Autonomia profissional versus prescrição parental

Fidel Fernando

‘Autonomia profissional versus prescrição parental: uma reflexão a partir de Manana, de Uanhenga Xitu’

Fidel Fernando
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A obra literária Manana (2014), do escritor angolano Uanhenga Xitu, além de literariamente rica e moralmente provocadora, oferece preciosos elementos para a análise das tensões entre tradição, modernidade e liberdade individual.

Ao relê-la para fins de pesquisa científica, destaca-se um excerto na página 22, e transcrevo literalmente:

“Aprende ofício, sobrinho! Este é arte. Não deixa pedir esmola. Teu pai ainda aí com mania de liceu, liceu, liceu, ianhi?! 4.ª classe chega bem. Depois aprende arte. Uma data de gente que anda aí no liceu, mas com mania de fonchonário são calutêiros. Não pagam as obras que a gente faz. Alguns matam as famílias com fome. A vida deles é só ter sapatos engraxado e camisa limpo. Mas em casa só comem farinha com açúcar.”

O conselho de um tio ao sobrinho, para que este aprenda um ofício, contrapõe-se à obsessão do pai pelo ‘liceu’. Este trecho espelha fielmente a realidade de muitos jovens cujos sonhos profissionais continuam hoje bloqueados pelas imposições parentais. A sociedade ainda sustenta a falsa ideia de que a única via para a realização pessoal e profissional passa pelo ensino académico formal e pela integração no aparelho do Estado. Contra esse paradigma, urge defender a autonomia e o direito de cada indivíduo traçar o seu próprio caminho.

Em Manana, Felito, personagem da obra, não é dado aos livros; chumba repetidamente no liceu. Todavia, revela interesse e talento para a carpintaria: um ofício digno e criativo. O pai, porém, insiste em empurrá-lo para o liceu, na esperança de vê-lo engravatado, funcionário público: símbolo maior da realização social para muitos. Essa lógica persiste no século XXI, quando muitos pais projectam nos filhos os sonhos que não realizaram. Queriam ter sido advogados, jornalistas, médicos ou contabilistas, e impõem essas vontades aos filhos, sufocando talentos, paixões e vocações.

Em Pais Brilhantes, Professores Fascinantes (2003), o psicólogo Augusto Cury ensina que pais controladores geram filhos inseguros e emocionalmente fragilizados. Ao prescrever o curso que o filho deve seguir, não se orienta, anula-se-lhe a identidade. Do mesmo modo, Içami Tiba, em Quem Ama, Educa! (2002), defende que educar é preparar os filhos para serem autores do próprio destino, o que requer escutá-los, respeitá-los e confiar na sua capacidade de decisão.

Nessa linha, Leandro Karnal, ao discutir a educação moderna, lembra que a liberdade é o maior presente que se pode dar a quem se ama. Isso inclui permitir que os filhos escolham seus próprios caminhos profissionais, mesmo que não correspondam às expectativas dos pais. Ao contrário do que muitos pensam, a realização profissional não depende de cargos públicos ou títulos universitários; pode emergir de um ofício artesanal, de uma paixão por ensinar ou do espírito empreendedor. Quando um pai afirma: “Quem quiser ser professor ou enfermeiro na minha casa terá de pagar com seu próprio dinheiro”, limita as opções dos filhos e força-os a seguir trajectórias que não reflectem suas verdadeiras vontades.

Com olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, Luís Felipe Pondé, em Filosofia para Corajosos (2014), afirma que a obsessão pela estabilidade, simbolizada pelo cargo de ‘fonchonário’, revela mais medo do que vocação. Questiona-se, assim, o valor de uma vida sacrificada em nome de um status social estagnado. Nesse contexto, a fala do tio, no excerto citado, é uma advertência lúcida: Há muitos ‘ilustres’ com sapatos engraxados e camisas limpas, mas sem dignidade, sem comida em casa e sem propinas pagas para os filhos.

Assim, a valorização do ofício e do talento pessoal não é apenas uma necessidade económica, sobretudo em tempos de desemprego juvenil alarmante, mas uma exigência moral. É preciso incentivar os jovens a serem empreendedores e criadores, e não apenas candidatos a concursos públicos. É possível (e até desejável) que existam professores, marceneiros, artistas e freelancers orgulhosos da sua profissão, e não frustrados por terem sido forçados a seguir um caminho que nunca desejaram.

A leitura de Manana é, pois, ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de mudança de paradigma na educação e nas expectativas parentais. Os pais devem escutar, apoiar e orientar, e não prescrever. A realização autêntica só acontece quando se faz o que se ama, e isso não é um cliché: é uma verdade humana, validada por pensadores, educadores e, sobretudo, pela experiência concreta de milhares de jovens em todo o mundo.

Que a literatura continue a despertar-nos para estas verdades e que, como sociedade, saibamos acolher os sonhos dos nossos filhos, mesmo quando não se parecem com os nossos. Afinal, o sucesso não tem uniforme: pode vir de uma gravata, de um avental ou das mãos calejadas de quem faz o que ama.

Fidel Fernando

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A palavra ‘cousa’

Fidel Fernando

“A palavra ‘cousa’ e o valor da memória linguística”

Fidel Fernando
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Imagem gerada por IA do Bing – 14 de Agosto de 2025, às 21:11 PM
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A língua portuguesa, rica em história e transformações, guarda em si memórias que atravessam séculos. Entre estas, encontram-se palavras que, embora pouco usadas hoje, continuam a ter valor linguístico, literário e cultural. Um exemplo é o vocábulo ‘cousa’, variante de ‘coisa’, cujo uso, embora arcaico, permanece legítimo e digno de reconhecimento.

Compreender e respeitar essas variantes não é apenas uma questão gramatical, mas também um acto de preservação da identidade e da memória colectiva, especialmente no contexto angolano e brasileiro, onde o português se entrelaça com outras heranças culturais e linguísticas.

A alternância entre os ditongos ‘oi’ e ‘ou’ em palavras como ‘coisa’ e ‘cousa’ demonstra que a língua portuguesa não é estática. Essas variações são consagradas pelo uso e convivem nos dicionários e nos registos literários como testemunho da evolução linguística.

A. Tavares Louro, no Portal Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, salienta que tais variações são legítimas dentro da tradição da língua. Além disso, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) reconhece essas formas como válidas.

Em Angola, onde o português convive com línguas bantu como o kikongo, kimbundo e o umbundo, o uso e a variação de palavras é ainda mais significativo. A exposição a registos linguísticos diversos permite à população desenvolver uma consciência mais flexível e aguda da língua.

A presença de palavras como ‘cousa’ em textos escolares ou obras literárias pode parecer estranha para as gerações mais novas, habituadas à forma moderna ‘coisa’, mas conhecer a sua existência é fundamental para uma leitura crítica e informada da literatura lusófona clássica.

Exemplos dessa presença são notórios em autores como Luís Vaz de Camões, cujo verso “Transforma-se o amador na ‘cousa’ amada” mostra como o termo fazia parte do léxico poético de sua época. De maneira semelhante, o ‘Sermão a Santo Antônio’, conhecido como ‘Sermão aos Peixes’, de Padre Antônio Vieira menciona: “A primeira ‘cousa’ que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros”, evidenciando a presença do termo numa obra clássica da literatura de expressão portuguesa.

Além disso, na contemporaneidade, há a canção de Joaquim Manoel da Câmara (2017), onde se canta: “Triste ‘cousa’ é de amar só”.  Esses exemplos mostram que a palavra “cousa” tem sido usada para expressar sentimentos profundos, ideias complexas e mesmo metáforas do quotidiano, demonstrando a sua carga simbólica.

No quotidiano angolano, palavras como ‘coisa’ e expressões similares, como ‘aquele negócio’ – típico do Brasil ou ‘o coiso’, são frequentemente utilizadas para substituir nomes do que não nos lembramos ou não conhecidos no momento da fala. Esta versatilidade reflecte uma característica universal da linguagem: a sua capacidade de adaptação.

Assim, dizer “Passa-me aquele negócio ali em cima da mesa… isso, o que abre garrafa!” ou “Estou a lembrar do coiso… daquilo que estudamos na aula passada… tinha a ver com biologia celular” ou, ainda, “Eu encontrei a coisa, a amiga do João… como é o nome dela mesmo?” revela uma função comunicativa essencial, que não depende da forma correcta do vocábulo, mas, sim, da sua eficácia na comunicação.

Aqui, faço um parêntesis para dizer que essa variação do ditongo ‘ou’ em ‘oi’ não se dá só com as palavras ‘coisa’ e ‘cousa’, há também ‘oiro’ e ‘ouro’, ‘loiro’ e ‘louro’, ‘loiça’ e ‘louça’, ‘oiço’ e ‘ouço’, presentes na língua viva e constam, inclusive, no VOLP.

Voltando à vaca fria, a palavra ‘cousa’ pode ter caído em desuso, mas permanece viva na memória da língua. Como as pessoas, as palavras nascem, crescem e, por vezes, desaparecem, mas a lembrança delas é uma forma de manter viva a nossa história comum.

Assim, lembrar e valorizar formas arcaicas é respeitar o percurso da língua e os seus muitos falantes. Não se trata apenas de reconhecer uma variante: trata-se de compreender que a língua é feita de passados, presentes e futuros. E nesse sentido, a ‘cousa’ tem tanto valor quanto a ‘coisa’.

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Quem sou eu, segundo os meus alunos?

Fidel Fernando: ‘Quem sou eu, segundo os meus alunos?

Fidel Fernando
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Imagem gerada por IA do Bing – 15 de Agosto de 2025, às 12: AM.
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Durante muito tempo, no processo de ensino e aprendizagem, entendi que a função de um professor era sobretudo ensinar, avaliar e classificar os alunos. No entanto, com o passar dos anos e a experiência em salas de aula, compreendi que também é necessário inverter esse processo: permitir que os alunos nos avaliem, nos observem e, com isso, nos devolvam uma imagem de quem somos enquanto docentes e enquanto pessoas.

Ao fazê-lo, deparei-me com percepções curiosas, outras constrangedoras e algumas que, de forma inesperada, revelaram aspectos fundamentais da minha prática pedagógica. A avaliação feita pelos alunos, sem filtros, revelou-se um instrumento poderoso de reflexão e autoaperfeiçoamento profissional.

A proposta era simples: disponibilizei quinze minutos no último dia de aulas do ano lectivo 2024/2025 para que os alunos escrevessem anonimamente o que pensavam sobre mim e sobre a minha actuação como professor. A princípio, confesso, esperava comentários sobre a metodologia, o domínio do conteúdo ou a interação pedagógica.

Contudo, surpreendi-me ao descobrir que os alunos também reparam em detalhes como a minha forma de vestir: “camisa branca, calças pretas e ténis brancos”, e até características físicas: “professor tem cabeça pequena”, “é baixinho”. Ri-me, claro, mas reflecti: o professor é mais do que a sua função. Ele é presença, figura, símbolo. A forma como nos apresentamos diz algo à turma, ainda que de forma indirecta.

Mais significativo para mim, contudo, foram os comentários sobre o modo como conduzo as aulas. Li, com alegria, observações como: “realiza dinâmicas connosco na sala de aula, dinâmicas bem melhores do que ter aulas fora ou jogar mata-piolho no pátio”. Estas palavras mostraram-me que, para além da imagem, o que realmente se destaca para os alunos é a qualidade da interação e o envolvimento que se cria em sala. É nesse espaço, e com essas práticas, que o ensino se torna memorável. Mas nem só de elogios se faz uma boa auscultação escrita.

Os chamados ‘defeitos’, termo usado por alguns alunos, foram igualmente reveladores: “o professor às vezes atrasa para entrar na sala” ou “tira stalo dos colegas e dá patadas”. O uso dessas expressões levou-me a consultar outros alunos e até colegas (professores) para as compreender. ‘stalo’ e ‘dar patadas’ referem-se a respostas ríspidas, geralmente dirigidas a comentários inconvenientes ou tentativas de piada durante a aula. Reconheço-me nessas situações. Por vezes, na tentativa de manter a disciplina ou a concentração na aula, posso responder de forma menos acolhedora.

Este momento levou-me a recordar o pensamento de Carl Rogers (1951), segundo o qual o professor deve aproveitar até os comentários descabidos dos alunos como oportunidades pedagógicas. Se um aluno, por exemplo, interrompe uma aula sobre ‘Meios de Transporte’ com um comentário aparentemente fora de contexto, tal como: “a minha avó está doente”, em vez de o repreender (ou ‘tirar stalo’): “E eu com isso” ou “o que isso tem a ver com a aula?”, podemos integrar essa informação na aula: “Que pena! Assim que for possível, vamos pegar um autocarro para ir vê-la.

Que tal?” Desta forma, o aluno sente-se escutado, valorizado, e o conteúdo é reforçado num contexto real e afectivo. Esta abordagem é um exemplo de como se pode transformar um potencial conflito em aprendizagem significativa.

A recolha destes testemunhos também me revelou a importância da linguagem dos alunos e da necessidade de o professor se manter actualizado quanto às suas referências culturais e linguísticas. Afinal, estamos todos no século XXI, mas certas expressões ainda nos surpreendem. Aceitar essa diferença e tentar compreendê-la é parte do nosso compromisso com a educação.

Ao partilhar esta experiência por mim vivida com alguns professores, um colega confidenciou-me ter deixado de aplicar essa avaliação depois de uma aluna ter-lhe declarado amor. Ri-me, mas sugeri que se pode aproveitar esse ‘amor platónico ou das ideias’ como estímulo à aprendizagem, com algo como: “aceito, sim, contando que te dediques em todas as disciplinas e obtenhas notas altas.” Neste sentido, o afecto transforma-se em incentivo, e o vínculo pedagógico aprofunda-se.

Pelo exposto, sugiro vivamente a todos os professores que reservem alguns minutinhos das suas aulas para serem avaliados por seus alunos, no final de cada ano lectivo. A prática, mais do que gerar constrangimentos, oferece ao professor um espelho necessário, honesto e revelador do seu percurso. É através da escuta dos nossos estudantes que podemos crescer, corrigir, aperfeiçoar e, sobretudo, humanizar a nossa prática docente.

Como escreveu Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho.” Talvez esta ‘pedra’ (o olhar do aluno sobre nós) seja, afinal, a base para um novo caminho, mais consciente, mais sensível e mais eficaz.

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O Português que a África fala

Fidel Fernando: Artigo ‘O Português que a África fala’

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Imagem criada por IA do Bing - 22 de Julho de 2025, às 23:33 PM
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às 23:33 PM

A língua é muito mais do que um instrumento de comunicação: é um campo de disputas simbólicas, culturais e políticas. No contexto afro-brasileiro (e, por extensão, no angolano), ela revela marcas profundas de uma história racializada, feita de resistências e ressignificações.

Ao analisarmos o português falado no Brasil e em Angola, torna-se evidente que a herança linguística vai além da simples influência colonial lusitana. A oralidade, os sotaques, as escolhas lexicais e as estruturas gramaticais são testemunhos vivos de um passado de opressão e de um presente ainda marcado por desigualdades. Nas ruas, nas igrejas, nas famílias e nas salas de aula, o modo de falar continua a ser vigiado, corrigido e, muitas vezes, estigmatizado.

Essa vigilância está directamente relacionada ao preconceito linguístico, que, na prática, opera como uma forma velada de racismo. Desde os primeiros contactos entre os africanos escravizados e o português europeu, houve uma imposição violenta da língua do colonizador. Contudo, essa assimilação nunca foi completa. O português, tal como é falado hoje no Brasil e em Angola, carrega traços linguísticos de línguas africanas, sobretudo das línguas bantu, como o kimbundu, o umbundu e o kikongo.

Exemplos dessa influência abundam. Mendonça (1933, apud Severo, 2019) destaca o impacto da pronúncia de origem africana em formas como ‘foya’ por ‘folha’, ou ‘cafezá’ por ‘cafezal’. Entre os fenómenos mais relevantes está o rotacismo: a troca do som [l] por [r], como em ‘frecha’ por ‘flecha’. Segundo Cambolo (2025), isso ocorre por partilharem o mesmo ponto de articulação. É uma adaptação oral legítima, mas frequentemente ridicularizada.

Em Angola, essas ocorrências também são comuns. O caso de ‘sarsicha’ por ‘salsicha’, ‘sorta’ em vez de ‘solta’, ‘barde’ no lugar de ‘balde’, ‘sardo’ por ‘saldo’ são vários exemplos ilustrativos. No entanto, em vez de serem reconhecidas como heranças linguísticas, essas variações são, muitas vezes, tratadas como ‘erros’, especialmente no ambiente escolar.

Outro fenómeno recorrente é a aférese, tal como em ‘mor’ por ‘amor’ ou ‘nhado’ por ‘cunhado’. Estas formas são naturais em contextos familiares, mas tornam-se alvo de correcções quando atravessam para espaços escolares elitizados. O que se observa aqui é a tensão entre o português da vivência e o português do poder, onde quem define o que é “correcto” define também quem pode ser incluído socialmente.

A questão do plural também exemplifica a influência bantu. Como explica Domingos (2024), construções como “as casa grande” derivam da lógica gramatical das línguas bantu, que usam prefixos e não sufixos para indicar número. O que se interpreta como erro de concordância é, na verdade, uma estrutura coerente com outra lógica linguística.

O preconceito linguístico afecta especialmente as crianças negras. Quando são corrigidas com desprezo por falarem como os seus avós ou vizinhos, o que está em causa não é apenas a língua, mas a própria identidade. A isso soma-se a dimensão de género: as mulheres negras são as mais vigiadas, corrigidas e silenciadas. Gonzáles (1984) evidencia esta dupla opressão ao lembrar o papel social das mulheres negras historicamente subordinadas e a forma como a sua fala é tratada.

Neste contexto, a escola desempenha um papel crucial. Pode perpetuar o preconceito ao impor uma norma-padrão afastada da realidade dos alunos, ou pode tornar-se espaço de valorização das múltiplas formas de falar português. A minha experiência como professor mostrou-me que, ao respeitar a oralidade dos alunos, é possível promover maior envolvimento e sucesso académico. Ensinar a norma culta não deve significar apagar as outras formas de falar, mas, sim, ampliar o repertório linguístico com consciência crítica.

O português que se fala no Brasil é fruto de séculos de convivência, imposição, resistência e criatividade. Como afirma Andrade (2020), os sons, a melodia e o vocabulário foram moldados por vozes africanas. Essa herança está viva, mesmo quando disfarçada de “erro”.

Em última análise, aceitar a diversidade linguística é aceitar a pluralidade do povo que compõe o Brasil e Angola. É reconhecer que a língua do poder foi, sim, transformada pela força e pelo saber dos povos africanos. E é, sobretudo, recusar a ideia de que há uma única forma legítima de falar português. Nesta hora, lembramo-nos do questionamento de Gonzáles (1984), “quem que é o ignorante?”

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A desunião na classe dos professores

Fidel Fernando: ‘A desunião na classe dos professores
e os impactos na educação’

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Celso Antunes, na obra aludida, argumenta que o sistema educacional muitas vezes falha por não estabelecer padrões claros, perpectuando uma cultura de improvisação e falta de critério.”

A desvalorização da classe docente é um problema amplamente discutido, mas um aspecto menos explorado é a desunião entre os próprios professores, que fragiliza ainda mais a autoridade pedagógica e a eficácia do ensino. Como observa a Dra. Simone Benedetti, essa desunião manifesta-se na falta de padrões comuns de conduta dentro da escola, gerando confusão nos alunos e minando a coesão necessária para um ambiente educativo eficiente. 

Esta falta de uniformidade nas regras e métodos de ensino pode ser analisada à luz das obras de Celso Antunes (‘Escola Mentirosa’), Mário Sérgio Cortella (‘Família: Urgências e Turbulências’) e Leandro Karnal (‘Conversas com um Jovem Professor’). Enquanto Antunes critica a incoerência do sistema educativo, Cortella discute a importância de limites claros, e Karnal reflecte sobre a prática docente e a necessidade de consistência na relação professor-aluno. 

Um dos exemplos mais evidentes da desunião docente é a divergência nos critérios de correcção de actividades, provas e avaliações. Enquanto alguns professores são rigorosos, assinalando e corrigindo erros ortográficos, concordância e pontuação, outros ignoram esses detalhes, atribuindo notas sem a devida análise. Essa disparidade confunde os alunos, que não sabem ao certo o que é exigido. 

Celso Antunes, na obra aludida, argumenta que o sistema educacional muitas vezes falha por não estabelecer padrões claros, perpectuando uma cultura de improvisação e falta de critério. Se a escola não define parâmetros comuns, os alunos recebem mensagens contraditórias, prejudicando seu desenvolvimento linguístico e cognitivo. 

Outro ponto crítico é a permissividade versus rigor ou, melhor, a variação na aplicação de regras. Alguns professores proíbem o uso de corrector, incentivando a escrita precisa das palavras; outros permitem, mas com restrições; há ainda os que não se importam. Essa falta de uniformidade transmite aos alunos a ideia de que as normas são flexíveis conforme o professor, o que periga a autoridade colectiva do corpo docente. 

Mário Sérgio Cortella, no livro mencionado acima, ressalta que limites claros são fundamentais para a formação do carácter. Se na família a ausência de regras gera jovens despreparados para a vida, na escola, a inconsistência nas normas prejudica a disciplina e o respeito. 

A forma como os alunos reagem a diferentes figuras de autoridade (professores, coordenadores, funcionários não docentes) também evidencia a falta de unidade na condução disciplinar. Enquanto alguns docentes conseguem impor respeito com métodos próprios, outros enfrentam resistência dos alunos. 

Karnal, na sua obra, defende que a postura do professor deve ser firme, mas sem autoritarismo. Ele relata que a eficácia na gestão da sala de aula não depende de gritos, mas de clareza nas expectativas e consistência nas acções. Quando os professores agem de forma coordenada, os alunos internalizam melhor as regras.

Ademais, a desunião entre os professores não apenas afecta a dinâmica da sala de aula, mas também impacta o comportamento dos alunos. Quando um estudante desrespeita um professor, por exemplo, é crucial que todos os educadores intervenham de forma semelhante, reforçando a ideia de que a responsabilidade e o respeito devem ser universais. Caso contrário, a mensagem que os alunos recebem é de que existem diferentes padrões de conduta, dependendo do professor em questão.

Em jeito de conclusão, a desunião entre professores é um problema estrutural que exige reflexão colectiva. Se, por um lado, a diversidade de métodos pode enriquecer o ensino, por outro, a falta de padrões mínimos gera insegurança e indisciplina. Como sugerem Antunes, Cortella e Karnal, a solução passa por:  i) estabelecer normas claras e consensuais entre o corpo docente; ii) promover a formação contínua, discutindo estratégias pedagógicas alinhadas; iii) fortalecer a autoridade colectiva, para que os alunos encarem os professores como uma equipa coesa. 

A educação só será verdadeiramente eficaz quando os professores falarem a mesma língua, não no sentido de uniformizar pensamentos, mas de garantir coerência nas acções. Se queremos alunos disciplinados e críticos, precisamos de começar por uma docência unida e consistente. 

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A repetição no texto académico

Fidel Fernando

‘A repetição no texto académico: recurso ou ruptura?’

Fidel Fernando
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às 13:41 AM

Algumas palavras da língua portuguesa apresentam muitos sinónimos, o que permite a expressão de ideias de maneiras distintas. Não é em vão que a repetição de palavras em textos académicos é, frequentemente, vista como um sinal de pobreza lexical, uma vez que pode comprometer a clareza e a fluidez da escrita.

Nos textos académicos, a repetição excessiva pode ser um obstáculo à compreensão. Ao revisar textos de candidatos a licenciados, mestres e doutores, é comum encontrar passagens que evidenciam essa problemática. Por exemplo, a frase: “…para ser professor, é necessário que seja ‘munido’ de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘munido’ de conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos”, revela uma repetição desnecessária da palavra ‘munido’. Uma reescrita mais eficaz poderia substituir o segundo uso por ‘possuir’ ou ‘ter’, como em: “…para ser professor, é necessário que seja munido de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘possuir’ conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos.” Essa simples alteração (será simples?) não só enriquece o texto, mas também mantém a ideia original intacta.

A música contemporânea angolana frequentemente utiliza a repetição como recurso estilístico para enfatizar emoções e criar um impacto memorável. Por exemplo, na canção ‘Nossas Coisas’, de Ary e C4 Pedro, ouve-se “Minha razão quando a razão não dá razão pra ninguém, eh”. Aqui, a repetição de ‘razão’ serve para reforçar sentimentos de amor, criando uma ressonância emocional que cativa o ouvinte. Essa técnica, embora contrária à norma dos textos académicos, cumpre um propósito distinto: a criação de uma experiência estética rica.

Na literatura de expressão portuguesa, Carlos Drummond de Andrade, em 1928, publicou, na Revista de Antropofagia, um poema rico em repetição: “No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho”. A repetição, nesse contexto, não é uma falha, mas, sim, uma estratégia estilística que enriquece a obra literária, focando nos problemas (pedras) que as pessoas encontram na vida.

Contrapõe-se a isso a abordagem dos textos académicos, onde a repetição pode ser vista como um sinal de falta de rigor. Em passagens como: “A pesquisa foi realizada em três etapas fundamentais: A primeira ‘consistiu’ em averiguar, com a instituição, o índice de reprovação; a segunda etapa ‘consistiu’ em averiguar os prováveis factores no fracasso da aprendizagem escolar; a terceira etapa ‘consistiu’ em fazer um cruzamento entre os questionários aos alunos e professores…”, o autor poderia optar por sinónimos como ‘visou’, ‘objectivou’, ‘prendeu-se’, ‘teve finalidade de’ para evitar a repetição da palavra ‘consistiu’. Essa prática não só melhora a clareza do texto, mas também demonstra um domínio mais profundo da língua.

Além disso, frases como: “A formação específica é, absolutamente, necessária para quem ensina, mas, ‘de maneira alguma’, suficiente para o exercício da profissão. O professor que carrega apenas esta componente, ‘de maneira alguma’, contribui para o sucesso académico dos seus alunos”, mostram como a repetição de expressões pode ser evitada. O autor poderia substituir ‘de maneira alguma’ por “de jeito algum” ou mesmo ‘não’, o que não apenas diversifica a linguagem, mas também mantém a força do argumento.

Outro exemplo que sugere uma pobreza vocabular e uma falta de domínio sobre as possibilidades da língua: “Essas condições prévias gerais são impossíveis de serem criadas em pouco tempo e tem logicamente que ‘se relacionar’ com as condições prévias específicas e com todo trabalho a fim de ‘se relacionar’ também com a disciplina”. A adopção de palavras sinónimas, tais como ‘ligar-se’, ‘correlacionar-se’ ‘associar-se’ não alteraria o sentido e elevaria, evidentemente, a qualidade do texto.

Em linhas gerais, a variação lexical é crucial para a eficácia da comunicação em textos académicos. Enquanto nas obras literárias e musicais a repetição pode servir para propósitos estilísticos, nos textos científicos/académicos, deve ser evitada sempre que possível. A capacidade de substituir palavras repetidas por sinónimos não apenas demonstra um domínio mais amplo da língua, mas também enriquece a experiência do leitor.

Assim, é fundamental que os autores sejam encorajados a explorar a riqueza da língua portuguesa, utilizando-a de forma criativa e consciente. Ao aprender a distinguir entre os diferentes tipos textuais e a utilizar a repetição de forma adequada, podemos contribuir para uma escrita académica mais clara, envolvente e eficaz.

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A instabilidade do pronome você e ele

Fidel Fernando

‘A instabilidade do pronome você e ele na concordância verbal em Angola’

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Imagem gerada por IA do Bing – 08 de Abril de 2025, às 11:34 AM
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A concordância é um dos pilares essenciais da gramática, pois assegura a harmonia e a clareza nas orações. Como afirmam Góis (1955) e Bechara (2003), ela estabelece uma identidade entre os elementos da oração, sendo fundamental para a construção de frases coerentes. No contexto formal, académico ou profissional, o respeito à norma-padrão torna-se imprescindível.

Segundo Cunha e Cintra (1985), a concordância exige que o verbo se ajuste ao número e à pessoa do sujeito, como no exemplo: “Os alunos estudam para a prova”. Essa adequação evita ambiguidades e promove a coesão textual. Grisolia e Sborgia (2004) reforçam que essa regra deve ser seguida, inclusive considerando a posição do sujeito na oração.

Entretanto, no uso real da língua em Angola, é frequente a oscilação na concordância com os pronomes ʻvocêʼ e ʻeleʼ. O pronome ʻvocêʼ costuma ser usado com verbos na segunda pessoa, contrariando a norma, como em: “Você observa… mas não dizes nada” ou “você precisavas sair do autocarro”. Miguel (2007) recorda que ʻvocêʼ pertence à terceira pessoa e, portanto, exige verbos nessa pessoa. Já Carreira (2007) aponta que essa instabilidade é reflexo das variações diatópicas e diastráticas do português.

Outro fenómeno recorrente é o uso do pronome ʻeleʼ associado à forma verbal da primeira pessoa, como em: “Ele quero observar as miúdas” ou, ainda, nos versos musicais: “Ela tá pedi/ ela quero” (Seven Tropa); “Ela quero/ essa carne passa no tempero” (Lucas Massur); “Bela, não toca aqui/ela quero…” (Quarteto Alpha); “Ela quero” (Dj Nelson Jokey). Embora, nas músicas, essas construções sejam aceitáveis por razões estéticas ou expressivas, podem induzir ao erro quem não distingue o uso informal do uso normativo.

Esses desvios comprometem a clareza da comunicação. A norma-padrão recomenda construções como: “Você observa… mas não diz nada” ou “Você precisava de sair do autocarro”; “Ele quer observar as miúdas”. A correcção gramatical não é mero preciosismo: garante uma comunicação eficaz.

Nesse sentido, a escola pode adoptar estratégias para trabalhar essa distinção. Uma delas é a oficina de reescrita, em que os alunos ajustam excertos reais à norma-padrão e discutem os motivos dessas alterações. Outra é a dinâmica do tradutor, dividindo a turma em grupos para converter frases do uso real ao padrão. Além disso, pode-se criar um glossário de expressões reais, colectadas de músicas, anúncios ou do quotidiano, relacionando-as à forma normativa. Essas práticas valorizam a língua do aluno e demonstram que a norma-padrão responde a exigências sociais específicas.

Em suma, como lembra Ernani Terra, conhecer uma língua não é apenas dominar vocabulário, mas também respeitar suas regras, como a concordância verbal. Promover a consciência gramatical é essencial para garantir que a comunicação ocorra de forma clara, precisa e adequada aos diferentes contextos.

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