‘Aparição’, uma reflexão sobre a vida em nossos dias
Elaine dos Santos:
Crônica: ‘Aparição’, uma reflexão sobre a vida em nossos dias
Existem algumas obras literárias que marcam a nossa experiência como leitores. Ainda durante a graduação, por conta e risco da professora de Literatura Portuguesa, eu li o romance ‘Aparição‘, do escritor português Vergílio Ferreira. Confesso que, naquele semestre, eu estava cursando quatro disciplinas de Literatura, o que determinava a leitura de, no mínimo, uns 20 romances e uma infinidade de contos, assim sendo, institui um caderno de resumos: autor, obra, personagens, tempo, espaço, resumo do enredo.
Mas ‘Aparição’ me derrubou. Situado no período que se chama Neorrealismo português, o romance foi publicado, pela primeira vez, em 1959 e traz, evidentemente, a crítica social que caracteriza aquele período literário. No entanto, é a história de um filho que volta às terras paternas após a morte justamente do seu pai – o que seria um acerto de contas, por questões de herança, mas acaba se tornando um acerto de contas com o próprio passado.
Dias atrás, li, em um site qualquer, a história de um menino equatoriano que foi até o cemitério, junto ao túmulo da mãe e ‘mostrou-lhe’ as notas obtidas na escola. Depois, deitou-se ao lado, como se buscasse um afago.
As duas ideias juntas despertaram uma reflexão: temos vivido tempos de morte, mortes físicas – e o meu Rio Grande do Sul tem presenciado tragédias inimagináveis: ventos, raios, enchentes, sem contar que as lavouras de arroz ainda não foram plantadas -, mas também mortes simbólicas. Quantas supostas amizades foram desfeitas nos últimos anos? Quantos irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, deixaram de se falar, não conseguem estabelecer um diálogo? Quanta indiferença entre pessoas que conviveram uma vida inteira!
Sou filha de um pai extremamente bem-humorado e, ao seu bom humor, uni a ironia de Machado de Assis e tantos outros literatos que acrescentei às minhas leituras como professora de Literatura. Não se pode mais ser irônico na atualidade, as palavras, as frases, as expressões precisam ser ditas/escritas em seu sentido denotativo, assim como estão no dicionário, para que sejam compreendidas e não gerem dúvida, mal-entendidos e causem desgastes desnecessários.
Qual a relação com o menino equatoriano? Tenho a percepção cotidiana que se banalizou a morte e que todos devem estar ‘plenamente recuperados’ logo após o sepultamento de um ente querido. Saudade? Passa! Luto? Passa! Não passam e os consultórios de psicólogos e psiquiatras estão lotados de pessoas que tentam refrear sentimentos para “acomodarem-se” a uma sociedade da ‘felicidade tóxica’, do viver o hoje sem consequências.
Neste aspecto, insere-se Alberto, o protagonista de ‘Aparição’. Quantas palavras silenciadas, quantos abraços não dados ficam pelo caminho. Quantas birras, quantas teimosias impedem o diálogo. Quantas incompreensões que somente são aprendidas e compreendidas com a maturidade. O homem Alberto não é mais o menino ou o jovem Alberto, mas um homem que enfrentou dissabores, vicissitudes e colheu sofrimentos, porém também conheceu o prazer das alegrias.
O que ficará depois de nós e dessa ‘imperiosa necessidade’ de mostrar alegria para gerar ‘likes’? Quantas crianças estão ficando pelo caminho sem pai e/ou sem mãe, em que medida o sofrimento delas nos afeta? Quanto tempo temos dedicado para ouvir o outro, para saber sobre as dores do outro, quanto tempo temos negado ao outro, determinando que ele “se encontre por si próprio” ou recorra a terapias, psicoterapias? Ou simplesmente chore? Ou…
Elaine dos Santos
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