz então, este verdadeiro clássico do cinema ser até hoje tão perturbadoramente instigante? É possível dizer que o filme causa estranheza, desconforto, angustia, sensações incomodas. Podemos arriscar ainda que, apesar de novas tentativas surgirem ao longo da história cinematográfica, dificilmente filmes contemporâneos conseguiram provocar em seus espectadores tantas emoções, e impactos.
Além disso, um detalhe muito importante: sem revelar quase nada ao público. Brilhantemente, o filme opta por seguir por uma narrativa velada e obscura, o que aumenta ainda mais a tensão em torno de Rosemary e sua gravidez. O que ela de fato carregava em seu ventre? Um ser maligno? Um monstro? Alguma criatura desconhecida? Algo poderoso? Hipóteses gravitam o tempo todo. Não é à toa que esta grande obra do terror é considerada referência em produção, roteiro, cinematografia, atuações, tendo ganhado o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Atriz Coadjuvante.
A trama flerta, principalmente no início, com nossos julgamentos: ora é crível a existência de um mundo oculto, ora apostamos numa interpretação mais cética, pois a ingênua e simpática protagonista parece nos dar pistas de que tudo não passava de alucinações e perturbações fruto de sua imaginação fértil. Porém, até os mais céticos, ao longo da narrativa, caem nas garras do sobrenatural, do nebuloso e curioso domínio do misticismo, da magia, dos fenômenos paranormais, das seitas e da prática de bruxaria.
Um dos pontos mais angustiantes do longo é o fato de que em nenhum momento a criatura é revelada. Mesmo que a narrativa seja um tanto lenta, o espectador prende-se ao imaginário pulsante daquela tenebrosa gravidez, alimentando um crescente mal-estar por algo que parece ser proibido e inalcançável. Ainda assim, queremos chegar até o final daquele enredo macabro na ilusória ideia de que tudo será solucionado e satisfatoriamente concluído.
O que vemos é justamente o contrário, ao nascer a criatura, o filme faz questão de focar na expressão aterrorizada de Rosemary ao olhar para o seu bebê. Feição esta que permanece em nossas mentes por muito tempo, nos provocando uma intensa sensação de pavor e, ao mesmo tempo, de grande falta, frustração, pois nunca saberemos o que de fato havia naquele carrinho. E bem sabemos que, psiquicamente, quanto mais há falta, maior parece ser o desejo. Quanto mais incógnita é a situação, mais voraz é a nossa vontade de conhecer.
De maneira inteligente e perspicaz, sem expor cenas sanguinolentas ou atos violentos, pessoas desfiguradas ou sorrisos enviesados, a obra aponta outras perspectivas que nos geram uma crescente estranheza, seja nas ambientações, a exemplo do edifício envelhecido e charmoso, nas personagens prestativas demais, nos diálogos com “pontas soltas”, esquisitas coincidências e uma gestação problemática sem motivos aparentes.
Podemos arriscar dizer que o filme nos coloca numa corda bamba: pendemos entre os limites da racionalidade e uma verdade absolutamente incomoda e de difícil digestão. Pior do que esperar que algo realmente aconteça, é sentir-se aprisionado numa sensação constante de tensão, na iminência de se realizar, mas que não se concretiza.
E é exatamente isso que O bebê de Rosemary faz com nossa mente: nos provoca uma sensação terrível que implora por um desfecho que encerrará nosso desconforto, mas que nunca se cumpre. Ficamos permeados por um mistério insolúvel que não cessa de nos perturbar. Deparamo-nos com o vazio, e que jamais o preencheremos.
No contexto atual, o subgênero — inclusive, a ânsia por rótulos e definições, nunca se mostrou tão ávida — recebe constantes e pontuais revisitações. Os suspenses psicológicos, por exemplo, “caíram nas graças” do público, intitulados de cult, assim como as faces do sobrenatural ainda se mantêm igualmente sedutoras, bem como o interesse pelo sombrio e por fenômenos aparentemente inexplicáveis. Desde o body horror de David Cronenberg, ao surrealismo de David Lynch, perpassando as sutilezas do cinema japonês no qual drama e horror se unem, o terror – humano ou sobrenatural – evolui em paralelo ao amadurecimento do cinema. E, por óbvio, do perfil de público.
Aos apaixonados por histórias que “deixam em aberto” seu desfecho, e a “conclusão” a cargo do imaginário dos espectadores, O bebê de Rosemary é um verdadeiro deleite. Já para aqueles que anseiam por finais explicáveis e obsessivamente interpretáveis, a experiência pode ser um tanto desoladora.
Marcus Hemerly entrevista a psicanalista Bruna Rosalem sobre o tema 'Saúde mental em tempos pré e pós pandemia'
“… todo analista que se preze precisa fazer sua análise pessoal com outro psicanalista para que ele consiga administrar seus próprios conflitos, ambiguidades, controvérsias, medos, inseguranças.” (Bruna Rosalem)
A saúde mental revela-se como um tópico de extrema importância, mormente em tempos modernos, antes e após o cenário pandêmico. A complexidade multidimensional da vida em sociedade, seus percalços e nuances, decerto, são a causa de fantasias, satisfações, pulsões e frustrações. Saber lidar com a rotina de forma a melhor balizar a saúde física e psíquica – afinal, mente sã em corpo são – pode revelar-se como uma tarefa hercúlea em épocas turbulentas. Inúmeras dúvidas surgem em relação ao momento certo de procurar acompanhamento psicológico ou psicanalítico, bem como as modalidades de assistência e suas formatações.
Neste espaço, trataremos sobre alguns questionamentos pertinentes, numa entrevista com a psicanalista Bruna Rosalem, que atua na cidade de Balneário Camburiú/SC.
1) Muitas pessoas têm a concepção de que a formação em psicanálise depende de uma especialização anterior em psicologia ou alguma vertente do estudo comportamental. Conte um pouco sobre o curso de psicanálise e os requisitos para sua prática.
Bruna Rosalem: Eu diria que a psicanálise é um percurso que participará da vida do analista por toda a vida, afinal, lidamos com as questões do psiquismo humano, emoções, sentimentos, sintomas, conflitos, e este compromisso exige estudos constantes e atualizações. A formação (ou deformação) do analista cumpre um tripé: teoria, análise pessoal e supervisão. Existem várias escolas de formação de analistas pelo país, inclusive, escolas pós-freudianas como a lacaniana, winnicottiana e assim por diante.
A base dos estudos sempre será de Freud, afinal, ele é o criador deste método investigativo e empírico que é a psicanálise. Ao longo do processo, o analista precisa passar pela análise pessoal continuamente, para que ele viva a análise e possa ser analista de outros, e claro, trabalhe as suas próprias neuroses, escute sua voz, acesse conteúdos inconscientes. Depois, o trabalho de supervisão de seus próprios pacientes com o seu analista é muito importante para aprender o manejo da técnica psicanalítica, lidar com a diversidade, com a contratransferência, debater com seu supervisor, diversas problemáticas trazidas pelos analisandos.
Para fazer o curso é necessário graduação completa em qualquer área do conhecimento. Cabe ressaltar que a psicanálise não é um ramo da psicologia. São vertentes muito diferentes. Durante os estudos, o futuro psicanalista verá se ele realmente tem perfil para esta profissão tão instigante e desafiadora. Diria que é preciso ter a mente aberta, trabalhar os julgamentos, pré-conceitos, ser paciente, aprender a ouvir, ter sede pelo conhecimento, lidar com o não saber, com as nuances da análise e exercitar o equilíbrio emocional.
2) Em contraposição à errônea noção de que numa primeira sessão de análise, o paciente seria confrontado e, por consequência, identificados todos os seus problemas e limitações, sabe-se que as ‘provocações’ e indagações conduzem à autodescoberta. Como se estimula e molda-se tal condução do analisando durante a terapia?
Bruna Rosalem: Em psicanálise trabalhamos a associação livre, que é, basicamente, o analisando falar aquilo que vier à mente, sem roteiros, sem julgamentos, não há certo nem errado, e que ele possa se sentir o mais à vontade possível, vencendo aos poucos as resistências, os medos e as barreiras que, consciente ou inconsciente, ele coloca durante a sessão. O trabalho de análise está em pontuar, oportunamente, na fala do analisando trazendo conteúdos inconscientes, inclusive, os sonhos que são conteúdos importantes.
A escuta atenta do analista é de extrema importância, chamamos a isso de tensão flutuante. Deixamos o analisando falar livremente no mar de ideias e palavras, buscando captar contradições, atos falhos, escolha de palavras, frases colocadas e, assim, propiciar ao analisando fazer elaborações e insights dentro dos próprios conflitos que vivencia. Progressivamente, a transferência vai sendo construída entre analista e analisando, possibilitando vínculo, confiança, acolhimento, trocas, diálogos e intervenções.
3) O que se verifica, principalmente no cenário incerto delineado pela pandemia, como elemento deflagrador da procura pela análise? O que as pessoas buscam, num primeiro momento? E seria uma busca consciente?
Bruna Rosalem: Existem diversos motivos pelos quais as pessoas buscam uma terapia, por exemplo, crises de ansiedade, conflitos de relacionamento, familiares, compulsões, obsessões, vícios, etc. No caso da psicanálise, sempre falo que vamos em busca daquilo que está por trás dos sintomas, a sua gênese. O alívio dos sintomas em psicanálise é um ganho secundário, por consequência, eu diria, pois não é o foco da análise, mas sim, a origem dos afetos, os conteúdos inconscientes que estariam na raiz dos sintomas, dos conflitos, das repetições, das ações, dos comportamentos.
O que acontece, geralmente, é que a pessoa quando procura ajuda é para falar de algum momento atual que esteja vivenciando. Porém, conforme o trabalho de pontuação vai se desenrolando, é possível perceber que tais manifestações têm suas origens em algo que ficou marcado em algum lugar do inconsciente e que está provocando muito sofrimento. E este inconsciente é atemporal, não é cronológico. Então há muitos comportamentos conscientes e inconscientes que a pessoa expressa que é de difícil compreensão para quem sente e vivencia. Assim, a psicanálise vai ajudar o analisando a participar da própria dor e abrir caminhos e possibilidades para lidar com isso.
4) Bruna Rosalem, como profissional, existe um liame de experiências pessoais ligadas à sua própria vivência e história, aproveitáveis no lidar com os pacientes, ou a apreciação das questões afetas ao indivíduo analisando devem adstringir-se ao plano teórico científico?
Bruna Rosalem: Apesar de a teoria ser imprescindível no manejo técnico das sessões e para o conhecimento do sofrimento humano, existe a pessoa do analista. E este deve buscar a sua maneira de ser, sua singularidade, seu jeito de lidar com os analisandos. Sempre falamos em trabalhar a neutralidade em sessão, ou seja, estar diante das queixas dos analisandos, suas dores, angústias, e saber que naquele momento você as recebe, as aceita, as acolhe e está preparado para ajudar, mas que nada daquilo te pertence, nem mesmo o próprio analisando. Isto é de grande auxílio para saber ouvir as mais complexas situações e manter a postura e o distanciamento profissionais que a situação exige.
5) Geralmente, os pacientes demonstram uma resistência em dirigir o ‘microscópio’ a si próprios? Nesse passo, como são vencidas as barreiras ao autoconhecimento, que servirão como pilares à identificação de suas crenças e verdades inabaláveis?
Bruna Rosalem: Posso dizer que não é nada trivial fazer análise, estar neste processo de redescobertas, desconstruções, de vencer as resistências, de confiar naquela pessoa que está ali para te ouvir sem julgamento. Leva certo tempo, depende de cada sujeito, para que ele se sinta o mais à vontade possível em sessão, e aos poucos, conseguir quebrar as barreiras do ego, sejam elas conscientes ou inconscientes. Dessa forma, gradativamente, ele conseguirá expressar o seu real conflito e, muitas vezes, descobrir que seus comportamentos e afecções vem de conteúdos nunca antes explorados. É necessário dedicação às sessões, paciência, e principalmente, suportar a sua própria verdade. Para o analista, é fundamental demonstrar empatia, exercitar o ‘rapport’(1)e manejar a contratransferência (2).
6) Em tempos de pandemia, uma nova sistemática de interação e/ou ausência de interação social (ao menos sua modulação), revelou suas feições, desencadeando uma gama de elementos fragilizadores do psiquismo. Qual a importância da terapia nesse cenário? E no dia a dia, quando/como identificar o momento de procurar ajuda?
Bruna Rosalem: Neste cenário pandêmico, a terapia se mostrou ainda mais fundamental para a saúde mental de todos. Afinal, muitas pessoas sentiram imensa dificuldade em entender este momento, readequar sua rotina, abdicar de muitos prazeres, evitar certas atitudes, aprender a viver novas formas de relacionamento, estudos, trabalho. Além, é claro, do medo que sempre pairava sobre nossas cabeças, aumentando as preocupações, pânico e ansiedade em estar contaminado com o vírus, e possivelmente, falecer. A terapia neste caso, foi como um refúgio para os sujeitos conseguirem lidar com esta situação alarmante, permitindo através de suas falas e expressões livres, colocar todo o sofrimento que estavam passando. Este processo permitiu grande alívio e maior controle da ansiedade.
Não há, na minha visão, um momento certo para procurar terapia. Não precisa haver grandes aflições para que o sujeito inicie o tratamento. No entanto, o que mais vemos, são pessoas que procuram ajuda quando o sofrimento está beirando o insuportável e prejudicando a qualidade de vida.
A escolha do sujeito é muito particular, isto é, nem sempre ele busca a análise de algo mais profundo, embora seja este o objetivo da psicanálise. Às vezes, o sujeito deseja apenas desabafar, se livrar de algum incômodo, de perturbações que estão implicando em sua vida no momento. Ninguém é obrigado a ficar, a psicanálise é livre, vem quem quer e fica quem deseja continuar.
7) O psicanalista, como ser humano, necessita de um olhar externo às suas questões e conflitos? Fale um pouco se a análise por outro profissional é relevante ou seria suficiente ou eficaz a ‘autoanálise’?
Bruna Rosalem: Freud, pai da psicanálise, fazia sua autoanálise. Como não somos Freud, vamos para a análise com um profissional. Brincadeiras à parte, todo analista que se preze precisa fazer sua análise pessoal com outro psicanalista para que ele consiga administrar seus próprios conflitos, ambiguidades, controvérsias, medos, inseguranças. Além deste processo auxiliá-lo em sua prática profissional, ele também necessita desnudar tudo aquilo que o perturba, afinal, o analista é um ser humano falho como qualquer um. Ele possui o conhecimento da psique humana, porém isto não o isenta de ter suas próprias questões e conflitos emocionais. É fundamental o reconhecimento pelo analista de suas perturbações e incongruências, para que ele possa seguir analisando seus pacientes, manejando a transferência e a contratransferência a seu favor.
N.E.
(1) Rapport é uma palavra que tem origem francesa e vem do termo rapporter que significa “trazer de volta”, entretanto, dentro da PNL (Programação Neuro Linguística) pode ser entendido como o estabelecimento de confiança, harmonia e cooperação numa relação.
(2) Contratransferência: emoções e sensações que o terapeuta vive ao longo de uma sessão. Trata-se de uma reação interna resultante da relação com o seu paciente e da forma como o terapeuta é impactado pelas histórias dele. Desse modo acontece uma identificação pessoal, consciente ou não, sentida intimamente pelo próprio analista com o seu analisado.
Bruna Rosalem é Psicanalista Clínica, Mestre em educação, ensino e práticas culturais.
Atendimento presencial e on line. Grupos terapêuticos. Professora e palestrante.
Contatos:(47)999626203
contato@psicanaliseecotidiano.com.br
direct no @psicanalistabrunarosale
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'A Terceira', exposição com 26 obras inéditas da artista visual Marcia de Moraes estreia dia 28 de agosto no CCBB-SP
O nome da exposição é uma referência à conferência feita por Jacques Lacan no VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, no dia 1º de novembro de 1974
Em “A Terceira”, a artista Marcia de Moraes conjuga questões da arte e da psicanálise. Através do desenho, a artista encontra destino ao que transborda: para o vazio e para o excesso, para o que é radicalmente seu e para aquilo que é pura alteridade. As perguntas que seus desenhos e colagens sustentam encontram-se nas entranhas e nas vísceras, no dentro e no fora, na superfície e na espessura das coisas. No traçado das primeiras formas, Marcia de Moraes abriga o espaço em branco. O intervalo revelado pelo traço do grafite e a cor como preenchimento desfiguram o figurativo, fazendo com que as coisas possam se imiscuir e perder seu contorno fixo.
O nome da exposição é uma referência à conferência feita por Jacques Lacan no VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, no dia 1º de novembro de 1974. Na conferência que também recebeu o nome “A Terceira”, Jacques Lacan trata de um ponto central para a psicanálise: a maneira singular como cada sujeito escreve um corpo. “Dentro da minha interpretação, ele falou sobre o aquilo que não cabe dentro das pessoas. Provavelmente ele está falando de pulsões emocionais, mas no meu caso, eu transponho isso para o desenho, quando eu digo que o que eu desenho é aquilo que não cabe dentro de mim” comenta a artista.
A exposição acontece no subsolo do CCBB-SP, ocupando inclusive o antigo cofre da agência, que hoje se tornou um dos espaços expositivos mais desafiadores da cidade. O subsolo tem área útil de 133 metros quadrados e o espaço interno do cofre possui 33 metros quadrados. Toda essa área do prédio construído em 1901 será ocupada pelas obras inéditas de Marcia, desenhos e colagens criados especialmente para a exposição.
“O cofre é um lugar que sempre me chamou muito a atenção, ele tem um formato quase octogonal que me interessa muito, ele permite que o público tenha uma proximidade muito intensa com o desenho, assim como eu tenho no ateliê. Isso acontece pela própria geografia do espaço.”
Desde 2010 Marcia direciona sua arte na pesquisa do desenho.” Já ouvi muito que o desenho não poderia ir além do que um determinado tamanho do papel, ou de uma determinada situação de esboço, de planejamento, e eu insisti de uma forma muito teimosa, e continuo insistindo até hoje, e essa exposição mostra o quanto isso é possível, acho que ela é o lugar mais longe que já cheguei no meu trabalho com o desenho.”, completa.
“A Terceira” fica em cartaz de 28 de agosto a 04 de outubro, todos os dias, das 9h às 18h, exceto às terças, e contará com um catálogo virtual completo.
Texto crítico da exposição “A Terceira” de Marcia de Moraes
28.8.21 a 04.10.21 CCBB São Paulo
A vertigem de escrever um corpo no abismo do mundo
Bianca Coutinho Dias – psicanalista e crítica de arte
“A Terceira”, exposição de Marcia de Moraes no Centro Cultural Banco do Brasil, conjuga questões da arte e da psicanálise trazendo para o centro de sua obra o corpo pulsional: dentes, seios, folhas, colunas vertebrais, troncos de árvores – vibrações e aspectos disruptivos saltam do seu lugar de origem e se deslocam para as obras expostas. Através do desenho, a artista encontra destino ao que transborda: para o vazio e para o excesso, para o que é radicalmente seu e para aquilo que é pura alteridade.
Na conferência que também recebeu o nome “A Terceira”, Jacques Lacan trata de um ponto central para a psicanálise: a maneira singular como cada sujeito escreve um corpo.
“Quem sabe o que se passa no seu corpo?”, interroga o psicanalista, que diz ainda: “A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo”. Com Lacan retomamos a novidade freudiana acerca da corporeidade. Na psicanálise, o corpo não se reduz ao campo da biologia, mas se faz a partir da linguagem.
Marcia de Moraes revela que há maneiras de se desdobrar o corpo, de ficcionalizar o que nele incide. Avançando pela produção da artista vemos que um léxico é inventado, e o desenho, que começa sem projeto prévio, encontra caminho na surpresa e no espanto. As perguntas que seus desenhos e colagens sustentam encontram-se nas entranhas e nas vísceras, no dentro e no fora, na superfície e na espessura das coisas. Até onde o corpo suporta? Como se escreve um corpo? De que matéria somos constituídos?
O gesto da artista se delineia na vitalidade explosiva do traço, que abriga também espaços vazios e o intervalo entre a nascente da imagem e sua inscrição. Diferentes pedaços do real vêm causar desejos e produzir efeitos, como uma condição que a leva a buscar um dispositivo topológico e discursivo que é uma espécie de profanação, como uma linguagem que se emancipa de seus fins figurativos e se prepara para um novo uso, para uma nova experiência do olhar.
No livro “O que vemos, o que nos olha”, Georges Didi-Huberman nos convida a inquietar a visão diante da obra de arte e experimentar o que não vemos. Na obra de arte pode haver algo que atinja nosso olhar, que chame à perda de nossas certezas sobre o objeto e nos lance ao espaço em que possa vicejar a invenção.
No traçado das primeiras formas, Marcia de Moraes abriga o espaço em branco. O intervalo revelado pelo traço do grafite e a cor como preenchimento desfiguram o figurativo, fazendo com que as coisas possam se imiscuir e perder seu contorno fixo. Dos desenhos às colagens há um movimento de sístole e diástole. Se nos desenhos seus acenos são de grande amplitude e expansão, nas colagens há outro tipo de gesto, um outro tempo.
Numa dimensão de hibridismo e de inclassificável, seu trabalho não se deixa capturar com facilidade. O modo de preencher os espaços com cores se aproxima do pictórico. Usando sua matéria pulsátil – o lápis de cor – a artista encontra, na mistura sensível, algo de uma estética e uma ética, como no desenho “O mormaço e o azul”: uma abertura em um espaço tramado entre a cor e o fenômeno da natureza que se experimentam dialeticamente. Ou ainda em “Onda solta”, que busca na canção de Chico Buarque a evocação de um movimento encontrado no sinuoso de uma aparição.
As referências partem de lugares diversos: o ambiente natural, uma música, um poema ou mesmo a obra de outra artista, como em “Altos e baixos after Louise”, uma homenagem à Louise Bourgeois. Seu trabalho cria dobras, desdobra-se, duplica e mistura discursos numa construção labiríntica que concede voz ao inanimado. Uma irradiação incessante acontece nas colagens feitas de recortes de desenhos, conjugando espanto a uma ironia fina, que comparece já nos títulos de obras como “Octopus”, “Tava cheio, vazou”, “Ups and downs”, “Argolas Tropicais”, “Sinuca”. Os próprios nomes dados sabem perverter a linguagem, jogam com as ambiguidades e as circularidades da vida: em alguns dos trabalhos, os “Anéis”, o “Carrossel” ou mesmo os “Filetes” que comparecem dos títulos à forma, injetam tremores na nomeação, sustentando algo de delirante que pode encontrar o indizível, o inominável, o real, o ponto em que toda significação escoa.
Em suas profanações, Marcia de Moraes ousa desinvestir as camadas de sentido até o osso, escrevendo uma geografia corporal própria que enoda natureza e cultura, botânica e poesia, onde ranhuras desenham horizontes improváveis.
Um furacão ou a chuva podem criar derivações convulsivas do afeto como em “Chuva choro”, obra em que forma, cor e conteúdo conversam e criam camadas de acontecimento e espelhamento entre a vertigem do sensível e a vibração líquida da natureza. Elementos se repetem criando uma cartografia própria: um conjunto aberto sem lugares definitivos, uma resposta ao real que abriga o estranhamento necessário para se produzir algo, onde o irrepresentável e o impensável podem aparecer.
“Êxtase” – trabalho em que o que conecta é também o que separa – traz imagens que dizem do nascimento das coisas, e reverberam uma experiência vertiginosa e a sensação de certo embaraço interpretativo. São formas com enorme carga de sentido mas sempre, em alguma medida, inacessíveis ou inassimiláveis. Trata-se do feminino em convulsão, como no “Êxtase de Santa Teresa”, escultura de Bernini que reverbera um corpo pulsional marcado pela linguagem. E como em Loie Fuller – atriz e dançarina que desenha movimentos envolvida em gestos e tecidos – algo de dança serpenteia a agudeza do trabalho de Marcia de Moraes, feito de dobras e curvas decompostas, a partir de uma compreensão que articula o invisível ao visível.
Em suas obras, que agora se apresentam de maneira intimista – expostas, mas guardadas em cofre-forte, – podemos entrever a relação viva da cadência própria do feminino, como num poema de Hilda Hilst:
Por que não posso pontilhar de inocência e poesia
ossos, sangue, carne, o agora
e tudo isso em nós que se fará disforme?
E, daí, tocar um corpo em sua arquitetura, em sua paisagem: trechos de vida escritos no abismo do mundo.
Sobre Marcia de Moraes
Marcia de Moraes
São Carlos, Brasil, 1981.
Vive e trabalha em São Paulo, Brasil.
Marcia de Moraes busca na abstração do traço e no preenchimento com lápis de cor o endereço poético para suas criações. Sua obra tem a coesão dos procedimentos que emprega; primeiro se dedica ao esboço dos traços feitos com grafite, fluidos e ágeis, para depois preencher com cores intensas as possibilidades delineadas — sem repetir formas ou combinações cromáticas. Seu trabalho é um turbilhão visual em constante transformação, com matizes únicas e traços expressivos. Suas obras articulam-se em dípticos e polípticos nos quais os traços e cores atravessam os limites do papel, por vezes encontrando continuações óbvias e por ora encontrando elementos díspares. Nas ocasiões em que a artista não se satisfaz apenas com o plano bidimensional ela o corta, fragmenta e o remonta criando uma nova dinâmica entre as partes. Nessas colagens, os pequenos desenhos redimensionados pela cisão, quando remontados num jogo de encontros improváveis em diferentes planos, ganham uma tridimensionalidade inesperada. Tal exploração tridimensional culminou em sua recente pesquisa em esculturas feitas em cerâmica esmaltada, nas quais está presente o vocabulário imagético que vem desenvolvendo há dez anos em seus desenhos e colagens: línguas, dentes, ovos, cordões umbilicais, estruturas cilíndricas e circulares, ossos, caules, caudas, entre outros.
Marcia de Moraes é Bacharel e Mestre em Artes pela Unicamp. Dentre suas exposições individuais destacam-se: História do Olho, Galeria Leme, São Paulo (2018), O Sopro, Centro de Arte Contemporânea W, Ribeirão Preto, Brasil (2018); Os fósseis ou as laranjas, Oficina Cultural Oswald de Andrade, São Paulo (2016); Elaine Arruda e Marcia de Moraes: Cheio de Vazio, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo (2014); À Deriva no Azul, Carpe Diem Arte e Pesquisa, Lisboa, (2011); Saint Clair Cemin / Marcia de Moraes: Correspondance Bresiliènne, VL Contemporary, Paris, França (2011); Marcia de Moraes, Centro Universitário Maria Antonia, USP, São Paulo (2009-2010) . Dentre as coletivas, destacam-se: O Pequeno Colecionador,Carbono Galeria, São Paulo (2020); Studiolo XXI – desenho e afinidades, Fundação Eugénio de Almeida, Évora, Portugal (2019), Intercâmbios / Tempos Cruzados, SESC Quitandinha, Petrópolis, Brasil (2018) Acervo MARP- Aquisições Recentes, Museu de Arte de Ribeirão Preto, (2018); Library of Love, Contemporary Arts Center, Cincinnati, EUA (2017). A artista já fez três residências artísticas: em 2010 foi residente em La Cour Dieu em La-Roche-en-Brenil, França; em 2011 esteve no Carpe Diem Arte e Pesquisa em Lisboa e em 2013 recebeu uma bolsa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil para fazer uma residência na Fundación Ace em Buenos Aires, Argentina. Em 2011 ganhou o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, São Paulo. Em 2016 foi contemplada com o Pollock-Krasner Foundation Grant, Nova York, EUA. Teve um livro sobre sua obra publicado pela editora Cobogó, Rio de Janeiro, em 2017. Atualmente prepara sua próxima exposição individual A terceira, que acontecerá no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo, entre agosto e outubro de 2021. www.marciademoraes.com.br
Marcia de Moraes
Chifre de Veado, 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
80 x 88 cm
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Marcia de Moraes
Sinuca, 2018
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
86 x 74 cm
Coleção Particular, São Paulo
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Marcia de Moraes
Ups and downs, 2019
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
77 x 70 cm
Coleção Particular, São Paulo
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Marcia de Moraes
Onda Solta, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
150 x 185 cm
Coleção Particular, São Paulo
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Marcia de Moraes
O êxtase, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel 153 x 180 cm (díptico)
Coleção Particular, São Paulo
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Marcia de Moraes
Chuva Choro, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel 140 x 430 cm (tríptico)
Foto: Filipe Berndt
Cortesia Galeria Leme, São Paulo
Serviço:
A Exposição
A Terceira, de Marcia de Moraes
De 28 de agosto de 2021 a 04 de outubro de 2021.
Todos os dias, das 9h às 18h, exceto às terças.
Apoio Institucional: Galeria Leme
Texto crítico: Bianca Coutinho Dias
Projeto de Iluminação: Carlos Fortes
Programação visual: Thalita Munekata
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Video: Laerte Késsimos
Classificação indicativa: livre.
Entrada gratuita.
Visitação com hora agendada pelo site / app Eventim, mediante disponibilidade.
Todas as obras são inéditas. São 26 trabalhos entre desenhos e colagens.
Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo –
Rua Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico, Triângulo SP, São Paulo–SP
Aberto todos os dias, das 9h às 18h, exceto às terças.
Acesso ao calçadão pela estação São Bento do Metrô
Informações: (11) 4297-0600
Estacionamento Conveniado e Translado: O CCBB possui estacionamento conveniado na Rua da Consolação, 228 (R$ 14 pelo período de 6 horas – necessário validar o ticket na bilheteria do CCBB). No trajeto de volta, tem parada na estação República do Metrô