Uma roda que gira, mas segue imutável

Elaine dos Santos: ‘Uma roda que gira, mas segue imutável’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem gratuita do Canva - 30 de abril de 2025 às 10h
Imagem do Canva – 30 de abril de 2025, às 10h

Recentemente, tive a oportunidade de conversar com um professor da disciplina da História e pesquisador da ocupação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul, estado da federação no qual resido e conheço parte da História, porque a Literatura tem-na representado em diferentes obras.

            Na escola, entrelinhas, parecem-nos afirmar que o estado mais meridional do Brasil sempre foi território português, desde que Pedro Álvares Cabral chegou à Bahia em 1500 e, claro, não fomos acostumados a questionar essas informações dadas como verdadeiras.

            Não faz muito tempo, li postagens em redes sociais perguntando o motivo pelo qual não se ‘comemorava’ mais o dia do índio. Como escreveu Olavo Bilac: “Ora (direis) ouvir estrelas”, como desconheceis a Constituição Cidadã de 1988 e as escolhas dos povos originários do teu país? Ora, por que precisas ler, refletir, questionar, não é mesmo?

            A grande obra romanesca que procura abarcar a História oficial sul-riograndense, fazendo-o do ponto de vista ficcional, é a trilogia de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Contudo, o ponto de partida é a presença de tropeiros paulistas na região, destinados à preia do gado, isto é, caçar (talvez, laçar) e conduzir bois e mulas para as feiras no interior paulista, que se destinavam à venda de charque, bem como mulas para o transporte nas Minas Gerais, no tempo do apogeu da mineração.

            Talvez sobre o período áureo de Vila Rica (atual município de Ouro Preto), tenhamos uma obra satírica que nos conceda uma visão menos formal, menos romanesca daqueles tempos. Trata-se de Cartas Chilenas, composta por diversos poemas dotados de extrema ironia, obra atribuída a Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Critilo, descrevendo as condições sociais, políticas, econômicas em Santiago do Chile, na verdade, Vila Rica, e os desmandos de seu administrador, Fanfarrão Minésio – o governador da Capitania de Minas Gerais – e a corrupção em seu governo. As Cartas são endereçadas a um interlocutor que residiria em Madri, Claudio Manoel da Costa, cujo pseudônimo era Doroteu.

            Entretanto, retomando a conversa com o meu interlocutor versado em História, aprofundamo-nos no tema da violência que marcou a ocupação do Rio Grande do Sul. De novo, recorro à Literatura e ao conjunto de textos de Contos gauchescos, obra de Simões Lopes Neto, cujo narrador Blau Nunes não nos deixa esquecer que a violência estava presente nas guerras, mas também nas corridas de cancha reta, nos amores não correspondidos ou nas traições amorosas.

            Esse tom belicoso, combativo, fez inúmera vítimas em solo gaúcho, independente da forma como a ficção o representasse.

No meu município, situado na região central do estado, há uma ponte em ruínas, cujas tábuas que uniam os pilares foram queimadas entre 1893 e 1895, num dos mais violentos enfrentamentos ocorridos nessas terras, a Revolução Federalista, também chamada Revolução da Degola, em que os adversários eram, de fato, degolados.

Necessariamente, essas conversas derivam para o mundo ocidental, que melhor conhecemos (ou achamos que conhecemos), afinal, Edward Said já nos ensinou que o Oriente é uma construção narrativa do Ocidente.

Quantas guerras estão em andamento no mundo? Quantas guerras temos conhecimento que estão em andamento no mundo hoje? Poucas pessoas sabem, mas há um território em algum lugar em que estão mulheres e filhos/filhas de homens, de diversas nacionalidades, que pertenciam ao Estado Islâmico e morreram, inclusive, em missões suicidas.

A questão é o que fazer com crianças e adolescentes ‘sem pátria’? Sim, a pátria de suas mães ou de seus pais teme recebê-los. As mães não querem apartar-se dos filhos. Eles configuram uma responsabilidade para os territórios que os abrigam. Esses espaços constituem algo semelhante a campos de concentração?

Finalizamos com o assunto que domina os noticiários. Incontáveis chacinas nos últimos 30 anos no Rio de Janeiro, mas o crime só cresce. A minha primeira lembrança de uma facção remonta à Falange Vermelha, na década de 1980, que se transformou em Comando Vermelho.

Achille Mbembe e sua necropolítica acabaram sendo a ‘explicação’, se é que ela existe, para a violência contemporânea – particularmente, no século XXI (21).

Lembrei-me que, em 1995, a escritora Patrícia Melo, publicou o livro O matador, que se tornou o filme O homem do ano, em 2003. O tema? Na mesma linha de Rubem Fonseca, a violência urbana. Maiquel, o protagonista, torna-se um criminoso brutal, aplaudido pela população, bem pago pelos mandantes dos crimes, até a sua derrocada, tornando-o vítima da mesma violência que ele protagonizava.

Elaine dos Santos

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Entre o céu e o fuzil

Clayton Alexandre Zocarato: ‘Entre o céu e o fuzil’

Clayton Alexandre Zocarato
Clayton A. Zocarato
Imagem criada por IA do Grok
Imagem criada por IA do Grok

O sol nasce cedo demais no alto do morro. A luz bate nas lajes como quem cutuca um ferido que ainda dorme.

Lá embaixo, a cidade desperta com café passado e trânsito engarrafado; aqui em cima, o dia começa com o eco metálico do primeiro tiro da manhã. 

Ninguém se espanta. A vizinhança aprendeu a distinguir o calibre pelo som.

Na viela da Dona Juraci, o portão ainda guarda as marcas de bala da semana passada. Ela varre o chão como quem reza.

Diz que limpar o sangue do menino Caíque foi o pior trabalho da vida — e olha que ela já trabalhou em casa de madame, limpando sujeira de festa e de culpa. 

Agora, o pó é outro: não o do tapete, mas o que corre pelas veias dos meninos do beco, embalado em sacolés de cinquenta.

O cheiro de café se mistura ao da pólvora. 

Na birosca do Zeca, a televisão fala de política e de corrupção — palavras grandes demais pra quem vive espremido entre o morro e o esquecimento.

O problema do Brasil é a violência, diz o âncora, engomado e seguro atrás do vidro. Aqui, a frase soa como piada. 

A violência não é o problema — é o ar que se respira. O problema é não poder parar de respirar.

As crianças jogam bola no campinho de terra. 

A trave é de cano velho, a bola, remendada com fita isolante. Lá em cima, dois homens observam. Estão armados, mas parecem entediados.

Um deles, de apelido Muringa, mastiga um chiclete e diz que queria ter sido jogador também. 

O outro ri, dizendo que no morro, quem chuta bola demais acaba chutado pela vida. 

Eles guardam o território, o ‘movimento’, a fronteira invisível que separa o asfalto do abismo.

E é curioso: aqui, as fronteiras são feitas de medo, não de muros. Todo mundo sabe até onde pode ir. A linha entre o ‘deles’ e o nosso é mais sagrada que mandamento.

Cruzar o beco errado é cometer pecado mortal. Mas, diferentemente da Bíblia, aqui o perdão não vem depois da confissão — vem com chumbo.

No domingo, o bar do Valdir enche.

O samba come solto, o churrasco fumaça o ar e, por um instante, o morro esquece que está sitiado. 

Dona Lúcia dança, o pequeno Jonatas brinca de vender cerveja, e o riso corre solto. Até que o rádio chiado de um dos rapazes estala.

Uma mensagem curta, sussurrada no chiado das ondas: “Avisaram que o caveirão tá subindo”. O samba morre no mesmo acorde.

O silêncio que segue é pesado como caixão. 

Cada um corre pra sua toca, cada olhar procura refúgio. 

Os traficantes recolhem os fuzis e as garrafas, num balé ensaiado. O morro se transforma em trincheira. E o menino Jonatas, aquele da cerveja, fica ali, perdido, sem saber pra onde correr.

Quando o primeiro estampido vem, ele se joga no chão, instintivamente. E aprende — cedo demais — que no morro a vida se mede em segundos de reação.

Depois do tiroteio, o cheiro de gás lacrimogêneo desce como névoa. Os helicópteros ainda rondam, cuspindo luz sobre telhados.

O locutor do rádio, no asfalto, diz que a operação foi um sucesso. Aqui, o sucesso tem outro nome: sobreviver.

Na segunda-feira, o comércio reabre. Zeca limpa a vitrine, ajeita os engradados, finge normalidade. 

A normalidade é uma armadura — quem tira, morre.

As crianças voltam à escola, mas o professor falta. Dizem que ficou preso na Linha Amarela, por causa da operação.

A aula vira recreio improvisado. Uma menina desenha o céu, mas o pinta de cinza.

– Por quê, Clara – pergunta Zeca, curioso.

– Porque azul não existe mais – responde ela, sem levantar os olhos.

O azul virou lenda. O morro vive em tons de concreto, ferrugem e medo. 

O céu, quando não está coberto de fumaça, parece longe demais, quase uma ofensa.

E é nesse cenário que o cotidiano insiste em florescer. Dona Juraci continua vendendo quentinha — arroz, feijão, carne moída e esperança. 

O gás acabou, mas ela dá um jeito. Muringa passa na porta, armado, e compra uma. Diz bom dia com um sorriso tímido, como se pedisse desculpa por existir. 

E talvez peça mesmo. Aqui, todo mundo deve alguma coisa a alguém — e ninguém sabe exatamente o quê.

De vez em quando, um corpo desce o morro, enrolado em lençol. 

A TV não mostra, o jornal não imprime. Só quem carrega o peso é o povo, que segue o cortejo em silêncio, enquanto o funk de algum barraco explode alto — não por desrespeito, mas por sobrevivência. 

O som alto é o escudo contra o choro.

À noite, o morro se ilumina com luzes trêmulas: lâmpadas penduradas em fios roubados, velas acesas em altares improvisados, cigarros brilhando nas sombras.

Lá de cima, a cidade brilha como um outro planeta, inacessível. 

O contraste é cruel: o luxo iluminado pela miséria. 

E, ainda assim, há vida — pulsando, teimosa, quente.

Dona Juraci reza. Pede paz, mas já nem sabe o que isso quer dizer. Muringa observa o horizonte e pensa se um dia vai poder andar na praia sem medo de ser preso. O menino Jonatas dorme abraçado num carrinho de brinquedo — o único que sobrou inteiro. E o som dos tiros, mesmo quando cessam, continuam ecoando dentro de cada um.

No dia seguinte, o noticiário fala de mais uma operação bem-sucedida. A cidade aplaude, aplaude de longe, de longe onde o sangue não salpica.

Bandido bom é bandido morto, dizem. Mas esquecem que, aqui no morro, bandido e vítima moram na mesma casa, dividem o mesmo prato, o mesmo sobrenome.

Porque o que chamam de ‘violência’ é, muitas vezes, o nome que dão à pobreza quando ela resolve gritar.

E o morro grita, sim. Grita com funk, com tiro, com prece, com festa. 

Grita pra não ser apagado. Grita porque o silêncio seria o fim.

No fim da tarde, o sol se põe devagar sobre o Rio, tingindo o céu de vermelho. O mesmo vermelho que mancha o chão do beco, o mesmo que tinge a bandeira da esperança.

A cidade é linda — dizem os cartões-postais. Mas ninguém tira foto do lado de cá.

E se tirasse, talvez não coubesse em moldura: uma cidade partida, onde o fuzil é rei, o medo é súdito e a vida, mera sobrevivência.

Mas há algo que resiste — teimoso, desobediente — entre os becos e as balas.

É o amor, aquele mesmo, clandestino e corajoso. 

Aquele que faz nascer criança em meio à guerra, que faz mãe lutar, que faz o morro inteiro dançar mesmo quando o ‘caveirão’ ronda.

Talvez seja isso que o asfalto nunca entenda: que o morro, apesar de tudo, não é só tragédia. 

É também vida, barulho, cor, improviso e fé. 

É o território onde o impossível se acostumou a existir.

No fim da noite, quando o silêncio finalmente pousa, o vento traz o som distante de um tamborim. E alguém canta, baixinho, lá no alto:

Enquanto houver sol, haverá esperança.

A música sobe e desce pelas vielas, como um recado.

E o morro, cansado, mas vivo, responde com um sopro: “A gente ainda tá aqui.”

Clayton Alexandre Zocarato

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Paulo Roberto Costa: 'A insustentável indiferença do ser'

O dia lhe parecia promissor. Dirigia sem pressa, a caminho de seu trabalho. Tinha tempo. Seus pensamentos transitam erraticamente entre as lembranças do final de ano em família, seus afazeres programados para o dia em curso e seus planos para o futuro.”

 

 Sexta-feira, nove horas de uma e agradável manhã de verão. O dia lhe parecia promissor. Dirigia sem pressa, a caminho de seu trabalho. Tinha tempo. Seus pensamentos transitam erraticamente entre as lembranças do final de ano em família, seus afazeres programados para o dia em curso e seus planos para o futuro.

Em dado momento, ao passar sob um viaduto, ouviu um enorme estrondo e tudo se apagou. Nem teve tempo de reagir. A enorme pedra, lançada por um marginal do alto do viaduto, estilhaçou o para-brisa de seu carro e atingiu sua cabeça. Seu carro, desgovernado, capotou diversas vezes. Segundo relatos, teve morte instantânea. Queira Deus!

No breve noticiário televisivo, a polícia, para ilustrar a enorme incompetência e descaso das autoridades, limitou-se a comentar que aquele local era o mais crítico daquela estrada, pelo número de ocorrências daquele tipo! Tragicômico!

A missa de sétimo dia representou o ato final de uma tragédia, com uma família destruída emocionalmente, incrédula e inconformada com a perda de mais um jovem que teve a vida ceifada nas mãos da criminalidade.

Passado um mês, dele só restou a lembrança na mente e nos corações dos familiares e amigos e um número nas estatísticas lamentáveis de um país abandonado à própria sorte. Foi somente mais uma notícia de tragédia, entre tantas outras.

Os telejornais, diariamente, nos bombardeiam com casos de crimes de todo tipo, como se estivessem abrindo a Caixa de Pandora, exemplificando o Código Penal item a item. São tantos, tão estarrecedores e frequentes que parecem nos deixar a todos entorpecidos, como se estivéssemos apenas assistindo a um filme de terror ou tendo um pesadelo do qual não conseguíssemos acordar. Assistimos quase que indiferentemente, notícias de crianças e jovens sendo chacinados por balas perdidas ou por policiais perdidos. Vemos o crime organizado, cada dia mais saudável, forte e violento, dando aulas de organização para um estado combalido e ausente. Políticos, que deveriam estar preocupados em fazer leis mais rígidas para conter a escalada da violência, agindo como os piores facínoras, com a despreocupação que a impunidade característica do país garante.

Aceitamos, como parte da vida, o medo latente que nos impede de sair à noite ou de irmos despreocupados até a padaria da esquina. Que nos mantém acordados enquanto o último dos familiares não chega a casa. Vivemos em prisão domiciliar, culpados por nossa própria omissão ou indiferença. Conformados, impotentes ou simplesmente desinteressados – uma vez que está acontecendo com o vizinho e não com conosco -, limitamo-nos a trocar mensagens nas redes sociais e a comentar nas rodas de bate-papo.

Parece que estamos até perdendo, paulatinamente, nossa própria capacidade de nos indignarmos. Termina o dia, desligamos a televisão, como se com isso estivéssemos deixando fora todo o mal do mundo mais uma noite, para continuarmos no dia seguinte, com nossa vidinha de ovelhas no matadouro, aguardando a hora de nos encontrarmos com o Criador.  

 

Paulo Roberto Costa – paulocosta97@gmail.com