setembro 19, 2024
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Rannie Cole: conto 'A Caixa'

RannieRanielton Dario Colle: A Caixa’

Em toda escuridão há um pouco de luz. E em toda a luz há um ponto de escuridão, refletia Jonas enquanto olhava, em meio a bagunça a sua volta, um antigo calendário de muitos anos atrás, com o símbolo do Yng Yang, pendurado na parede da sala.

Ele não entendia nada do Tao, todavia sabia isso e sabia também que esse era um truísmo já aceito há muito e também um clichê, embora muitos filmes parecessem ignorar isso e se concentrar numa luta mecanicista de um bem contra o mal. “Uma dualidade simples é mais fácil de aceitar” – ponderou – “É mais difícil amar alguém com seus defeitos, alguém com alguma escuridão, ou odiar alguém em quem eu também vejo um pouco de bondade. Mas todo mundo têm esses dois lados dentro de si; então ele ponderou que o cinema também usava isso à vezes, com muito sucesso, em personagens que ficaram clássicos e são amados pelo público, como o Darth Vader de Guerra nas Estrelas.”

Era fim de tarde, e embora estivesse cansado, ele estava determinado a deixar aquela casa, onde não entrava havia anos, razoavelmente limpa. Desde que brigara com seu pai, tempos atrás, ele nunca mais havia estado lá. As lembranças se acumulavam em sua memória, e agora seu pai estava morto, e elas lhe pareciam extremamente pesadas.

“Oi… veja o que eu trouxe para vocês…” – ele recordava com carinho e intensa alegria, as cores ainda vívidas em sua memória, de quando voltando do trabalho, seu pai lhes trazia um chocolate ou um cachorro quente com um sorriso nos olhos. Apesar da relativa pobreza, nunca lhes faltou nada. E Jonas ia radiante deliciar-se com aquele pequeno agrado.

Não obstante, porém, quando Jonas começava a sorrir com essa agradável lembrança de uma vida mais simples, uma outra memória se interpunha quase que imediatamente, cortando sua nascente felicidade: seu pai chegando bêbado em casa, reclamando da janta e saindo batendo a porta. E de sua mãe em lágrimas… e assim, como uma lembrança leva a outra, ele se lembrou de quando o seu pai levou uma TV nova, de vinte polegadas, e tela colorida, para casa. E da alegria de sua mãe quando seu pai fez uma festa surpresa para comemorar os seus dez anos de casados… E se lembrou da doença de sua mãe a consumindo aos poucos; das lágrimas e da escuridão tomando conta de seu lar, e de seu pai constantemente bêbado depois… O que antes era esporádico, havia se tornado a regra há muito…

Então Jonas chorou… “A Luz e As Trevas” pensou consigo mesmo enquanto enxugava as lágrimas de seu rosto, e enchia um saco preto com as coisas que ia juntando pela sala.

Ele odiava o seu pai pelo que os tinha feito sofrer, e, às vezes, até mesmo pela morte da mãe. Odiava também pela vergonha que os tinha feito passar, e o culpava pela doença de sua mãe… por ter sido um covarde e ter desistido quando a sua mãe faleceu; o odiou por tanto tempo por ele nunca ter deixado faltar comida na mesa, mas por ter deixado faltar amor e diálogo. Ele não conseguia entender as trevas e a solidão que seu pai enfrentava sozinho. E por isso também não entendia a sua forma silenciosa de dar a Jonas o apoio de que ele precisava, e por isso se sentia abandonado. Afinal, também ele havia perdido a sua mãe. Também ele estava de luto. E, por tudo isso, por ter sido tão fraco e egoísta, Jonas odiava o seu pai…

Agora, porém, juntando as pequenas coisinhas que seu pai acumulara ao longo da vida como um tesouro inestimável, coisinhas sem valor como convites de aniversário, fotografias manchadas, alguns cadernos antigos deles, cartas amareladas pelo tempo, e um ou outro brinquedinho gasto e sem cor, de sua infância e que decoravam o local, Jonas sentia um profundo mal estar.

Não via o seu pai há quatro anos, e só o viu em seu leito de morte, delirando e sem reconhecê-lo. E, ainda ali, não sentia o menor remorso ou culpa. Apenas pena daquele velho decadente que um dia ele chamara de pai. No enterro pensou ironicamente que, na lápide, poderia estar escrito: “Aqui morre um canalha covarde. O mundo é um lugar melhor sem ele.” Só que na casa e meio a tantas lembranças suaves… era muito difícil. A culpa o dominava.

Envolto nesses pensamentos Jonas ouviu a campainha tocar:

– Oi

– Oi… Jonas! Meu Deus! Meus pêsames garoto. Ele descansou! – Era a vizinha de seu pai, uma velha conhecida que falava.

– É, obrigado, desculpa eu… – ele ia pedir licença, dizer que estava ocupado, mas ela se adiantou e atropelou sua fala:

– Eu sei, eu sei meu bem… eu só trouxe essa caixa aqui, que era do seu pai e quando ele adoeceu deixou comigo para, caso algo lhe acontecesse, eu te entregar. Toma garoto. Espero que isso, de alguma forma lhe traga consolo. Eu vou indo..

– Ei… desculpa, o que é que tem aqui dentro?

– Não sei meu filho, o seu pai disse que só você deveria abri-la…

– Tá, muito obrigado!

– Fica em paz garoto, fé em Deus que ele te consola…

Jonas então pegou a caixa, que era extremamente leve, e tinha talhada em sua tampa o mesmo símbolo do Tao que havia visto no calendário da parede. Ele imaginava que ali teriam mais cartas do seu pai, ou talvez alguma explicação, pedidos de desculpas, aluma apólice de seguro, essas coisas. Teve uma certa dificuldade para abri-la, mas quando abriu não havia nada lá dentro. Era como uma piada sem graça. Uma última afronta de seu pai. O que ele queria dizer com aquilo? Estava querendo lhe jogar na cara sua ausência? Pois bem, se fosse isso, ele tinha a consciência tranquila pois não sentia a menor culpa.

Mas, alguns instantes depois, depois de olhar mais atentamente para a caixa, percebeu que ela não tinha fim. Não havia nada nela, nem um fundo! Era como um buraco negro…  Ele fechou a caixa assustado. E a abriu novamente. – deve ser algum truque, alguma ilusão de ótica – pensou. E pegou ao acaso um porta-retratos com uma foto antiga, de um aniversário seu, que estava na estante e colocou na caixa; melhor seria dizer que jogou, porque o retrato parecia não parar de cair em uma espécie de abismo sem fim.

E quando ele olhou melhor para a caixa, viu que apesar de não ter fundo quando aberta, e ser perfeitamente normal quando fechada, um pequeno ponto luminoso brilhava lá de dentro, agora que o retrato desaparecera definitivamente de sua vista, e parecia ir ficando mais forte.

Ele fechou a caixa novamente assustado.

 

– Jonas! Jonas!

– Que foi pai?

– Tá vendo essa caixa? Eu gostaria que você escondesse ela lá no sótão

– Mas por que pai? O que é que tem nela?

– Nada, nada. Apenas lembranças do que não aconteceu.

– Posso abrir?

– Não. E mesmo que você tente não vai conseguir. Então nem tente. Mas vai, sobe lá, guarda ela lá dentro pra mim, e depois vem aqui tá?

– Pronto.

Valeu filhão! Que tal a gente ir numa lanchonete e depois no cinema ver aquele filme dos Trapalhões que você queria? Afinal é seu aniversário…

– Oba! Obrigado Pai!

E eles foram numa lanchonete, e ao cinema, e riram muito com o filme dos trapalhões. E não havia sinal nenhum de tristeza ou de dificuldades financeiras. E, quando voltaram para casa, ainda de tarde, sua mãe estava lá os aguardando na porta; e ela perguntou se eles se divertiram, e pediu desculpas por não ter podido ir junto no cinema, e disse que tinha feito uma lasanha para compensar… então, quando entraram na sala, ele viu que tinha um bolo na mesa e que seus parentes, tios e primos estavam todos ao redor da mesa! E eles gritaram feliz aniversário!

E Jonas sentiu um arrepio e ondas de felicidade. Era o melhor aniversário de toda a sua vida. Era o dia mais feliz de sua vida.

Ele queria chorar, em algum recanto de sua memória algo lhe dizia que sua mãe tinha morrido e seu pai também, e que ele estava velho e amargo e tudo aquilo nunca aconteceu de verdade. E nessas reminiscencias, que eram como uma espécie de sonho ruim, tudo tinha acontecido a tanto tempo…

Mas foi um piscar de olhos: Ele estava muito feliz em ver sua mãe saudável de novo e em  casa, depois de ter enfrentado uma doença tão séria. Estava feliz por ver seus primos e primas também, e por ter se dado conta de que ele tinha só doze anos e que eles tinham ainda uma vida inteira pela frente.

Ele e seus primos foram brincar lá fora quando ele olhou para o alto e viu um objeto caindo, e uma forte ventania trouxe nuvens negras e um raio cortando o céu… a noite desabou de repente e a chuva torrencial os levou novamente para dentro de casa…

Jonas secou novamente as lágrimas de felicidade que brotaram em seus olhos. Ele amava profundamente seu pai, sua mãe e sua família. E nada poderia desfazer isso…

 

 

Helio Rubens
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