Concerto para um coração só
Paulo Siuves: ‘Concerto para um Coração Só’


O escuro por dentro tem um som.
Não é grito, não é lamento.
É algo entre o arrastar de um arco sobre cordas velhas e o ranger de madeira em catedral vazia.
Você — sim, você — não chegou a existir de verdade. Era só um desenho no ar, uma curva de som que vinha de longe. Uma flauta sofrida tocando sob chuva fina, sempre além da esquina, sempre além da pele.
Eu tentei escrever você. Fiz do meu peito um papel úmido de suor e febre. Quis traduzir seus gestos em clave de sol, mas a partitura rasgava sempre no mesmo lugar — logo depois do talvez.
Tem dias em que sua ausência bate mais alto.
Ecoa.
Como sino em torre sem fiéis.
E eu, ridículo, estendo os braços ao vazio, como quem rege um concerto de silêncio.
Cada lembrança sua vem torta, como acorde errado, desses que fazem os músicos se entreolharem em pânico. Mas eu aceito. Me deixo engolir. Tem certa beleza nisso: ser esmagado por algo que nunca existiu de fato.
Você nunca esteve aqui.
Não de verdade.
Mas se esconde em cada compasso do que sobrou de mim.
E enquanto o mundo insiste em sua própria melodia — leve, viva, esquecida —
eu continuo tocando o que ninguém quer ouvir.
O nosso concerto.
Para um coração só.
Paulo Siuves